Como as empresas tecnológicas lutam contra o “direito à reparação”

Hoje em dia, reparar qualquer dispositivo electrónico pode custar mais do que comprar um novo. Depois de protestos pelo “direito à reparação”, alguns grandes fabricantes estão a mudar.

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Reparar qualquer dispositivo electrónico pode custar mais do que comprar um novo Kilian Seiler/Unsplash

Alguns de nós somos velhos o suficiente para relembrar os dias em que podíamos facilmente substituir uma bateria estragada no telemóvel. Hoje em dia, reparar qualquer dispositivo electrónico — desde um smartphone a uma consola, microondas ou ventoinha — pode custar mais do que comprar um novo. As empresas dificultam cada vez mais a abertura dos produtos, conseguir arranjar componentes ou actualizar o software.

Por isso, os dispositivos são simplesmente deitados fora, dando origem a desperdício potencialmente perigoso e obrigando os consumidores a comprar novos dispositivos, cuja produção tem custos ambientais. Depois de muito protesto de diferentes grupos pelo "direito à reparação" dos objectos, alguns grandes fabricantes estão a mudar.

1. O que está por detrás do movimento pelo direito a reparar?

Desde que surgiram os primeiros produtos electrónicos, na década de 1950, os compradores tentaram mantê-los, reparando ou substituindo partes estragadas. Actualmente, é óbvio que alguns produtos são desenhados de forma a serem impossíveis de arranjar. Os fabricantes usam parafusos não standardizados, selam os dispositivos com cola ou soldam partes que não precisam de estar soldadas, tornando praticamente impossível substituir componentes.

A complexidade cada vez maior dos dispositivos significa que os técnicos precisam de manuais detalhados e ferramentas que podem ser muito difíceis ou impossíveis de conseguir. Alguns fabricantes até programam o software para que o equipamento não funcione correctamente quando há partes substituídas. São até acusados de actualizar o software para que, deliberadamente, reduzir o desempenho do produto com o tempo. A Apple, que diz que programa "cada actualização de software para se assegurar que corre perfeitamente em todos os dispositivos que a suportam", tem sido um foco de queixas.

2. Quais são as queixas sobre a Apple?

A Apple, como outras empresas de tecnologia, não fornece peças suplentes a lojas não autorizadas. Os críticos dizem que isto torna os técnicos independentes inúteis, uma vez que pode custar mais arranjar um dispositivo do que comprar um novo. Quando outros técnicos mudam as baterias ou ecrãs, os utilizadores podem passar a ter de lidar com erros técnicos. A Apple diz que as peças não verificadas podem levar a um desempenho fraco e a graves problemas de segurança.

A gigante tecnológica fez algumas cedências nos últimos anos. Em 2019, lançou um programa que permitia que outras empresas arranjassem dispositivos que já não estivessem dentro da garantia e começou a dar treino a mais de 265 mil técnicos. Depois, em 2021, anunciou planos para fornecimento de peças, para que os utilizadores dos iPhones 12 e 13 pudessem arranjar o ecrã, a bateria e a câmara. Os activistas pelo direito à reparação dizem que as peças e ferramentas que a Apple fornece aos clientes podem ser tão caras que acaba por ser mais barato substituir o telemóvel.

3. E as outras empresas?

Ainda que o objectivo principal da campanha sejam os dispositivos electrónicos como os telemóveis e tablets, abrange também outros equipamentos como torradeiras, frigoríficos, carros, motos e tractores. Lojas independentes de reparação de motores no Maine [EUA] estão a fazer lobby pelo acesso à informação de diagnóstico, necessária para arranjar carros e camiões. Tradicionalmente, a John Deere [fabricante de equipamentos agrícolas] não permitia a ninguém, além dos seus técnicos, mexer nos famosos tractores verdes e amarelos. Alguns agricultores optaram por comprar modelos mais antigos, com componentes mais simples, que pudessem ser reparados. Em Janeiro, a empresa concordou em garantir acesso aos manuais de diagnóstico e reparação. No entanto, não ficou claro se a Deere iria partilhar todas as informações de que os agricultores precisam para consertar a maquinaria sem recorrer a uma loja autorizada.

4. O que está em jogo?

Dispositivos electrónicos descartados geraram, estimadamente, 53,6 milhões de toneladas de lixo em 2019, e apenas 17% foram correctamente reciclados. O lixo contém metais pesados e componentes que incluem arsénio, chumbo, mercúrio e cádmio que, se não forem descartados correctamente, podem expor populações ao risco de cancro e malformações congénitas. Pesa ainda a produção e envio de novos dispositivos para substituir os velhos que não podem ser arranjados, para não mencionar a mineração para obter os materiais necessários, que gasta energia e resulta na emissão de gases com efeito de estufa, responsáveis pelo aquecimento global.

Investigadores estimaram que a produção de um smartphone, por exemplo, emite entre 40 e 80 quilos de dióxido de carbono, aproximadamente o mesmo que uma viagem de carro de 320 quilómetros. À medida que mais pessoas compram telemóveis e outros dispositivos, as emissões da sua produção multiplicam-se. Os autores do estudo apontam que, nos últimos 50 anos, o consumo de dispositivos electrónicos cresceu seis vezes, apesar de a população mundial apenas ter duplicado.

5. Como é que as grandes tecnológicas estão a lutar contra o direito à reparação?

Empresas como a Apple, Google, Microsoft e Tesla têm gastado muito em lobistas para argumentarem que o direito a reparar iria expor os segredos da indústria, fornecer informações sensíveis a terceiros e pôr em causa a segurança dos consumidores. Quando representantes da Apple contestaram um processo pelo direito a reparar no Nebraska, em 2017, argumentaram que o cenário se iria tornar em Meca para hackers. Críticos dizem que o direito à reparação baixaria os preços destes trabalhos e iria encorajar mais pessoas a arranjarem os seus dispositivos, prejudicando as vendas de novos.

6. O que estão os governos a fazer?

As leis da União Europeia e Reino Unido estão a obrigar os fabricantes de máquinas de lavar roupa e louça, frigoríficos e televisões a assegurar que há partes substituíveis com ferramentas às quais os consumidores possam aceder facilmente. A União Europeia está a olhar para a regulação de telemóveis, tablets e computadores. Em França, os fabricantes devem fornecer uma "pontuação de reparabilidade" para alguns dispositivos electrónicos. A Apple, por exemplo, deu ao iPhone 12 Pro Max, lançado no final de 2020, um 6, numa escala de 0 a 10.

Joe Biden pediu para serem introduzidas medidas que impedissem os fabricantes de limitarem os consumidores ou terceiros a arranjarem os seus produtos. Vários estados norte-americanos consideraram aplicar leis relacionadas com o direito à reparação desde então, mas muitas foram rejeitadas, de acordo com grupos de consumidores que acompanharam as propostas. Nova Iorque tornou-se no primeiro estado a aprovar uma lei em Dezembro. Os activistas disseram que houve várias rectificações, o que significava que ainda seria impossível conseguir reparações independentes a preços comportáveis.

7. Alguma das novas medidas está a fazer a diferença?

É muito cedo para dizer, uma vez que muitas foram prorrogadas para dar tempo às empresas para se adaptarem. Activistas pelos direitos dos consumidores já estão a expressar a frustração de algumas regras beneficiarem apenas os reparadores profissionais, uma vez que não garantem o direito à reparação dos consumidores. Mais ainda, a legislação foca-se, muitas vezes, nos componentes físicos, e não no software. Substituir uma peça em falta pode não servir de nada se o dispositivo precisar de uma actualização de software.

Muitas leis pelo direito à reparação não resolvem o problema — comum entre fabricantes — da venda de módulos inteiros, ao invés de um único componente que tem de ser substituído, o que pode tornar as reparações pouco económicas. Por exemplo, um consumidor que quer arranjar os rolamentos do tambor da máquina de lavar pode ter que substituir todo o tambor, tornando o arranjo quase tão caro como uma máquina nova.


Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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