Duas juventudes com causas: da luta pela liberdade à luta pela defesa do planeta

O que têm a dizer alguns dos líderes do movimento liceal de 1962 sobre movimento estudantil que agora despontou? E que muitos tentaram ridicularizar. Volvidos 60 anos, há coisas que não mudam.

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Ana Brígida

No dia 7 de Novembro, estudantes e activistas do Movimento Fim ao Fóssil – Ocupa! fizeram algo que há muito não se via em Portugal. Agitaram a sociedade, as escolas, puseram a causa climática na ordem do dia. Trouxeram à luz os velhos preconceitos obscurantistas e um certo paternalismo, um certo conservadorismo de naftalina. Com a COP27 — a conferência da ONU sobre o clima —, a decorrer em simultâneo no Egipto, os jovens estudantes ocuparam a Escola Artística António Arroio; a Escola Secundária de Camões e o movimento chegou à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde quatro estudantes, que se manifestavam pacificamente, foram detidos pela polícia, num episódio indigno de uma universidade. Os estudantes não saíram à rua, mas trouxeram-na às suas escolas.

A causa climática, que devia ser da humanidade, caiu em peso às suas costas, com o discurso lá fora a tornar-se bipolar. Vozes da direita saíram do armário para acusar estes jovens de mau comportamento, descobrindo no movimento Fim ao Fóssil as mais elaboradas instrumentalizações, infiltrações subversivas a torto e a direito, falando em nome de todos alunos que foram impedidos de frequentar as aulas por causa de uns quantos insubordinados que, imaginem, em vez de aceitar sossegadinhos o fatalismo fóssil, querem salvar o planeta de nós próprios.

Houve quem resolvesse tratar os jovens como pirralhos ao serviço de inomináveis organizações de extrema-esquerda; houve quem tomasse as dores dos papás e das mamãs indignados pela disrupção do seu quotidiano, hiperbolizando o choque que foi ver os próprios alunos a ocupar as escolas, tocando os seus subversivos tambores como uma tribo climática radicalizada, gritando palavras de ordem com os seus megafones nos tímpanos do Governo, com o apoio explícito das direcções destas.

Os estudantes exigiam a demissão imediata de António Costa e Silva, o ministro da Economia, que por momentos ficou sitiado num arquipélago de contabilistas.

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Manifestação de alunos no Largo de Camões, em Lisboa, em frente ao Ministério da Economia, no dia em que seis alunos foram recebidos pelo ministro António Costa Silva
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Cabeçudo na Escola Secundária Camões caricaturando o ministro da Economia e do Mar, António Costa Silva

Os mais ortodoxos encontraram no discurso de António Guterres, secretário-geral da ONU, o “combustível” para o fogo desta juventude. Os jovens gritavam. Os talking-heads comentavam. Paladinos da moral e dos bons costumes queixavam-se da violação do direito ao ensino, da conivência dos pais, de todos os adultos que se punham do lado destes jovens, incluindo as direcções das escolas secundárias ocupadas, escapando-se pela porta dos fundos da questão: a crise climática.

À onda de apoio que estes activistas colheram outra se opôs, com o propósito óbvio e paternalista de descredibilizar o movimento, acusando os jovens de pregar o que não fazem, acusando os adultos que os apoiavam de se comportar como crianças.

Estes jovens não viram satisfeitas as suas reivindicações, mas o seu esforço não caiu em saco-roto. A melhor prova disso são os seus críticos. Aqueles que tão criteriosamente se mantiveram ocupados no conforto dos seus lares, a carbonizar as melhores maneiras de ridicularizar quem está do lado da razão. Há duas instituições que em Portugal vigoram teimosamente: o estalido de boca para sinalizar o enfado e o paternalismo destrutivo a uma juventude com causas. Essa coisa do futuro fica sempre para depois. Uma coisa é certa: depois de uma longa quietude, os movimentos estudantis estão de volta.

A importância dos liceus na luta académica de 1962

Se a liberdade não podia ser liberdade, havia razões mais que concretas para que uma associação não pudesse ser uma associação. Estávamos nos alvores dos anos 60 e da guerra colonial. O associativismo era proibido, assim como proibidas eram a opinião, a expressão, as manifestações. Os direitos eram proibidos, como se fossem isqueiros. Actuava sobre as pessoas um imenso mecanismo de culpa, capaz de transformar em crime o mais simples gesto. A polícia política era omnipresente, a repressão, prato do dia. Pensar era perigoso. Agir, de todas as formas, punível.

A vontade de mudar o mundo, própria da juventude, sempre foi o anátema de estimação das ditaduras, o pensamento, o seu inimigo visceral. Os estudantes, por acumulação de circunstâncias, eram como uma legião “satânica” do livre-arbítrio, à solta nas universidades. E, cada vez mais, nos liceus, onde a Mocidade Portuguesa, o grande doutrinador do regime, estava ainda fortemente enraizada. O movimento liceal tem trajecto comum com a intensificação das lutas dos estudantes universitários, que culminariam num golpe profundo no coração do Estado Novo, sob o eufemismo de “luto académico”, que tanto uso deu à polícia de choque.

À bolina dos ventos que sopravam do meio académico, o movimento activista liceal teve de traçar um caminho cheio de obstáculos, enfrentando o medo das famílias, uma certa desconfiança decorrente da sua faixa etária, a oposição da maioria do corpo docente e das reitorias, o paternalismo das associações académicas e das suas políticas internas, um infindável estatuto de observador nas RIA (reuniões inter-associações), ausência de voto, de voz, e tudo quanto o Estado Novo tinha para oferecer aos seus opositores. Em rigor, só o regime os tratava por igual.

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Manifestação de estudantes na Cidade Universitária, em Lisboa, em 1962 — a vontade de mudar o mundo, própria da juventude, sempre foi o anátema de estimação das ditaduras DR

Por não poder ser o que era, chamava-se formalmente Comissão Pró-Associação dos Alunos do Ensino Liceal, mas os alunos chamavam-lhe apenas Pró-Associação dos Liceus, que no início era dos liceus de Lisboa. Num relatório da PIDE, o movimento era definido assim: “A comissão pró-associação do ensino secundário constitui-se como uma federação de delegações nas escolas secundárias. Há uma direcção-geral que coordena as actividades das delegações e das secções. As delegações são organismos respeitantes a liceus, escolas técnicas e colégios particulares. Praticamente só englobam alunos do 6.º e 7.º anos. Tentam organizar verdadeiras células nas turmas, com os seus delegados. As secções são organismos independentes das delegações, com fins específicos.” O âmbito de actividades de cada uma das secções constituía no todo um alerta do mais vermelho que havia: “Cinema, imprensa, intercâmbio, convívio, cultural.”

Jaime Mendes foi o primeiro presidente da Comissão Pró-Associação dos Liceus, no ano lectivo de 1960/61 – o que não deixou de ser marcante, sendo estudante no Liceu Francês (Charles Lepierre), em trânsito para a Faculdade de Medicina. Foi no seu mandato que a CPA dos liceus deu os primeiros passos. Uma tarefa ambígua, pois consistia em dar visibilidade a uma corrente que se movia no inverso. As paredes tinham olhos. Havia “bufos” por todos os perímetros. “A Mocidade Portuguesa era uma força grande. Queria aliciar os jovens e conseguia-o. Tinham muitas actividades. E tinham delegados no próprio corpo docente. Alguns eram autênticos pides e perseguiam-nos. Estavam implantados em toda a parte. O liceu Camões e o Filipa de Lencastre, nesse aspecto, eram do piorio”, conta Jaime Mendes.

A dispersão era o maior problema da CPA dos liceus e, por paradoxo, o seu melhor resguardo. Nas universidades, o movimento estudantil consolidava-se. Nos liceus, estava só a começar. O associativismo liceal partilha inevitável trajecto histórico com o movimento académico, mas o seu percurso é de muitas maneiras independente.

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Jaime Mendes discursa na sala de alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em 1961 DR

Algumas versões que o tempo romantizou tendem a ampliar o movimento liceal e as suas fileiras. Jaime Mendes reposiciona-o no tempo e na dimensão devida: “Quase que se formou um mito sobre os estudantes dessa época, a malta dos anos 60. Não vamos iludir ninguém. De facto, nós éramos uma minoria. Temos de admitir que a grande força ainda era a Mocidade Portuguesa.”

A Mocidade Portuguesa, enquanto extensão do regime no ensino, era o adversário natural da CPA liceal, que se foi formando nos liceus e fora destes, onde o controlo era menor. “Conspirava-se” onde era possível. A primeira presidência da CPA dos liceus tomou forma num café do Campo Grande.

Desnecessário — e até desaconselhável — seria enumerar as missões que a CPA dos liceus tinha pela frente. O enfraquecimento da influência da Mocidade Portuguesa no ensino secundário passava pelo fortalecimento da CPA dos Liceus precisamente entreliceus, procurando estabelecer pontos de contacto com as universidades e as respectivas associações académicas, em que nem todas eram de tendência oposicionista.

A CPA dos Liceus teve de desbravar terreno politicamente arenoso, tendo de lidar com a força da situação e a situação de não ter força. “As próprias associações universitárias, na sua maioria, não consideravam os liceus no movimento estudantil. Aliás, em geral até achavam que não devia haver representatividade liceal”, recorda o seu primeiro presidente.

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Manifestação de alunos na Cidade Universitária, em Lisboa, durante a crise académica de 1962. O movimento liceal tem trajecto comum com a intensificação das lutas dos estudantes universitários, que culminariam num golpe profundo no coração do Estado Novo DR

A CPA cresceu tomando o seu próprio pulso, sabendo-se votada a uma espécie de isolamento, mesmo com o apoio de alguns docentes e algumas associações académicas, que auxiliavam com meios logísticos, locais de reunião, de plenário, ajudando na impressão de material de divulgação, estabelecendo pontes. Porém, sem nunca conferir à CPA dos liceus direito de voto nas RIA, pêndulo político do movimento estudantil. “Jorge Sampaio, que era o então secretário-geral da RIA, nunca deu lugar aos liceus. Sempre tivemos de nos resignar ao estatuto de observador”, relembra Jaime Mendes. Observa o fenómeno à distância: “Talvez fosse a única estratégia possível. Jorge Sampaio era muito conciliador, se não todo o movimento estudantil se desfazia. Talvez intimamente ele não acreditasse em manter a CPA dos Liceus afastada das decisões, até porque o seu irmão mais novo (Daniel Sampaio) pertencia à Pró-Associação dos Liceus.”

De todo o modo, a CPA dos Liceus foi-se consolidando em Lisboa, experimentando as mais diversas dores de crescimento. O objectivo de alargar às maiores comunidades estudantis do país era ainda remoto. “A maior parte das grandes associações académicas, como as de Coimbra, antes de 1961, eram quase todas de direita.”

Eternos observadores

Esgotado o ano de mandato de Jaime Mendes na presidência da CPA dos Liceus, que não a sua actividade na organização, perfilava-se à sucessão uma jovem activista, que estudava no liceu Filipa de Lencastre. Teresa Tito de Morais tinha então 15 anos. Concorria contra a lista de Rúben de Carvalho, que tinha um apoiante de peso, Saldanha Sanches, e uma bizarria histórica em desfavor: Rúben de Carvalho — como é sabido, tornar-se-ia activíssimo durante a crise académica e durante a sua vida — não se livrou da fama de ter vindo da Mocidade Portuguesa. De qualquer forma, garante Jaime Mendes, a “lista da Teresa era muito mais activa”.

Numa assembleia geral muito concorrida (mais de uma centena de estudantes liceais), realizada no Instituto Superior Técnico, Teresa Tito de Morais haveria de “destronar” da liderança Jaime Mendes, ainda a léguas de saber que tinha destronado o seu futuro (e presente) marido.

“Eu era muito pequenina e muito magrinha. Aquilo não era um auditório, era um refeitório. Tive de me pôr em cima de uma mesa para ‘mandar’ calar aquela gente toda”, recorda Teresa. Apesar da juventude, o seu estatuto e o trabalho desenvolvido na CPA dos Liceus não se media aos palmos. A dinâmica da sua lista seria transportada para a direcção.

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Teresa Tito de Morais em Março de 2012 — com apenas 15 anos tornou-se na segunda presidente da CPA dos Liceus Miguel Manso

Eram tempos difíceis, com o regime a apertar a malha aos estudantes e estes em crescente desobediência civil. “Tive um mandato conturbado, a querer aproximar os liceus da universidade e a alargar o movimento.” Os perigos eram reais. Em matéria de repressão, o Estado Novo era igualitário. Não fazia a distinção entre novos e velhos, entre alunos da universidade e do liceu. A CPA tinha de lutar pelos seus direitos em diversos quadrantes.

Para além de todas as forças de bloqueio, incluindo algumas associações académicas, os jovens estudantes dos liceus, como Teresa, tinham ainda de enfrentar as forças da bondade, que exerciam as famílias por genuíno pavor ou até por questões de ideologia, já que muitos alunos da CPA dos Liceus vinham de famílias conotadas com o regime. Foi e não foi o caso da menina Teresa. “Quando foi da greve de fome na cantina, quis participar. Estavam umas colegas a tocar à porta para eu sair e os meus avós fecharam-me à chave no quarto para eu não sair. E a minha família era progressista e republicana. Foi a minha primeira detenção”, ironiza.

Mais tarde, a PIDE fez com que não fosse a única. Em 1965, Teresa Tito de Morais seria detida pela PIDE a bordo de um avião da Swissair, a caminho do exílio. Seria conduzida para um carro celular, depois para a sede da polícia política, onde foi interrogada e torturada dois dias, antes de ser encaminhada para Caxias. “Fui detida só por pertencer à CPA dos Liceus. Só isso. Era o meu crime. Fui militante do Partido Comunista, como tanta gente, mas nessa altura até estava desligada.” A sua ficha na PIDE não deixava dúvidas: fora denunciada por pertencer à Pró-Associação dos Liceus. “Alguma coisa devo ter feito bem.”

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Jaime Mendes e Teresa Tito de Morais no Guincho, no Verão de 1961 DR
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Baile de recepção ao caloiro na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em 1961, com Jaime Mendes, à esquerda, e Teresa Tito de Morais, à direita DR

Quando iniciou o seu mandato, os objectivos da CPA permaneciam intactos. A CPA queria um aprofundamento entre estudantes universitários e liceais, que demolisse barreiras nessa transição; que se acabassem com os exames de aptidão; que baixassem as médias para a entrada na universidade, que na prática funcionavam como uma espécie de “filtro social”, impedindo o acesso ao ensino superior e uma justa distribuição de bolsas e isenções; redução do preço dos transportes para os estudantes; assistência médico-social; novos programas escolares; melhoria na relação entre corpo docente e estudantil; mais cultura e mais desporto no quotidiano escolar; mais intercâmbio entre escolas. Uma verdadeira carta de más intenções para com a ditadura, que de pouco serviu para conquistar espaço de intervenção nas organizações estudantis mais crescidas. “Nós, liceais, fomos precursores de um espírito mais rebelde, mais informado. Teria sido melhor termos tido mais abertura por parte das universidades. Cada um estava na sua quinta. Isso dividiu mais do que ajudou.” À CPA dos Liceus seria sempre sonegado o estatuto de membro pleno nas RIA.

“Os liceus não entram oficialmente na greve de 1962. Apoiam. Apesar da enorme agitação que ocorreu nos liceus, quase foi proibido aos estudantes do liceu declarar greve. Se calhar, também não teríamos força para isso”, reflecte Jaime Mendes. Com maior ou menor visibilidade, os movimentos estudantis académicos e liceais marcharam lado a lado, ainda que a história dos acontecimentos quase aglutine a importância da CPA dos Liceus. “O grande momento do movimento liceal é durante a crise académica de 62. Tínhamos muitos factores contra: não tínhamos apoio do corpo docente, nem para fazer reuniões. Era tudo muito difícil, não só pela dispersão.” Naquele momento, Teresa Tito de Morais já cumprira o seu mandato, embora se mantivesse nas fileiras da CPA dos Liceus.

As reuniões do Júlio de Matos

Joaquim Letria, então com 18 anos, passando pelo liceu Passos Manuel e pelo Colégio Moderno, foi o terceiro presidente da CPA dos Liceus no ano lectivo de 1962/63, sucedendo a Teresa Tito de Morais. “1961 foi um ano decisivo para a Pró-Associação, fruto de um grande trabalho da Teresa e também do Jaime, sempre presente. O movimento alastrou.”

Letria, ligado ao Partido Comunista, não era propriamente um recém-chegado ao movimento, tal como a direcção da CPA dos Liceus não era exactamente uma comissão de serviço. Eram jovens, a lutar por ideais, a exercer a sua quota de liberdade na luta contra uma ditadura. E, como a exerceram, na coincidência do seu mandato na CPA dos Liceus. “De facto, calhou-me a mim esse o período mais agudo da crise académica”, disse-nos Joaquim Letria, por ocasião dos 50 anos das lutas académicas. Sobre o movimento liceal declarou: “Foi um movimento exemplar em todas as suas dimensões. A mobilização, a organização, o interesse, a dedicação, a solidariedade. Em toda a minha vida nunca estive em qualquer coisa tão extraordinária como esta, que me deixa imensas saudades.”

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Em cima e em baixo, alunos na Escola Secundária Camões, em Lisboa, onde pernoitaram várias noites em protesto contra o uso de combustíveis fósseis
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O movimento foi antes de mais uma consequência “daquilo a que no PC se chamava ‘trabalho legal’. Para traduzir: as inúmeras iniciativas para congregar os jovens e os mobilizar para a causa revolucionária. Os encontros, as reuniões, os saraus, as sessões de cinema, de música, de literatura, de poesia”. Era um trabalho feito por fora, mas com impacto directo nos liceus, assim como nas universidades.

Algumas dessas iniciativas decorriam nos locais mais improváveis que, de tanto, se tornavam insuspeitos. “Houve uma altura em que fazíamos reuniões quase todos os fins-de-semana no Hospital Júlio de Matos. Um grande amigo nosso, o José Pedro Barahona, era filho do director do hospital (professor Henrique João Barahona Fernandes). Não sei se o pai sabia o que se passava lá dentro”, recordou então Joaquim Letria.

A presidência da CPA dos Liceus não era um “cargo” solitário. Perigoso, sim, “mas nunca solitário”. Joaquim Letria não estava sozinho. Um dos elementos fundamentais na estrutura da CPA era o seu “ministro do Interior”, Fernando Rosas, que era “quem tratava de toda a organização por dentro, ou seja, no interior dos liceus e entreliceus. A sua acção foi fundamental”. Em 1962, foi como tudo se interligasse num luto académico.

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Estudantes em protesto na cantina velha da Universidade de Lisboa, em 1962. “Nós, liceais, fomos precursores de um espírito mais rebelde, mais informado. Teria sido melhor termos tido mais abertura por parte das universidades", diz Jaime Mendes DR

E, apesar de todos os condicionalismos que se atravessavam no caminho da CPA dos Liceus, esta não deixou de levar avante acções de protesto muito relevantes no espectro liceal. “Uma delas foi, sem dúvida, termos conseguido fazer uma greve dos estudantes nos liceus, contando com o apoio de alguns professores. Ficou bem provado que podiam contar connosco, que éramos mais do que observadores dos acontecimentos.”

Na sombra da grande crise académica, o movimento liceal não deixou de desferir os seus golpes no regime. Como afirma Jaime Mendes, o primeiro presidente da CPA dos Liceus, convém não esquecer que a “radicalização das associações académicas também tem que ver com a transição de alunos mais informados e mais politizados que derivam dos liceus”.

E agora?

“Assisti ao movimento activista de estudantes do secundário contra as alterações climáticas e em defesa do planeta com uma certa surpresa e admiração. Surpresa, porque os protestos no movimento estudantil estiveram ausentes muitos anos, devido à alta competição a que são submetidos (médias altíssimas) para poderem entrar no curso universitário pretendido e sonhado por eles ou pelos seus pais. Admiração, por estes jovens terem conseguido abanar as nossas consciências e terem trazido para a ordem do dia a defesa do planeta que eles querem preservar”, afirma Jaime Mendes.

As diferenças em relação aos movimentos estudantis na ditadura são mais do que muitas, embora semelhanças também não faltem. “Analogias com o movimento liceal de 1962 e acrescento com todos os outros [1969, 1972, 1973] podem e devem ser feitas. Nos liceus, no meu tempo, era obrigatório a filiação na Mocidade Portuguesa que tinha sido criada nos anos 30, à semelhança da juventude fascista de Mussolini. Lutávamos, então, contra um regime fascista e pelas liberdades mais elementares, como sendo a liberdade de associação, contrapondo à hegemonia da Mocidade Portuguesa. Mas o movimento foi crescendo e o futuro deu-nos razão. Dantes como agora as bandeiras erguidas são justas: a luta pela liberdade e a luta pela defesa do planeta.”

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Em cima e em baixo, alunos em protesto na Escola Secundária Camões, em Lisboa. Jaime Mendes: “Assisti ao movimento activista de estudantes do secundário contra as alterações climáticas e em defesa do planeta com uma certa surpresa e admiração"
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Teresa Tito de Morais acrescenta: “Existe um certo ‘paternalismo’ e desvalorização das posições destes jovens. A diferença fundamental entre o movimento liceal de 1962 e o que se passa agora tem que ver com o sistema político. Nós vivíamos em ditadura, eles vivem em democracia. Nós não tínhamos liberdade de expressão e éramos presos (como eu fui). Eles podem falar livremente e revoltar-se. Nós estávamos organizados em associações de estudantes e muitos em partidos políticos na clandestinidade — os movimentos estudantis de hoje parecem mais espontâneos e por isso mesmo incontroláveis.”

Por outro lado, refere Jaime Mendes, “a ideia de que entrámos numa nova era — o Antropoceno —, na qual a actividade humana está a interferir tanto no planeta que coloca em risco a própria sobrevivência da humanidade, tem feito caminho nos ambientalistas. Os jovens sentem mais esse problema, pois põe em causa a sua própria sobrevivência e aqueles que estão mais atentos vêem que as medidas aprovadas nos fóruns mundiais para combater as alterações climáticas são débeis. Aí surge a revolta”.

Prova melhor não há do que a COP27, alerta Teresa Tito de Morais. “Não assistimos, ao mais alto nível, a decisões rápidas e ambiciosas e caminhamos para um desastre ambiental sem precedentes. A juventude está a sentir profundamente que o seu futuro está em risco e começa a intervir conscientemente, ao nível nacional e internacional, para forçar os dirigentes a agirem. Hoje eles têm uma causa global comum, muito concreta, que os une: é urgente defender o clima.”

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Teresa Tito de Morais: “Existe um certo ‘paternalismo’ e desvalorização das posições destes jovens"
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Por motivos de saúde, não foi possível entrevistar a este propósito Joaquim Letria. Teresa não tem dúvidas quanto à importâncias destes novos movimentos estudantis. “São determinantes para o progresso e bem-estar das populações e, sobretudo, para que eles possam crescer, com valores e princípios, e terem um espaço de liberdade e acção que lhes permita, com determinação e criatividade, contribuir para um mundo melhor. O combate à indiferença dos governantes mundiais sobre as alterações climáticas vai ser uma causa determinante para mobilizar cada vez mais jovens espalhados por todo o mundo.”

Sobre as detenções de estudantes na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa tem a dizer isto: “Claro que me indignaram. A perseguição, pelas forças policiais, deixaram-me marcas profundas que nunca esquecerei. Lutamos para que não volte a acontecer. O diálogo e a tolerância devem sempre prevalecer e, num Estado de direito e democrático, que conquistámos, é inaceitável ver essas imagens.”

Jaime Mendes entende que “foi um erro crasso a chamada da polícia pelo director da FLUL (Miguel Tamen), o que pressupõe um atentado à autonomia universitária pela qual tanto lutámos nos anos 60 e 70”. No presente, o futuro: “O movimento associativo foi e continuará a ser importante. A característica do género humano é gregária, as associações existiram sempre para nos defendermos contra as ameaças externas. A sociedade neoliberal que pretende impor o individualismo e promover a competição em detrimento da cooperação é contra a condição humana. Diria que tudo foi feito para adormecer os nossos jovens. Saúdo os que se manifestaram.”

Não é vulgar os alunos acordarem nas escolas. Mas foi nas escolas que este movimento acordou.


Texto publicado originalmente no Contacto, jornal luxemburguês em língua portuguesa