A centenária Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDL) está no futuro de Portugal

Sem financiamento adequado, ao sabor de decisões sem projeto político e sem ideologia, são imensos os desafios que uma escola de ensino universitário de Direito fundada no século XIII e refundada em 1913 tem pela frente.

Ao encerrar as comemorações do centenário da sua refundação, no próximo dia 13 de Dezembro, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa celebra o futuro. Um futuro que sucessivas gerações de professores, alunos e funcionários souberam construir, passando – com a intensidade de quem, a partir da escola, fez o país – por todas as contradições, agruras e felicidades que marcaram os últimos 100 anos de Portugal.

Refundada no ambiente político que se seguiu à implantação da república, a escola universitária de ensino do Direito em Lisboa teve como primeiro diretor o polémico Afonso Costa. Desde a sua fundação, a escola passou pela experiência da intervenção governamental em quase todos os períodos da sua história. A forma como se fez presente o Estado Novo na nossa faculdade deixou as suas cicatrizes. A resistência dos estudantes à ditadura marcou a identidade académica da FDL e influenciou decisivamente a forma como entre nós é considerada a participação dos alunos no governo da escola.

Depois da Revolução de 25 de Abril de 1974 e após o período mais agudo do PREC, vivido com grande entusiasmo na FDL, a vida escolar foi-se estabilizando e muitos docentes puderam regressar às aulas. A vida institucional normalizou-se. A lei fixa, então, uma forma de governo eleito que valoriza a participação de todos os membros da comunidade académica. A diversidade das suas opiniões é institucionalizada em órgãos eleitos que aproximam as decisões colegiais dos seus destinatários.

Começou, assim, um futuro que assentava numa tradição de ensino jurídico renovada pela juventude inconformada que exige mudanças; um futuro que representava para nós a possibilidade de cumprir a esperança de uma comunidade nacional que ansiava por uma justiça sempre adiada.

Com a lei da autonomia universitária de 1988 a FDL viu reforçada uma reivindicação antiga que encontrava na voz inconformada do prof. Jorge Miranda o seu expoente mais ilustre. Não há universidade sem autonomia. Uma autonomia com conteúdos normativos que garantem a sua efetividade. Uma autonomia que não permita interferências dos poderes externos instituídos, seja qual for a sua natureza, legitimidade ou intenção.

Infelizmente a vida democrática da escola e a sua autonomia face aos poderes sofreram um forte revés quando, na sequência de uma série de tentativas protagonizadas por burocratas e depois por governantes e legisladores, o regime jurídico das instituições de ensino superior (RJIES), com palavras enganosas e muitas manhas, acabou com os governos democráticos nas universidades e nas faculdades e com a autonomia universitária tal como ela deve ser praticada.

As universidades tornaram-se instituições empresariais burocratizadas, governadas por gestores distanciados das academias; com conselhos gerais poderosos mas sem reconhecimento ou proximidade das escolas e dos seus membros; a autonomia das faculdades (desvalorizadas pelo legislador com a designação de “unidades orgânicas”), estruturante da autonomia universitária, deixou de existir; a possibilidade de fazer receita própria eliminada pela aplicação das leis da administração pública; o apoio escolar aos alunos em dificuldades impedida pelas normas fiscais; o controlo da despesa impossibilitado pelos preços exagerados de serviços prestados pelo Estado que a lei impõem às faculdades; a troca de funcionários por empregados de empresas em outsorcing para efetuar tarefas essenciais ao funcionamento das faculdades; os pagamentos que a escola deve efetuar pelos seus funcionários às instituições sociais públicas como se de uma entidade patronal privada se tratasse; e mais um rosário imenso de normas sem sentido, contraditórias e prejudiciais…

Governantes sem rumo, sem cuidarem do ensino universitário, sem cultura para entenderem a missão da universidade e sem competência para defender a escola pública foram arruinando pelo despacho e pela lei o que ainda restava das faculdades com prestígio, no plano interno e externo. A FDL foi resistindo. Os escribas das leis substituíram os conceitos de direito universitário por um novo e vácuo vocabulário; a FDL continuou a obedecer ao direito universitário na interpretação dessas leis.

Em Portugal as leis do ensino superior são apenas instruções para a administração pública dos senhores ministros; nada mais. Não têm regras de direito, nem conceitos jurídicos, nem soluções para os problemas que as universidades enfrentam. Não nos servem e são um obstáculo permanente ao bom governo das universidades e das faculdades. Passam os governos e os ministros e nada muda para melhor.

Sem financiamento adequado, ao sabor de decisões sem projeto político e sem ideologia, são imensos os desafios que uma escola de ensino universitário de Direito fundada no século XIII e refundada em 1913 tem pela frente. Sejam esses desafios quais forem, só existe uma forma de os enfrentar com êxito: manter a nossa democracia interna, institucionalizada em órgãos onde decidem os representantes eleitos de quem cumpre, resistindo às tentativas dos poderes instituídos de reduzirem a nada uma experiência de governo democrático característico da nossa faculdade, pela qual tanto lutámos e que tanto custou a ganhar.

A FDL saberá manter-se como referência democrática na universidade portuguesa. Esse é o nosso futuro. Em época de subfinanciamento público soubemos fazer as opções financeiras necessárias para permitir o incremento da internacionalização; a valorização dos professores para a melhoria da qualidade do ensino; o apoio aos alunos com dificuldades financeiras; a valorização patrimonial e artística da escola; a atualização da biblioteca; o apoio por tutores aos alunos com problemas de aprendizagem e de apoio psicológico profissional especializado; a abertura do gabinete de saídas profissionais; e uma agenda quotidiana de seminários, congressos e encontros científicos. E está ainda tanto por fazer…

A FDL é a casa aberta da Justiça, porque queremos construir uma realidade diferente daquela que hoje vivemos. Queremos estar em diálogo com a dor que o país sente. Não nos resignamos a ser apenas mais uma escola pública sem financiamento do Estado, impedida de ser pelas más decisões e as constantes intromissões de quem governa. Somos uma maternidade de direitos, inquietando quem manda e gerando inconformidade em quem obedece. Seremos uma escola do futuro.

O legado destes últimos 100 anos da FDL está naqueles que saíram da nossa faculdade para servir o país nos mais variados cargos e funções – os conhecidos e os anónimos. Está nos efreés que continuam pela vida fora. Onde quer que estejam, façam o que fizerem têm o orgulho de ter sido da FDL. Um nome que é mais que uma escola; é uma identidade que não se perde, é uma comunidade que não se acaba. Como escola centenária estaremos à altura de uma sociedade que precisa como nunca de líderes, de causas, de esperança. Resta-nos o futuro.

Director da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDL)
 

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