Um telemóvel sem Internet mas cheio de bateria? Eles ainda preferem os simples dumbphones

Da nostalgia a uma necessidade de desligar, há vários motivos para não ter um smartphone e andar com um telemóvel mais básico no bolso. “Tem o que eu preciso: estar contactável. Sinto que [com ele] tenho outro poder sobre as decisões do que quero fazer com o meu tempo.”

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#TBL - Dumbphones Tiago Lopes

É difícil ouvir La Salete Coelho sem ficar com vontade de atirar o iPhone pela janela fora. Ou, então, de o agarrar com mais força e protegê-lo da investigadora que o ataca. É uma estranha sensação, concordar com todos os defeitos do brilhante smartphone e ainda assim defendê-lo perante a alternativa básica — e francamente aborrecida — que nos apresenta: um dumbphone.

Antes de ser lançado o primeiro smartphone, o IBM Simon, há quase 30 anos, estes humildes aparelhos com poucas funcionalidades chamavam-se simplesmente telemóveis. Eram facilmente desmontáveis e incrivelmente duradouros. Serviam para fazer chamadas e enviar mensagens de texto curtas, mas também para ouvir música e tirar fotografias (se a memória assim o permitisse).

Mais tarde, começaram a ter acesso (limitado) à Internet, mas estavam longe de fazer o papel de carteira, agenda, GPS e fonte de entretenimento e de informação. Ainda não exigiam toda a nossa atenção e ainda não reclamavam quando não a recebiam.

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Para La Salete Coelho, as opções no seu Nokia 130 em segunda mão bastam. “Tem o que eu preciso: estar contactável”, apresenta-o. “Sinto que [com ele] tenho outro poder sobre as decisões do que quero fazer com o meu tempo.”

A lanterna e a bateria que dura uma semana são pontos a favor para as estadias frequentes em zonas de países africanos com algumas das mais baixas taxas de acesso à electricidade do mundo.

No entanto, na viagem mais recente a Moçambique, a educadora e investigadora na área da Educação para o Desenvolvimento e para a Cidadania Global levou o telemóvel inteligente do marido, a pedido da família. Viajou sozinha e “sentiam-se mais seguros” sabendo que teria o canivete suíço digital no bolso. “Claro que levei. Não sou fundamentalista”, ri-se a investigadora no Instituto Politécnico de Viana do Castelo e no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto.

“Eu acho que a tecnologia é fabulosa. Sem ela, não trabalhava e não fazia o que faço hoje. Não viajo tanto quanto viajava antes da covid-19, porque redescobrimos a potencialidade de todas estas tecnologias. Agora, temos de ter uma tecnologia e uma economia com valores. Tem de haver consciência e intencionalidade”, defende.

Preocupam-na a exploração de mão-de-obra e de recursos minerais escassos, bem como a montanha crescente de lixo electrónico ilegalmente exportado para países de baixos rendimentos.

A formadora de 42 anos fica contente por a mãe de 84 anos ter um telemóvel que lhe permite fazer videochamadas e deu à filha adolescente um iPhone — em segunda mão. A viver em Viana do Castelo, não vê “coerência na campanha contra a exploração do lítio na serra d’Arga” e o uso massificado de telemóveis inteligentes, que exigem minerais extraídos do outro lado do mundo.

Segundo a campanha europeia Right to Repair, são vendidos na União Europeia 210 milhões de smartphones todos os anos, quase sete a cada segundo. Só a partir dos 25 anos de uso de um telemóvel, é que se começa a compensar as emissões que resultam da produção e do tratamento de fim de vida do aparelho, calcula a coligação de organizações não-governamentais Coolproducts.

“Não sou arrogante ao ponto de achar que sou coerente. Este é um caminho de coerência e esta foi uma das minhas causas”, diz La Salete Coelho, a partir de um computador recondicionado, com autocolantes nas teclas, onde consegue ter WhatsApp através de um emulador de smartphone.

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É difícil chegar a um número de vendas globais, mas ainda há um futuro para os telemóveis mais básicos, para além da gaveta que existe em todas as casas.

A consultora Counterpoint antecipou que se iriam vender mil milhões destes telemóveis em 2021, mais do dobro dos 400 milhões comprados em 2019. A viver maioritariamente na Ásia e África, 1,3 mil milhões de utilizadores de telefones têm dispositivos onde podem ouvir música, abrir aplicações simples ou ir à Internet, indicam os dados da mesma consultora. São muitas as barreiras que os impedem de fazer uma actualização para um telemóvel com mais funcionalidades e rede 4G.

Mas a nostalgia e o desejo de desligar também têm um papel no renascimento destes telemóveis mais básicos, especialmente entre os mais jovens e informados nos países onde o acesso a dados móveis e Wi-Fi é praticamente ilimitado. Os estudantes usam-nos para estarem contactáveis mas concentrados, em períodos de estudo para os exames. Há quem se preocupe com a privacidade e prefira não andar com um smartphone no bolso para todo o lado ou quem fique tão ansioso com as notificações constantes que prefere um telemóvel sem aplicações. Alguns leitores que responderam a um apelo nas redes sociais do P3 também disseram que a sensação de perda de capacidade de concentração e de memória já os levaram a considerar uma desactualização para um dumbphone, mas não queriam perder o acesso a algumas das aplicações que utilizam diariamente.

Em 2017, a Nokia relançou o clássico 3310 (59,99 euros) — preso ao 2G, mas com o Snake num ecrã a cores. Não chegará perto dos 120 milhões de unidades vendidas do “telefone móvel original”, mas, naquele ano, ninguém quis saber de mais nada no Mobile World Congress. Aparentemente, o negócio dos smartphones está tão entediante que até a reencarnação de um “Nokia com 17 anos pode causar agitação”, escreveu o Financial Times.

Levantar-se do computador e desligar

André Águas identifica-se como o “último dos nokianos” ao seu redor. “Tenho algum orgulho”, admite. Parte da resistência é teimosia, diz o copywriter que trabalha numa agência de publicidade em Lisboa. Achou que talvez o nascimento da filha fosse o evento capaz de o fazer render-se, mas quando o momento chegou acabou por comprar uma máquina fotográfica digital. Continua fiel ao Nokia 5310 XpressMusic​, lançado em 2007, o mesmo ano em que Steve Jobs apresentou o primeiro iPhone.

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André Águas nunca teve um smartphone. MATILDE FIESCHI

“Sinto que ainda não preciso”, diz. Tem tanto FOMO (Sigla inglesa para “fear of missing out”, que significa algo como “medo de ficar de fora”), diz, que prefere ficar completamente de fora. Poder levantar-se da frente do computador e ficar desconectado das redes sociais é um mecanismo de autopreservação.

“Se estou sozinho em casa, vou à casa de banho lavar as mãos com o portátil. Fico no Twitter, no computador, a fazer refresh eterno. Acordo e tenho de ver tudo o que perdi enquanto estava a dormir. Sou obsessivo. Se tivesse Internet comigo sempre, não levantava a cabeça”, antecipa. “Como tenho um Nokia, acho que tenho desculpa.”

Desligar as notificações, utilizar apps para bloquear outras apps e poder transformar um telemóvel com aplicações e dados móveis num telemóvel com características (e, por isso, distracções) limitadas é um dos contra-argumentos que os donos de smartphones e de manuais de como largar os smartphones mais vezes lhe apresentam. “Mas eu não confio em mim”, responde. “Se o telefone toca, eu tenho de ver, logo, e responder, logo.”

Todas as semanas, amigos, chefes e colegas de trabalho tentam convencê-lo a comprar telemóvel. Já lhe tentaram oferecer um.

Os amigos enviam-lhe o estado de espírito encapsulado num emoji e ele tem de lembrar que só recebe uns quadrados indecifráveis. “Sempre que saio de casa [e das redes sociais], tenho de avisar: qualquer coisa manda mensagem para o telemóvel ou liga, não respondas aqui”, conta.

De resto, “não pode chamar um Uber” ou alugar uma trotinete na cidade. Mas viajou quatro anos e meio pelo mundo sem um smarphone. “Cibercafés e perguntar a pessoas. Não é difícil”, desvaloriza. Como pergunta um utilizador numa divertida conversa no Reddit, quando é que decidimos colectivamente que “transportar nos nossos bolsos slot machines que recolhem dados é essencial”?

Uma relação saudável com o telemóvel

Alexandra Santos, de 31 anos, não consegue bem dizer porquê, mas resignou-se a um smartphone. Um Samsung já a sair do mercado. Justificar as inconveniências do regresso ao passado quando toda a gente tem os olhos constantemente colados nos ecrãs do presente ficava cada vez mais difícil.

“Andei muito tempo a pensar e só aconteceu porque o meu marido me ofereceu um. Ele andava sempre a impingir-me”, defende-se. Nos primeiros dias, escrevia com o ecrã na horizontal “porque sentia que os meus dedos eram grandes demais para o touch”, ri-se.

Trocou há tão pouco tempo que ainda tem o certificado covid-19 impresso e cuidadosamente dobrado. Desempregada, e com visitas regulares aos serviços das Finanças, sentiu “necessidade de ter documentos digitais e o email à mão”. Sente “mais saudades da bateria”. “Agora tenho de carregar todos os dias, o que é uma infelicidade”, diz.

Instalou uma app para fazer scan de documentos, mas também tem as redes sociais no ecrã principal. “Julgava um bocadinho este vício. No trabalho, durante as pausas, os meus colegas estavam todos com o smartphone e no momento em que podíamos discutir as nossas frustrações de trabalho estavam todos agarrados [aos telemóveis] e eu a comer e a olhar para aquilo.”

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Ainda olha com desconfiança para o ecrã brilhante. “É como uma tentação” e ela sabe o quão fácil é cair. Não se quer deixar seduzir. “Acho que tenho uma relação saudável com o meu telemóvel”, diz, com indiferença. “Olho para ele, se calhar, no máximo, uma hora por dia.”

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