Serralves: uma floresta de seres híbridos reivindica justiça ambiental

A primeira exposição individual da artista brasileira Rivane Neuenschwander em Portugal coloca uma floresta inteira a protestar nas ruas. Para ver até 9 de Abril no Museu de Serralves, no Porto.

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A arara é uma das figuras que compõem a floresta de seres híbridos que desfilou pelas ruas de São Paulo Eduardo Ortega/DR
EXPOSICAO SEMENTES SELVAGENS DA ARTISTA PLASTICA BRASILEIRA RIVANE NEUENSCWANDER NA FUNDACAO SERRALVES
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O filme Eu sou uma Arara recorda a urgência da luta ecológica Adriano Miranda
EXPOSICAO SEMENTES SELVAGENS DA ARTISTA PLASTICA BRASILEIRA RIVANE NEUENSCWANDER NA FUNDACAO SERRALVES
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A média-metragem exibida no Museu de Serralves alerta para a destruição da Amazónia Adriano Miranda

“Amazónia e o ponto de não-retorno.” “Rebeldia dos biomas.” “Reviravolta de gaia.” Estas são algumas das palavras de ordem empunhadas por seres híbridos, pessoas com máscaras e trajes inspirados na flora e na fauna brasileiras. Juntas, compõem uma floresta prodigiosa que perambula pelas ruas de São Paulo a distribuir mensagens revolucionárias, pedras subversivas e bombas de sementes. Parece uma festa carnavalesca – e é, de algum modo –, mas a explosão de cores reivindica mais do que celebra. Justiça ambiental e direitos humanos são as exigências que ecoam na sala central do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto.

Chama-se Sementes Selvagens a primeira exposição individual da artista brasileira Rivane Neuenschwander em Portugal. O eixo da mostra em Serralves é o filme Eu Sou uma Arara, realizado em parceria com a cineasta Mariana Lacerda. Trata-se de uma obra que documenta a tensão sociopolítica no Brasil durante a campanha das eleições presidenciais e que, ao mesmo tempo, convoca para a luta por direitos humanos e ambientais.

“Este filme funciona como um alerta para a destruição ambiental e o genocídio da população indígena. É um projecto muito urgente e de muita coragem”, afirma ao PÚBLICO Inês Grosso, curadora da exposição Sementes Selvagens, que pode ser visitada em Serralves até 9 de Abril de 2023. Além da média-metragem Eu Sou uma Arara, a mostra reúne outros trabalhos de Rivane Neuenschwander no museu e na capela da Casa de Serralves.

A curadora-chefe de Serralves explica que a mostra começou a ser pensada “enquanto tudo estava a acontecer”. E, aqui, o “tudo” desdobra-se em diferentes coisas: as acções de rua protagonizadas pelos tais seres híbridos da floresta prodigiosa imaginada por Rivane, uma campanha eleitoral muito tensa que dividiu o Brasil (os resultados nas urnas, que deram vitória a Luís Inácio Lula da Silva, mostraram isso mesmo – um país partido ao meio) e a Amazónia sendo aniquilada a um ritmo inédito. Só em 2021, mais de 1,5 milhões de hectares de floresta tropical primária foram devastados no país.

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Rivane Neuenschwander e Mariana Lacerda, as autoras do filme Eu Sou uma Arara Nuno Vasco/DR

“Tudo começou com um grupo de cerca de dez pessoas, a maioria artistas e activistas que Rivane começou a convidar. Ela própria produziu aquelas roupas todas. Todas as máscaras e todos os figurinos foram feitos com a ajuda de dois assistentes que trabalham no atelier”, explica Inês Grosso, para dar a medida do trabalho manual laborioso que é confeccionar os animais, os fungos e os vegetais da floresta prodigiosa.

O primeiro desfile dos seres híbridos pelas ruas paulistas, realizado a 2 de Outubro de 2021, fundiu-se com uma manifestação que reivindicava a saída do Presidente Jair Bolsonaro do poder. Contava com apenas uma dezena de pessoas a transfigurarem-se em outros seres vivos um colectivo que ficou conhecido como floresta de cristal, numa referência aos espíritos amazónicos. Um ano depois, já seriam à volta de uma centena. “Uma floresta que foi crescendo e adensando”, resume Inês Grosso.

A cada mês, um novo desfile urbano ocorria, cada vez com maior biodiversidade nos figurinos. A lista de integrantes da floresta inclui nomes conhecidos do mundo cultural como João Fernandes, que já dirigiu Serralves e, hoje, está à frente do Instituto Moreira Salles. Foi um ano intenso durante o qual representações dos biomas brasileiros ocuparam as ruas, interpelaram pessoas, semearam ideias e promoveram encontros (tensos, alguns deles).

“É difícil ficar indiferente a estas figuras. Houve quem ficasse extasiado mas também que reagisse com violência. Estive lá, [em São Paulo], e vi a força que tinha, em plena tensão pré-eleitoral, um grupo vestido com uma série de figurinos inspirados na flora e na fauna brasileiras a circular pelas ruas”, descreve Inês Grosso. A curadora mantém uma relação estreita com o Brasil, já tendo trabalhado com o Instituto Inhotim, em Minas Gerais, entre 2011 e 2014.

O povo indígena Bororo

“Eu sou uma arara” é uma expressão conhecida dos Bororo, povo indígena que vive no estado brasileiro do Mato Grosso. O texto de apresentação de Sementes Selvagens recorda que, “ao longo dos séculos, foram vários os filósofos e antropólogos que utilizaram esta afirmação [dos Bororo] como ponto de partida para discutir uma série de relações entre o pensamento primitivo e o ocidental, mas também entre o pensamento mítico e o científico, entre humanos e não-humanos e entre natureza e cultura”.

Ao recuperarem a ideia de que podemos ser araras para o título do filme, tanto Rivane como a cineasta Mariana Lacerda recordam-nos quão artificial é a fronteira entre os humanos e a natureza. E sublinham como a tentativa constante de dominar a natureza, seja através da exploração insustentável de recursos, seja através da erosão de ecossistemas, pode resultar na autodestruição da humanidade.

Há uma parte do filme que nos traz uma arara colorida, girando em plena Avenida Paulista, o coração financeiro do Brasil. Sobre estas imagens de esplendor e vertigem, ouve-se: “A dominação dos humanos é indissociável do desejo de dominação das coisas. Não querer dominar as coisas, descobrir a humanidade das coisas, é o passo fundamental para nos livrarmos da dominação dos humanos, por isto, emancipados, emancipados eram os índios Bororos que diziam ‘eu sou uma arara’. Nunca foi tão evidente a incompatibilidade radical entre o capitalismo e a vida.”

Quem vê o filme, em pé ou deitado em almofadas espalhadas pelo chão do museu, percebe claramente como as acções de rua de Eu Sou uma Arara se colocam ao lado do candidato Lula. Este posicionamento é claro também para quem acompanha Rivane nas redes sociais. Inês Grosso vê esta escolha mais como um abraçar dos valores democráticos, civilizacionais e ambientais do que uma opção partidária.

“Como tantos outros artistas, Rivane teve a coragem de se colocar contra um regime opressor”, diz a curadora. Em causa estão não só a destruição da Amazónia, mas também políticas que os críticos de Bolsonaro acreditam terem contribuído para aprofundar desigualdades e discriminações. “Esta é a grande luta no Brasil: escolher entre a barbárie e valores democráticos”, resume Inês Grosso.

Um filme actual ou datado?

A eleição de Lula foi vista pela comunidade internacional como uma janela de oportunidade para travar a destruição da Amazónia. Líderes mundiais sublinharam a questão ambiental quando saudaram o presidente eleito após a contagem dos votos. Será que, com a vitória do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), a média-metragem Eu Sou Arara perde força ou actualidade? Inês Grosso garante que não. Da Cimeira do Clima no Egipto aos protestos no Irão, são muitos os sinais de que a justiça ambiental e os direitos humanos continuam na ordem do dia.

“Nós próprios colocámo-nos esta questão, se o filme ficaria datado. Três dias depois de arrancarmos com a exposição tínhamos uma primeira-ministra de extrema-direita a ser eleita em Itália. Para além da questão ambiental, partidos populistas estão a ascender na Europa. Os direitos humanos são discussões que não vão ficar datadas, infelizmente. Além disso, o filme documenta um período histórico de tensão no Brasil. E a tensão desta divisão continua”, observa a curadora-chefe de Serralves.

A exposição Sementes Selvagens divide-se em dois espaços de Serralves, o museu e a capela Adriano Miranda
O trabalho "Desejo o seu desejo" consiste numa série de fitas coloridas inspiradas no Senhor do Bonfim Adriano Miranda
Em cada fita, há um desejo escrito Adriano Miranda
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A exposição Sementes Selvagens divide-se em dois espaços de Serralves, o museu e a capela Adriano Miranda

Inês Grosso prevê para 2023 actividades paralelas à exposição como uma conversa, ainda sem data definida, entre a escritora e investigadora indígena Ellen Lima Wassu, o curador brasileiro Bernardo de Souza e a curadora e activista portuguesa Margarida Mendes. O objectivo é reforçar a aposta da Fundação de Serralves na área do ambiente e da sustentabilidade, uma preocupação que atravessa a programação museológica e iniciativas como o Bioblitz.

Rivane Neuenschwander é uma das artistas brasileiras da actualidade com maior reconhecimento internacional. Herdeira do legado neoconcretista de nomes como Hélio Oiticica e Lygia Pape, a autora está representada em colecções de museus de arte contemporânea como o de Nova Iorque (Moma) e o de Londres (Tate Modern). Como o jornal New York Times observou num artigo publicado há 12 anos, o trabalho da artista tem um lado lúdico, festivo, mas fala de coisas sérias – e dolorosas também, como no caso da média-metragem agora em exibição.

“Há um antropólogo que a Rivane cita muito, [o compositor Luiz Antônio Simas], que diz que ninguém faz festa porque a vida é boa”, nota Inês Grosso. Vir para a rua atirar confete também pode ser uma forma de reivindicar o espaço urbano como zona de protesto e luta. Ou até de catarse colectiva. Festeja-se contra o fim do mundo. Por isso, não se enganem com os rodopios das aves coloridas – é um festival de cor e beleza, sim, mas esta celebração encerra um revolucionário convite à mudança.

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