A minha filha está sem professora e não é por causa da greve

Aqueles que agora vêm mostrar preocupação com as aprendizagens dos alunos são os mesmos que durante as últimas duas décadas ignoraram fenómenos crescentes na comunidade escolar.

Por mais que vários comentadores tentem denegrir a luta dos professores, apontando-lhes indecência na forma e ambições inaceitáveis nas reivindicações, o que é real é que por esse país fora há uma efetiva falta de professores. Essa falta, sendo sistémica, deve-se exclusivamente às políticas seguidas nos últimos, pelo menos, 20 anos, com enorme incidência em dois períodos específicos: ministérios de Maria de Lurdes Rodrigues e João Costa.

Não sou eu que digo, quem o diz são os professores a em luta. Não há como negar uma evidência. Duas manifestações, com um enorme número de professores de todo o país, no espaço de um mês, greves e paralisações à porta das escolas diariamente, marchas pelas cidades, vigílias junto às câmaras municipais, têm um significado. Os problemas estão identificados há muito tempo e são do conhecimento de todos. Não há nada de novo, apenas os mesmos problemas, cada vez mais vincados, que provocam uma enorme agrura entre a classe docente.

Aqueles que agora vêm mostrar preocupação com as aprendizagens dos alunos são os mesmos que durante as últimas duas décadas ignoraram fenómenos crescentes na comunidade escolar.

Não me lembro de os ver fazer comentários sobre o decreto que revogou todos os programas e currículos existentes e os substituiu pelas aprendizagens essenciais, tornando o atual estado das aprendizagens em mínimos históricos, como referiu recentemente a Sociedade Portuguesa de Matemática.

Não me lembro de os ver fazer comentários sobre as turmas numerosas onde é quase impossível lecionar.

Não me lembro de os ver fazer comentários sobre a crescente indisciplina em meio escolar. A não ser, claro, quando acontece com um dos seus petizes.

Não me lembro de os ver comentar o facto de haver por esse país fora muitas turmas multinível, onde numa mesma sala estão alunos de mais do que dois, três ou quatro níveis de escolaridade.

Não me lembro de virem comentar quando eliminaram o único indicador externo de controlo das aprendizagens, os exames, e os substituíram por inócuas provas de aferição que, de tão credíveis que são, indicaram Portugal como sendo o único país no mundo em que os alunos estão melhor academicamente do que antes da pandemia.

Não me lembro de virem comentar quando introduziram no sistema os DL 54 e 55, que vieram trazer às escolas, nomeadamente, uma inclusão que não é mais que uma exclusão dupla, devido à falta de meios para a operacionalizar e uma flexibilização tal do currículo que todos têm via verde para transitar durante a escolaridade obrigatória. Ficando nos “cornos do touro” o professor que ouse reter um aluno que nada fez durante o ano.

Não me lembro de virem comentar quando nas escolas faltam assistentes operacionais para cuidar e vigiar os respetivos filhos. Podendo deixar as crias no interior da escola já é o suficiente. Têm de trabalhar, dizem.

Não me lembro de virem comentar quando nas escolas faltam psicólogos e terapeutas capazes de fazer face às requisições dos alunos.

Não me lembro e até me podem acusar de memória curta, mas a realidade difere daquilo que querem passar.

A minha filha tem a professora legitimamente de baixa há três semanas e ainda não há substituição.

Será que algum professor está disponível para vir dar aulas, temporariamente, para Lisboa, onde um quarto não custa menos de 450 euros? De certeza que prefere abandonar provisoriamente a profissão, trabalhando numa caixa de supermercado, até que surja alguma vaga pela qual não tenha de pagar para trabalhar. Três semanas sem aulas. Onde ficam as aprendizagens perdidas? Quem se preocupa?

Será que o problema está nas greves que os professores têm feito, exatamente para reivindicar, entre outras coisas, a melhoria de condições de carreira para que estes casos não aconteçam? A narrativa incendiária do ministro acha que sim! Os 120 mil professores têm a certeza de que não!

O problema da falta de professores não está só no recrutamento e vinculação. Creio até que esse seja um problema de somenos. A redução da dimensão dos QZP, de dez para 63, a possibilidade de a permuta ser aumentada, assim como todos, todos os anos, conforme a graduação, poderem concorrer aos quadros, são medidas importantes, mas esquecer a recuperação do tempo de serviço é indecente!

As principais reivindicações são na senda de melhorar, sobretudo, as condições globais. Ajustando e melhorando estas condições, os atuais professores não abandonarão a profissão e os futuros candidatos surgirão naturalmente. O foco destas negociações deve ser esse. Caso contrário, continuaremos no caminho que nos levará à efetiva falta generalizada de professores. Esta, por sua vez, conduzir-nos-á a um estado de emergência educativa e a termos de recorrer a “qualquer um” que aceite desempenhar a função de professor por um valor bem mais atrativo para quem contrata.

Quais as soluções que deverão ser equacionadas para combater este flagelo? Dignificar e tornar a carreira mais atrativa, passa em primeiro lugar por devolver alguma dignidade aos professores, reconhecendo o tempo de serviço efetivamente trabalhado para efeitos de progressão, eliminando as quotas e revendo os índices remuneratórios que, como já tive oportunidade de escrever, sofreram desde 2009 uma atualização absurda. No índice 167, que corresponde aos professores contratados e no primeiro escalão da carreira, o aumento foi de 18,27 euros brutos, em 13 anos. Revelador da falta de investimento!

Alargar as possibilidades de vinculação de acordo com as reais necessidades do sistema, dando incentivos para professores deslocados, garantindo a equidade nos descontos para a segurança social entre professores com horários completos e incompletos, completando estes últimos para se tornarem mais apelativos para os candidatos. Rever a situação desajustada dos monodocentes, criar condições organizacionais promotoras de ambientes saudáveis de aprendizagem, começando desde logo por rever o modelo de gestão dos estabelecimentos de ensino, recuperando a sua democraticidade.

Revalorizando o currículo que tem sofrido demasiadas alterações de eficácia pedagógica questionável. Reduzindo o número de alunos por turma e definindo o máximo de alunos por professor. Revendo a Avaliação de Desempenho Docente, abolindo a classificação do desempenho, feita entre pares. Atribuindo mais meios para a inclusão, reduzindo drasticamente a burocracia escolar, redefinir as tarefas que são da competência dos serviços e as que são dos professores, devolvendo-lhes o tempo necessário para se poderem focar na sua primordial tarefa, ensinar.

Combater veementemente a indisciplina e violência em meio escolar. É essencial que haja um sinal claro por parte da tutela de que haverá tolerância zero no que toca a indisciplina em meio escolar. Simultaneamente, deverão ser criadas redes de apoio sociais e comunitárias que, em colaboração com as escolas, deverão prevenir estas situações a montante, no seio do problema que é maioritariamente fora da escola.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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