Jair foi embora, mas Bolsonaro não sai da vida dos brasileiros

Os não-bolsonaristas esperam que os bolsonaristas saiam da frente dos quartéis e restabeleçam a normalidade dos conflitos familiares. Mas, provavelmente, terão de esperar 72 horas.

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Manifestação em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, no passado dia 17 de Dezembro Valter Campanato/Agência Brasil

“É como se ela tivesse sido abduzida por ETs!” Assim uma amiga exprimiu como se sente em relação à irmã, tragada por um looping de vídeos de notícias falsas do Facebook. Até tentou conversar, mas a violência da resposta interditou novas tentativas. Foi proibida de falar de política e, no Natal, deu graças ao vinho por tornar o ambiente à mesa respirável.

Não sei como foi o Natal da excelente escritora e colunista Tati Bernardi, que descreveu na revista piauí a sensível relação com um pai bolsonarista. E não deixo de pensar que, se meu pai estivesse vivo, eu talvez enfrentasse o mesmo dilema. Por sorte, só um tio mais distante continuou “fechado com Bolsonaro”. Outros parentes, apesar de terem votado no agora quase ex-presidente, mantiveram uma dieta informacional saudável e puderam ver os danos à população durante a pandemia e à democracia durante os quatro longos anos de seu mandato.

Foi um fim de ano estranho no Brasil. A preocupação dos brasileiros não era com a tia que costuma perguntar sobre o namoradinho. Nem com a mãe que exige um neto. Nem com o tio que pede empréstimo. Nem com o primo que exagera na bebida bebe e acaba a ceia largado no sofá da sala.

Queria ver uma versão dessa piada que expusesse o risco de topar com alguma menção a Venezuela, vacinas contra covid, Alexandre de Moraes, Forças Armadas ou banheiro unissex (essa recomendação de uma casa de banho sem distinção de gênero que parece causar bem menos polêmica em Portugal). Parabéns às famílias brasileiras que sobreviveram a esse extenso campo minado de assuntos nas festas.

Infelizmente, porém, o risco de topar com o bolsonarismo radical (será que isso já se tornou um pleonasmo a essa altura?) vai além da sala de estar: espreita todos os ambientes. Do grupo de WhatsApp à fila da padaria. Outra amiga me disse que está com receio de passear com o cachorro nas ruas de uma cidade do interior de São Paulo. Invariavelmente topa com alguém que para para fazer festinha e, do nada, desanda a falar que Lula não vai ser presidente, que essa informação foi confirmada pelas fontes lá da frente do quartel. Que o sujeito preso com explosivos em Brasília era, na verdade, do PT.

Agora, imagine: se já é difícil conter o ímpeto de dar uma resposta atravessada a um primo querido, que dirá refrear o instinto de dizer a um ilustre desconhecido que o próprio suspeito confirmou ter comprado 30 mil euros em armamentos incentivado por Bolsonaro. Trata-se de um esforço constante de autocontrole que não deve cessar com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.

Aos leitores que acreditam que os protestos contra o resultado — idôneo e atestado — das eleições haviam terminado ainda em outubro, um esclarecimento: as manifestações verde-amarelo resistiram à Copa do Mundo e ao Natal, ainda que mais magras (diferentemente de nós, após o festerê todo).

Ainda é difícil saber o que acontecerá com esses acampamentos. Viraram até piada no Brasil os avisos seguidos de que, “nas próximas 72 horas”, haveria um sinal de Bolsonaro sobre os próximos passos da “revolução”. Os bolsonaristas esperaram 72 horas “n” vezes — e podem esperar mais, mesmo que seu líder tenha batido em retirada para os Estados Unidos.

Para quem se recusa a ver o desastre da gestão, não é difícil justificar a fuga para Orlando. No universo paralelo, Bolsonaro viajou para denunciar ao mundo a suposta fraude eleitoral e buscar reforços para que as Forças Armadas "salvem" o Brasil. Um desavisado ainda questionaria: não seria melhor ter se pronunciado antes de o novo governo já ter até ministério? Não, dirão eles: tudo corre como previsto. Em São Paulo, nesta sexta-feira (30), um grupo em frente ao Comando Militar do Sudeste chegou a comemorar quando a bandeira nacional foi baixada a meio-mastro. A ação fazia parte do luto oficial pela morte de Pelé.

Se nada os demoveu até aqui, duvido que algo os demoverá daqui 72 horas. Bolsonaro passou anos dizendo que, ao fim de seu mandato, havia três caminhos possíveis: a vitória, a prisão ou a morte — e ele não seria preso. Esticou a corda semântica até onde pôde com seus adeptos.

Quando o entrevistei para o PÚBLICO, o professor Pablo Ortellado disse algo que ficou reverberando em minha cabeça: “Se, por um lado, estimular essa paixão gera votos, por outro, o grupo político acaba por se tornar refém desse público radicalizado, que não aceita situações de compromisso.”

Às vésperas de perder o foro privilegiado — direito das autoridades brasileiras de serem investigadas e processadas apenas por instâncias superiores, e geralmente mais morosas, da Justiça —, Bolsonaro perdeu também o controle de seu radicalizado rebanho. Mas é com ele que nós, brasileiros, teremos que lidar por um bom tempo. Nas festas, no passeio com o cachorro, na vida.

Estou satisfeita que o resultado das urnas seja respeitado. Mas não será uma caminhadinha de Lula na rampa do Palácio do Planalto que porá fim ao bolsonarismo. Em algum grupo no WhatsApp vão dizer que receberam a informação de que se trata de um sósia, preparado pela Nova Ordem Mundial para implantar o comunismo no Brasil. Pelo sim, pelo não, vou tentar trazer meu cachorro o mais rápido possível para Portugal. Aqui, ao menos, os comunistas e socialistas parecem discutir direitos trabalhistas e justiça social. Não é inacreditável?

*Se este texto fosse um podcast, poderia ter essa trilha sonora:


A autora escreve em português do Brasil.

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