Ex-juiz Rui Rangel e Luís Filipe Vieira vão a julgamento no caso Lex

Supremo Tribunal de Justiça considera haver indícios suficientes do cometimento de crimes por parte de todos os 17 arguidos, incluindo o ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa Vaz das Neves.

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Ex-juiz Rui Rangel vai a julgamento no processo Lex LUSA/ANTÓNIO PEDRO SANTOS

O ex-juiz Rui Rangel, que durante anos levou uma vida de luxo muito acima das suas possibilidades, vai ser julgado por corrupção e vários outros crimes de colarinho branco, num total de 21 delitos, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça esta sexta-feira.

Remetido para julgamento foram igualmente o ex-presidente do Benfica Luís Filipe Vieira - que recorreu ao magistrado para tentar acelerar um processo judicial a correr no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra relativo à cobrança de 1,6 milhões de IRS que lhe tinha sido feita indevidamente pelas Finanças - e o antigo presidente do Tribunal da Relação de Lisboa Luís Vaz das Neves, suspeito de ter viciado a distribuição de alguns processos para que fossem parar às mãos de determinados juízes. E ainda o empresário do futebol José Veiga. Aliás, todos os 17 arguidos do processo que deu origem à Operação Lex irão a julgamento.

Enquanto exerceu funções no Tribunal da Relação de Lisboa como desembargador, Rui Rangel terá vendido a terceiros a sua influência em processos judiciais, quer proferindo decisões favoráveis a quem lhe pagava quer influenciando decisões de outros magistrados. Além disso, segundo o Ministério Público acumulou com a magistratura actividades que lhe estavam vedadas por lei por ser juiz, da angariação imobiliária à consultoria jurídica.

Ainda assim, o dinheiro que arrecadava com estas actividades paralelas e que lhe estavam vedadas parecia quase nunca ser suficiente para cobrir as despesas. Senhorios de algumas das casas onde morou, operadoras de telemóveis e outros fornecedores de serviços viram várias vezes o juiz acumular-lhes dívidas. Num dos casos Rui Rangel viu-se mesmo na iminência de ser despejado.

Apartamentos, carro e outras despesas

Entre 2012 e 2018 habitou consecutivamente em três apartamentos em Lisboa. E se a renda do primeiro deles lhe levava 75% do vencimento, que na altura não ultrapassava os 3100 euros mensais, já o segundo, situado na Avenida Infante Santo, no bairro da Lapa, ultrapassava o seu salário: alugou-o por 3500 euros. Se juntarmos a isto as prestações do BMW X6 que conduzia, os colégios dos filhos e outras despesas sumptuárias é fácil concluir que o salário de magistrado era claramente insuficiente.

Um almoço para 30 pessoas na Estalagem do Farol, em Cascais, custou-lhe por exemplo perto de 19 mil euros. Outras despesas consideradas “incomportáveis para a bolsa do juiz nacional” incluem um colchão com sommier e cabeceira comprado por 5200 euros e uma conta do El Corte Inglés de nove mil, com entrega da mercadoria em casa.

Para ficar com tempo livre para as actividades paralelas, Rui Rangel entregou a elaboração de dezenas e dezenas de sentenças à sua mulher, a também juíza Fátima Galante, com quem já há muito não vivia. Por forma a esconder a origem ilícita de muitos dos seus rendimentos, diz ainda a acusação, o magistrado recorria quer às namoradas, a quem pagava muitas despesas, quer a amigos que lhe guardavam o dinheiro e lhe faziam pagamentos, por forma a que algumas das somas que lhe eram pagas pelos favores que concedia não passassem pelas suas contas bancárias. Seria o caso do advogado José Santos Martins, que por seu turno recorreu a um filho e a um enteado para fazer circular o dinheiro sujo e para fazer pagamentos de despesas que eram de Rangel ou das suas namoradas.

O principal arguido da Operação Lex não tinha nada a ver com o processo tributário de Luís Filipe Vieira. Mas foi frequentemente agraciado pelo Benfica com convites para a bancada presidencial para assistir aos jogos e com viagens e estadia paga quando estes desafios se desenrolavam no estrangeiro. Para o juiz conselheiro Sénio Alves, que remeteu os arguidos para julgamento, estas ofertas não eram feitas de forma desinteressada pelos então dirigentes do Benfica, nomeadamente por Vieira e pelo seu vice Fernando Tavares, mas sim por Rangel poder exercer a sua influência mesmo em tribunais onde nunca trabalhara, como o de Sintra.

De resto, o magistrado chegou a prometer ao dirigente desportivo interceder por ele. A vintena de convites e as viagens oferecidos a Rangel a partir de 2014 destinavam-se "a criar um clima de proximidade e permeabilidade", concluiu o Supremo Tribunal de Justiça. Não eram meras ofertas de cortesia, como defendia o advogado do ex-dirigente desportivo.

“A ver se aperto com o Rangel, a ver se a gente resolve aquela merda agora ou carago”, foi apanhado Vieira a dizer ao telefone ao Jorge Barroso, um advogado próximo de ambos, na Primavera de 2017, altura em que sugeriu ao desembargador ir com ele ao Tribunal de Sintra.

Abuso de poder e corrupção passiva

Já o ex-presidente do Tribunal da Relação Vaz das Neves irá responder em tribunal pelos crimes de abuso de poder e corrupção passiva. Terá cedido aos pedidos de José Veiga para distribuir um processo em que estava envolvido a juízes com cuja benevolência sabia poder contar. Em causa uma fuga aos impostos devidos pela transferência do jogador João Vieira Pinto para o Sporting, em 2000.

Condenado em primeira instância a uma pena suspensa de quatro anos e seis meses de prisão por fraude fiscal e branqueamento de capitais, o ex-agente de futebolistas conseguiu uma absolvição na Relação de Lisboa. Tomada em 2013, a decisão coube ao desembargador Rui Gonçalves, que não é arguido neste processo. Os então dirigentes do Sporting Luís Duque e Rui Meireles foram igualmente ilibados. Veiga terá financiado a candidatura do juiz à presidência do Benfica. "Inexistia qualquer fundamento para a distribuição manual deste processo", concluiu Sénio Alves.

Ex-mulher de Rui Rangel, a igualmente desembargadora Fátima Galante também irá a julgamento, sendo-lhe assacado um rol de nove crimes em cumplicidade com o magistrado, do abuso de poder à corrupção e à fraude fiscal, o mesmo sucedendo a outras duas companheiras do juiz, Bruna do Amaral e Rita Figueira. Esta última tentou assumir os delitos de que é acusada em troca da suspensão provisória do processo, mas a moldura penal destes crimes é demasiado elevada para que pudesse recorrer a esta espécie de perdão da justiça.

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