“Mãe, vais ficar orgulhosa de mim”

Homens, mulheres e crianças choram a perda de familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos. Cada um dessas pessoas já descobriu que uma pessoa morta a mais ou a menos faz diferença.

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Moussa, pai do jovem Khaire Alkam, morto pelas autoridades israelitas depois de ter atacado uma sinagoga em Jerusalém Oriental, do qual resultaram pelo menos sete mortos AMMAR AWAD/Reuters

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Em 2022, entre 177 e 220 pessoas morreram em resultado direto do conflito entre Israel e Palestina. Entre 177 e 220 pessoas. O intervalo do número exato de mortos é enorme e, por si só, merece uma reflexão. (Uma pessoa morta a mais ou a menos faz diferença.) Cheguei a esse intervalo cruzando dados da Organização das Nações Unidas (ONU) com os de meios de comunicação social e agências noticiosas nacionais e internacionais.

De um número entre 177 e 220 de pessoas mortas, entre 46 e 48 eram crianças. Um intervalo menor e, por isso, menos suscetível ao erro. (Uma criança morta a mais ou a menos faz diferença.)

Ninguém, a não ser eu próprio, culpo pelos dois intervalos (43 e 2) que aqui apresento. Garanto, todavia, que dei o meu melhor para encontrar um resultado exacto e definitivo que não excluísse uma única vida humana perdida. (Uma vida perdida a mais ou a menos faz diferença.)

Enquanto aqui “conversamos” — ao ler, imagino sempre que converso com o autor do texto, talvez o mesmo aconteça consigo —, homens, mulheres e crianças choram a perda de familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos. Cada um dessas pessoas já descobriu que uma pessoa morta a mais ou a menos faz diferença.

Até agora, não especifiquei, propositadamente, a nacionalidade das pessoas mortas — conhecendo o mínimo do conflito em causa, é fácil de adivinhar para que lado pende o número maior de fatalidades. A minha intenção com a omissão é simples: humanizar os números de um dos conflitos mais longos do mundo, alimentado, como todos os conflitos, por verdades absolutas, extremismos e absurdos.

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Tanto nos diz sobre nós e sobre o mundo e sobre o valor que damos à vida humana o intervalo entre 177 e 220 pessoas ou entre 46 e 48 crianças. Quanto sofrimento cabe nestes intervalos? A resposta só poderá estar na mente e no coração de quem cumpre o luto, e para quem seguramente é indiferente se o seu familiar foi o primeiro morto contabilizado em

2022, o centésimo sétimo ou o ducentésimo vigésimo.

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Na passada quinta-feira, dez pessoas foram mortas no campo de refugiados palestinianos de Jenin.

No dia seguinte, sete pessoas foram mortas junto a uma Sinagoga em Neve Yaakov, Jerusalém Oriental, por um palestiniano de 21 anos chamado Khairy Alqam. A polícia israelita relatou que encontrou Alqam em fuga e que o suspeito foi morto numa troca de tiros. Khairy Alqam herdou o nome do avô, morto há 25 anos por um colonizador israelita. (A vida é um círculo.)

Na Cisjordânia e em Gaza, as pessoas vieram para as ruas comemorar o ataque terrorista. Distribuíram doces às crianças e lançaram fogo de artifício.

No sábado de manhã, uma criança de 13 anos deixou um bilhete para a mãe e saiu de casa. Pouco depois, baleou um oficial das forças de defesa israelitas, de 22 anos, e o pai deste, de 47 anos. O jovem está ligado a um ventilador, o pai está estável. A criança encontra-se em estado grave.

Números em suspenso. O intervalo mantém-se ou diminui?

Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, respondeu aos ataques com medidas que facilitarão o uso de armas aos israelitas.

Autodefesa, ideia legítima para muitos. Perpetuação do conflito, dirão outros.

E a paz?

“Mãe, vais ficar orgulhosa de mim”, lê-se no bilhete.

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Apeirogon -Viagens infinitas (2020) é o título de um livro de Colum McCann. Li-o na primeira semana do ano. A obra, um extraordinário cruzamento entre a realidade e a ficção, baseia-se na história verídica do israelita Rami Elhanan e do palestiniano Bassam Aramin. O primeiro perdeu a filha, Smadar Elhanan, em 1997, numa explosão provocada por bombistas suicidas. Smadar tinha 13 anos. Abir Aramin, filha de Bassam Aramin, foi morta em 2007 por uma bala de borracha disparada por um soldado israelita. Abir tinha 10 anos. O soldado, 18.

Aramin e Elhanan reagiram à morte das suas filhas cultivando uma amizade fraterna. Desde 2007 que viajam pelo mundo a partilhar o luto interminável e a ideia de um fim pacífico para o conflito.

A figura geométrica (apeirogon) com que McCann intitulou o seu livro é um polígono com um número infinito, mas contável de lados, sugerindo que há muitas realidades a considerar quando se pensa no conflito israelo-árabe, demasiadas vezes reduzido a posições extremadas.

Todas as vidas contam.

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“Um israelita é morto, é aplicada a força total da lei. Um palestiniano é morto, a lei basicamente ignora”, declarou o historiador palestino-americano Rashid Khalidi ao PÚBLICO, em maio de 2022, na sequência do lançamento em Portugal do livro Palestina uma biografia – cem anos de guerra e resistência.

Os pais e avós de Rashid Khalidi encontravam-se entre as centenas de milhares de palestinianos obrigados a abandonar a sua terra em 1948. “Dedico este livro aos meus netos, Tariq, Idris e Nur, todos nascidos no século XXI, que, com sorte, verão o fim desta guerra de cem anos”, declara Khalidi logo nas primeiras páginas do livro.

“Era espirituosa, enérgica, alegre, mesmo muito bonita. Uma excelente aluna, nadadora, bailarina também, tocava piano e adorava jazz. Costumávamos chamar-lhe Princesa, o que é um cliché, claro, mas era exatamente isso que ela era para mim, uma princesa, todos os pais conhecem esta sensação, as coisas não são assim tão cliché quando as vivemos”, partilha Rami Elhanan em Apeirogon.

“No ano em que Smadar foi assassinada, nasceu Abir. Mas o que eu não sabia quando Abir foi assassinada é que ela e Smadar continuariam a viver. E não vamos deixar que outras pessoas roubem o seu futuro. Tentem calar-nos, não vai funcionar. Digam o que quiserem. Chamem-me traidor, colaborador, cobarde... Não tem nada a ver com colaboração, nada a ver com normalização, é apenas pura dor, o poder da mesma, e, tal como Rami diz, é atómico. Viver na memória dos outros significa que não se morre”, afirmou Bassam Arami, em 2020, ao site TalkMatters – Jews and Arabs Together.

Histórias como a Smadar Elhanan e Abir Aramin preenchem os intervalos que referi no início deste texto. Todas as vidas contam, contabilizadas ou não.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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