Quando tentar reparar uma liquidificadora é esbarrar em “absurdos”, o fim é o lixo

Uma tentativa de arranjar localmente uma liquidificadora mostra os problemas de um “modelo que criámos e que se reveste de absurdos”, em que reparar custa mais do que substituir e o lixo se amontoa por todo o lado, sem soluções à vista.

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#TBL Tiago Lopes - Eletrodomestico reparacao - a liquidificadora Tiago Lopes

O homem de bata cinzenta aproxima o nariz da liquidificadora e tenta perceber se o pequeno electrodoméstico cheira a queimado. Parece desiludido com as nossas más escolhas. “Esta marca, ainda por cima? O mais certo é ter sido o motor. Deve custar mais do que isso, já nem vale a pena”, diagnostica.

O aparelho eléctrico de cozinha comprado em 2016, num impulso durante uma ida às compras numa grande superfície, deixou de funcionar enquanto triturava aveia para uma receita de pão, nos primeiros dias do confinamento nacional para conter a pandemia de covid-19. “Também apanhou covid-19, foi?”, interrompe.

Com a maior parte das lojas fechadas, e numa tentativa de não contribuir para a montanha de lixo eléctrico, a liquidificadora foi guardada num armário, onde ficou esquecida durante dois anos (a par do interesse por fazer pão).

O fabricante alemão disse que “não efectua reparações neste produto porque não tem peças para o mesmo”, contamos. O olhar do técnico de reparação a desvia-se da liquidificadora para os potentes frigoríficos e máquinas de lavar a roupa que aguardam por sair de um coma na parte de trás da oficina. “Deixe ficar, mas não vou garantir nada”, diz, concluindo com uma das expressões que nenhum dono de electrodomésticos quer ouvir: “Isto foi à vida.”

Mas o que significa “ir à vida” quando, findos os esforços de manutenção e de reparação a que os fabricantes são obrigados por lei, os electrodomésticos deixam de nos servir? Ana Coelho gosta quase tanto desta expressão como de “deitar fora”. “Nós vivemos num planeta finito. Portanto, deitar fora para onde?”, pergunta-se a economista, com formação em Economia Circular e Consumo Sustentável. “Quando se fala do colapso climático, associa-se muito aos transportes e à energia, mas não se associa ao consumo. Não questionamos o impacto que os nossos equipamentos têm.”

Para quem carrega uma liquidificadora estragada pelas cada vez menos lojas de reparação independentes do Porto, “deitar fora” poderá ter vários significados. Dependendo do nível de preocupação ambiental, as sugestões passam por deixar nos caixotes vermelhos que existem em muitos supermercados, entregar nos ecocentros fora do centro da cidade ou deixar junto dos caixotes do lixo para “alguém levar” — “o que não falta por aí são sucateiros”.

Não está errado: a maioria dos resíduos de equipamentos eléctricos e electrónicos (REEE) abandonados na via pública, supostamente para recolha pelos serviços municipalizados, nunca chegam às unidades licenciadas para descontaminar os aparelhos e recuperar os materiais reciclados.

Foi o que percebeu a Associação de Gestão de Resíduos Electrão, num estudo que seguiu o percurso de 73 equipamentos com GPS instalados, entre 2020 e 2021, em 12 dos concelhos mais populosos de Lisboa e Porto. Três em quatro foram desviados para o circuito informal e quase todos transformados “em sucata metálica, sem que seja acautelada a sua descontaminação”, explica o Electrão, libertando-se para a atmosfera os gases de refrigeração que contribuem para o aquecimento global e a destruição da camada de ozono.

Poderá ser a opção mais imediata, mas não é a mais ambientalmente responsável, mesmo para uma liquidificadora. O problema é que mesmo quando os cidadãos se deslocam “aos ecocentros e a outros locais fixos das câmaras municipais, de acesso público, uma parte significativa (37%) destes equipamentos eléctricos usados é desviada”, refere a Electrão.

Inspirado no estudo, em 2021, as três entidades gestoras dos REEE (Electrão, ERP e E-Cycle) apresentaram um projecto para monitorizar por GPS o destino de alguns equipamentos eléctricos e electrónicos que chegam ao seu fim de vida.

Os desvios dos REEE são uma das razões para Portugal ficar muito aquém das metas de recolha impostas pela União Europeia. “Em 2020, [as entidades gestoras] apenas recolheram 15,4% dos equipamentos colocados no mercado, quando a meta das suas licenças era de 65%”, diz a Zero.

Quem impõe o prazo é o fabricante

Reduzir a extracção de novos materiais e da energia necessária para os produzir é o objectivo principal da economia circular, um modelo de abundância, ao invés do risco e escassez a que conduz a economia linear.​ Mas estender o tempo médio de vida das nossas coisas também pode incentivar a criação de novos postos locais de emprego técnico e altamente especializado, conhecimento que foi desvalorizado nas últimas décadas, lamenta a economista Ana Coelho.

Em Portugal, estimativas europeias apontam para 36 mil empregos directos criados até 2030, se forem adoptadas as propostas legislativas contidas no pacote de economia circular, diz o plano de acção do Governo.

Mesmo com as novas leis do direito à reparação, os reparadores independentes poderão estar em risco, diz Carlos Ferreira, 29 anos. Vizinho de uma das mais caricatas lojas de reparações no Porto, “em funcionamento há 80 anos”, Carlos “foi aparecendo e acabou por ficar”, conta Júlio Ginja, que chegou a receber muitos estagiários da escola profissional na Teldis, com apoios públicos.

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Júlio Ginga, da Teldis Tiago Lopes
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Carlos Ferreira Tiago Lopes

“Desmontava rádios em criança e arranjava computadores na adolescência. Conseguir consertar e querer resolver já nasce com a pessoa, depois levamos a vida toda aprender”, diz.

Carlos ainda não se arrepende de não ter terminado a licenciatura em Engenharia Electrotécnica, do Instituto Superior de Engenharia do Porto. Mais dedicado a arranjar máquinas dos dias de hoje, camufladas por uma montanha de rádios, aparelhos de som e vídeo ou leitores de vinil que não têm problemas em voltar a dar música 40 anos depois, acredita “numa inversão”. “O que acontece é que quem impõe o prazo é o fabricante, nem é a evolução tecnológica”, diz.

Na parte de trás da oficina, há uma enfermaria e um cemitério de pequenas placas de circuitos. Logo à entrada, um cartaz diz que podemos ali entregar o nosso electrodoméstico para reciclagem. Mas Júlio Ginja também anda à procura de uma empresa licenciada que dê provas de “tratar as coisas em condições” e que não “esteja apenas interessada em levar metais e outros materiais preciosos”. “Apanharam-nos numa hora em que não há decisões ainda. Estou a acumular ali atrás, porque tenho espaço. Parámos de movimentar o lixo porque vemos o que estamos a fazer, não é sustentável”, diz.

À saída, cruzámo-nos com um cliente que, para surpresa de Carlos, também procurava ajuda para uma liquidificadora. Poderá ser útil saber que, na “compra de um equipamento eléctrico ou electrónico novo, o comerciante é obrigado a aceitar sem custos o equipamento velho”, lembra Hélder Marques.

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Paulo Pimenta
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Lusa/Estela Silva

Clubes” de reparações

O técnico superior da empresa intermunicipal Lipor coordena o projecto Crew, que desde 2019 “dá formação, ferramentas e acesso a equipamentos com potencial de reparação a parceiros” que tentam estender o período de vida útil de equipamentos deitados fora. Entre 2019 e 2021, o Crew “deu formação a 16 técnicos e reparou 950 equipamentos”. “Se a liquidificadora for entregue num destes ‘clubes’, a equipa pode tentar fazer a reparação e depois doar o equipamento às famílias que mais precisam”, diz.

No entanto, os recursos limitados costumam debruçar-se sobre bens de maior necessidade. Chegam-lhes “máquinas de lavar cujo único problema era o filtro entupido” ou “microondas que, substituindo um fusível de um euro, voltam a funcionar”. “Se houvesse uma vontade em repará-los, rapidamente chegavam a esta conclusão”, comenta, mas as expectativas de reparação “deixaram de existir” e com elas as preocupações de um design amigo da reparabilidade.

“Temos de combater estas pequenas coisas que são incorporadas, como parafusos escondidos ou peças coladas”, diz a economista Ana Coelho. “Os donos tornaram-se muito mais utilizadores”, sublinha, com menos poder sobre o destino dos seus aparelhos.

O botão de “reparar” no manual de instruções online da liquidificadora redirecciona para a página dos repair cafes. Hélder Marques e Ana Coelho ajudam a organizar algumas destas iniciativas de reparação conjunta e gratuita no Porto. Nesses encontros, percebem que “há muitas falhas de manutenção”, “falta de conhecimento sobre a reciclagem e reutilização” e “orçamentos de reparação completamente díspares”.

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Ana Coelho e Marisa Escaleira, do projecto Repair Café Porto, em 2018 Joana Gonçalves

“A questão económica é prioritária. O esforço que ainda é necessário para reparar não é compatível com o nível de vida”, observa Ana Coelho. O próximo encontro com organização do projecto Crew está agendado para 12 de Março. A liquidificadora voltou ao armário, por agora.

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