A memória do que foi e não morre

A biblioteca da Faculdade de Direito da UL é uma testemunha silenciosa da evolução histórica do ensino superior em Portugal e das próprias vicissitudes da história política do país no século XX.

O título é tomado de empréstimo ao saudoso Eduardo Lourenço, a um dito seu sobre os livros e as bibliotecas. Uso-o para assinalar a inauguração, neste mês de Dezembro, do novo edifício da biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Embora albergando um espólio muito vasto, que passa por grande parte das bibliotecas de antigos homens de Estado, como Andrade Corvo, de académicos, como Marnoco e Sousa, uma valiosa colecção de praxistas e de livros anteriores a 1800, não se trata de uma verdadeira biblioteca histórica, no sentido técnico da expressão – são, sobretudo, cerca de 200.000 monografias, 1500 títulos de revistas (das quais 253 activas), várias bases de dados e mais de 400 e-books que constituem o acervo destinado à sua função principal, a de servir a aprendizagem e a investigação. Desempenha um papel essencial no apoio à formação de estudantes de mestrado e doutoramento, a maior parte deles oriunda dos PALOP e, sobretudo, do Brasil.

A biblioteca é uma testemunha silenciosa não só da evolução histórica do ensino superior em Portugal como das próprias vicissitudes da história política do país no século XX. A criação da Universidade de Lisboa (e do Porto), em 1911, é obra da República. A Faculdade de Estudos Sociais e de Direito (como se chamava) teve como primeiro director, em Março de 1914, Afonso Costa – demitido pela Ditadura militar em 1927, sem dependência de processo disciplinar, como o haveria de ser Barbosa de Magalhães em 1941, sujeito a aposentação compulsiva na sequência das críticas à Concordata celebrada pelo Estado português com a Santa Sé.

Infelizmente, não foram os únicos e os derradeiros assomos de intolerância e desrespeito pela liberdade de pensamento e de ensino: o clima de radicalismo sectário que campeou no país no período pós-Revolução anterior à consolidação das instituições democrático-constitucionais esteve na base de saneamentos vários e indiscriminados, mesmo de figuras que não tinham tido compromisso político com o regime ditatorial.

A normalidade institucional da faculdade, acompanhando a normalização constitucional do país, só haveria de ser alcançada na consequência da reestruturação determinada pelo ministro da Educação Mário Sottomayor Cardia, em Dezembro de 1976, e cuja comissão era presidida pela professora Isabel de Magalhães Colaço e integrada, entre outros, pelos professores Carlos Alberto da Mota Pinto e António de Sousa Franco e pelos licenciados Marcelo Rebelo de Sousa, Miguel Galvão Teles e Vítor Constâncio.

Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa foi recrutada uma parte considerável do pessoal político do Estado Novo. Mas aqui estudaram também as quatro figuras fundadoras civis do regime democrático instaurado com a Revolução de Abril de 1974: Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e Diogo Freitas do Amaral.

O primeiro professor bibliotecário, entre 1914 e 1922, foi Fernando Emygdio da Silva (que conheci pessoalmente, muito perto do final da sua vida). Estava a faculdade instalada no Palácio Valmor, no Campo de Santana, tendo sido transferida para o Campo Grande (projecto do arquitecto Pardal Monteiro) em 15 de Dezembro de 1958.

Em Fevereiro de 2001, foram inauguradas as novas instalações da biblioteca e a ampliação dos edifícios da faculdade, no final do mandato do presidente do conselho directivo do professor Jorge Miranda, o grande impulsionador desta obra. Como professores bibliotecários, para além de Fernando Emygdio da Silva, estiveram, entre outros, Paulo Merêa, Adelino da Palma Carlos, Isabel de Magalhães Colaço, Diogo Freitas do Amaral, Ruy e Martim de Albuquerque, até ao seu responsável actual, Miguel Teixeira de Sousa.

Estas referências não constituem um exercício de “dropping names”, mas um ensaio de memória sobre a história política, cívica e cultural do século XX e dos inícios deste século. As universidades não são, como dizia ironicamente António José de Almeida, “recintos fechados” onde se comunga da “hóstia do catedraticismo” (cito de memória): a história da Faculdade de Direito de Lisboa e o modo como espelhou a história do país ao longo de mais de um século é exemplo disso mesmo. As democracias constitucionais não se fazem apenas de representação parlamentar, separação de poderes e imprensa livre, mas também de uma sociedade civil autónoma e de instituições fortes.

Se bem que me falte o arrojo metafísico de Eduardo Lourenço, quando dizia que uma biblioteca é um “sacrário dedicado à eternidade”, direi, mais modestamente, que é um apoio incontornável ao saber e ao pensamento crítico e um antídoto contra a ligeireza da “espuma dos dias” e contra o fechamento do pensamento dogmático.

Professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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