Manifestação em Lisboa: “Pelo clima. Unidos. Ocupamos. Resistimos”

Marcha pelo clima reuniu centenas de pessoas contra os combustíveis fósseis e pela queda do ministro da Economia e do Mar, que foi alvo de uma acção. “Não é um crime lutar pelo futuro”, diz estudante.

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Nuno Ferreira Santos

Os braços foram-se levantando um a um, com os dedos da mão unidos, num pedido. À frente de uma entrada lateral do Liceu Camões, em Lisboa, a manifestação que vinha desde o Campo Pequeno, há duas horas a reivindicar o fim dos combustíveis fósseis, respondeu ao pedido e fez-se silêncio. Os olhos ficaram postos nos oito estudantes que tinham subido ao terraço de um pequeno pavilhão branco da escola, colado à rua. Do lado de dentro do liceu, perto da entrada, viam-se cinco tendas a confirmarem a ocupação climática, iniciada na segunda-feira pelos estudantes. Outros tantos alunos e alunas estavam agarrados às grades do portão fechado, olhos nos olhos com as poucas centenas de pessoas reunidas na rua, fora da escola. Também eles esperavam.

Então, um dos estudantes no terraço, acompanhado de percussão, disse novas palavras de ordem pelo megafone: “Pelo clima! Unidos! Ocupamos! Resistimos!” Entre cada ordem, havia um espaço liberto para a percussão, e ainda atravessado pela memória do silêncio anterior, que continuava a reverberar. Na rua, as pessoas rapidamente uniram-se àquelas palavras, cumprindo-se assim um pacto entre quem marchava e os ocupantes, um desejo pelo combate pelo clima.

Convocada para este sábado às 14h, a marcha integra duas semanas de acções reunidas no lema “Unir contra o fracasso climático”, que acompanha a 27.ª Convenção do Clima das Nações Unidas (Conferência das Partes – COP27), a ocorrer deste 6 de Novembro em Sharm el-Sheikh, no Egipto. As ocupações pelo fim ao fóssil em escolas e faculdades de Lisboa, iniciadas na última segunda-feira, foram um pontapé de partida para uma luta que tem vindo a radicalizar-se e vai continuar na próxima semana.

Estudantes marcharam pelo clima Nuno Ferreira Santos
A marcha começou no Campo Pequeno Nuno Ferreira Santos
Faixas e cartazes estavam arrumados no chão Nuno Ferreira Santos
O destino final da marcha era o Liceu Camões Nuno Ferreira Santos
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Estudantes marcharam pelo clima Nuno Ferreira Santos

“Temos que agir, não temos outra opção”, diz ao PÚBLICO Leonor Chicó, à sombra dos plátanos da praça do Campo Pequeno, numa tarde de Outono radiosa, antes do início da marcha. A estudante de 17 anos está na organização da ocupação da Escola Artística António Arroio, que tem sido uma das mais vocais. “A crise climática está a escalar, temos que escalar a nossa resposta. Face à inacção dos nossos governos, temos de agir imediatamente”, defende Leonor Chicó, explicando que a marcha é também uma denúncia ao falhanço da luta pelo clima tanto a nível nacional, como a nível internacional.

“Centenas de estudantes que têm tudo a perder por esta luta estão a lutar ainda assim, porque não têm outra opção”, diz, apontando para o que aconteceu durante a noite de sexta-feira e madrugada de sábado, quando as forças policiais retiraram quatro estudantes que ocupavam a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) – um assunto que foi recorrente ao longo da marcha.

“Não é um crime lutar por um futuro”, sublinha Leonor Chicó. “Vamos continuar a lutar até ganharmos as nossas duas grandes reivindicações: que o Governo declare o fim aos fósseis até 2030 e a demissão imediata do ministro da Economia e do Mar António Costa e Silva”, assegura. Esta reivindicação, muito ouvida nos últimos meses devido às ligações do ministro à indústria fóssil, iria gerar um dos momentos mais tensos da marcha, mas já lá vamos.

Perto de Leonor, outros alunos da António Arroio cantavam e animavam aquele pedaço de praça. Entre eles, Mariana Mascate, de 19 anos, que esteve no curso de Têxteis daquela escola e agora falta-lhe terminar a disciplina de Geometria Descritiva. “O [tema do] clima é muito importante desde que me lembro de existir”, diz a estudante, explicando que essa importância foi transmitida pelos pais e nos escuteiros. “Se não agirmos agora, não vai haver outra oportunidade para fazermos.”

Esta urgência transmitida pelos jovens, uma parte importante das pessoas que se iam acumulando à volta de várias faixas dispostas no chão, ressoa também nas gerações mais velhas. “Queremos abrir espaço para toda a população manifestar-se em apoio das acções que estão a acontecer e contra o fracasso climático que estamos a viver”, avança Sinan Eden, que estava no meio do furacão da organização da marcha, antes de esta arrancar, e a ser requerido por várias pessoas.

O activista de 36 anos pertence à Climáximo, uma das associações organizadoras da marcha, juntamente com a Zero e com a Greve Climática Estudantil. Ainda assim, conseguimos falar com ele. “Temos de parar de fingir que vivemos numa normalidade e tratar a crise climática como tratámos as crises financeiras, de pandemia, em que houve alterações políticas estruturais”, avisa. “Neste momento, a crise climática está sendo encarada como se fosse só um dos problemas.”

Os estudantes invadiram um edifício onde o ministro da Economia e do Mar estava num evento Nuno Ferreira Santos
Polícia arrastou os manifestantes para fora do edifício Nuno Ferreira Santos
Os estudantes invadiram um edifício onde o ministro da Economia e do Mar estava num evento Nuno Ferreira Santos
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Os estudantes invadiram um edifício onde o ministro da Economia e do Mar estava num evento Nuno Ferreira Santos

Invasão de edifício

Um pouco antes das 15h, a marcha partiu em direcção ao Liceu Camões, onde se iria reunir com a ocupação que lá decorre. Estudantes, professores, pessoas sozinhas e famílias inteiras iniciaram a caminhada. Ricardo Pita veio à marcha com os dois filhos e a mulher, e também enquanto integrante do Coro da Achada. “É uma causa muito importante, é importante ouvir estes jovens. O que eles estão a fazer é incrível”, admite o biólogo e investigador da Universidade de Évora.

“Não estamos a atingir as metas que são reconhecidas pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas [organismo das Nações Unidas que avalia as consequências do aquecimento global a partir do conhecimento produzido por milhares de cientistas em todo o mundo]. Como toda a gente tem ouvido, vamos ultrapassar os 1,5 graus. E isso torna o planeta inviável para a população humana e para a biodiversidade”, adianta Ricardo Pita. “Espero que isto chame a atenção das pessoas. É preciso abrir a cabeça de todos. Não é uma questão de ideologia, é de sobrevivência.”

As faixas que iam sendo carregadas eram parte desta conversa: “Unir contra o fracasso climático”; “Por 1,5 graus, fim ao capitalismo”; “A nossa casa está a arder”; “Enterrar o capitalismo com os combustíveis fósseis”; “Ocupa!”. A caminhada fez-se com cânticos e palavras de ordem: “Para a nossa espécie não ficar extinta, neutralidade até 2030!”

No meio das pessoas encontramos Álvaro Fonseca, de 61 anos, membro da Rede Para o Decrescimento. “Estes momentos são importantes para perceber que as pessoas estão atentas. Há promessas de resolver algo que é uma crise climática, mas que é algo bem mais profundo”, diz o ex-docente universitário na área das ciências da vida, que observa a crise climática como parte de um problema. “É um sintoma, a causa profunda é um sistema que está completamente alienado e obcecado pela ideia do crescimento económico como forma de promover o bem-estar, quando já percebemos que isso é uma falácia.”

E como observa a crescente radicalização dos protestos? “É um sinal de que as pessoas percebem que as respostas institucionais não estão de todo a funcionar, porque estão demasiados comprometidas com interesses instalados, que não querem mudar as coisas”, argumenta.

Centenas de pessoas estiveram na marcha Nuno Ferreira Santos
Centenas de pessoas estiveram na marcha Nuno Ferreira Santos
Centenas de pessoas estiveram na marcha Nuno Ferreira Santos
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Centenas de pessoas estiveram na marcha Nuno Ferreira Santos

Um desses momentos mais radicais, de desobediência civil, dá-se algumas dezenas de metros à frente, quando cerca de 30 manifestantes invadem a Ordem dos Contabilistas Certificados onde decorria um evento privado com António Costa e Silva, interrompendo o evento. Os manifestantes acabaram por ser expulsos pela polícia, que se reuniu à frente do edifício. Cá fora, ouviam-se os gritos “Não os activistas, prendam o ministro” e “Fora, fora Costa e Silva!”

Noite na esquadra

Apesar da tensão, a marcha continuou sem incidentes. Vários partidos políticos da esquerda integrarem o final da marcha, como o Livre, os Verdes e o MAS. A coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, diz ter vindo por estar solidária com esta luta. “A coragem política que tem faltado aos governos é aquela que está nos jovens que em todo o mundo se estão a manifestar. É absolutamente justa esta luta, é pela vida de todas as gerações, de toda a gente”, disse ao PÚBLICO ainda no Campo Pequeno. “Não mudar nada tem vindo a enriquecer os mesmos de sempre, enquanto quem vive com menos está cada vez mais pobre. A transição energética é talvez a única forma de equilibrar um pouco os pratos da balança contra a desigualdade crescente.”

Houve mais duas paragens, uma à frente do Jardim do Arco do Cego e outra na rotunda da Dona Estefânia, onde um autocarro ficou parado durante vários minutos. Nessas paragens parte dos manifestantes sentaram-se para ouvirem discursos. Um deles foi de Ana Carvalho, de 23 anos, uma das organizadoras da ocupação da FLUL, que tinha passado a madrugada detida até às 5h.

Falámos com a estudante já na subida em direcção ao Liceu Camões. “Tivemos uma semana a fazer actividades sobre justiça climática, sobre o que é o movimento do fim ao fóssil. Tivemos uma aula de ecopoesia lindíssima. Tivemos pessoal que veio falar como a acção das pessoas conseguiu parar a mineração de lítio no Barroso. Tivemos reuniões com pessoas do movimento de decrescimento”, enumera a estudante de Estudos Artísticos.

No final do dia de sexta-feira souberam da notícia da expulsão. Ainda tentaram negociar com a direcção da faculdade mas não tiveram sucesso. “Estivemos várias horas a tentar negociar com a direcção [da FLUL], mas nem sequer foi o director [Miguel Tamen] que se apresentou, foi o director-executivo. As respostas que nos deu [às reivindicações] não foram suficientes, então achámos que não podíamos sair ainda da faculdade”, diz.

As reivindicações passavam por questões sobre o clima e também por exigências relativas à própria instituição, como o fim do assédio que a aluna diz existir por parte de professores, a melhoria da alimentação e da habitação dos alunos, da eficiência energética da faculdade e o aumento de espaços para os estudantes poderem estar.

Ana Carvalho explica que o núcleo de ocupação apresentou soluções à faculdade, como fazer uma carta de apoio ao movimento. “A faculdade recusa-se a ouvir, desresponsabilizou-se de qualquer acção. Acho que as instituições não estão a perceber a influência que podem ter”, aponta. “Falando do fim ao fóssil, o director disse que a faculdade não se podia posicionar, porque uma faculdade não pode tomar uma posição política. Mas ao recusarem-se a fazer, também estão a tomar uma posição política.”

Já de noite, quatro estudantes foram levadas pela polícia, incluindo Ana Carvalho. “Deixa-me muito revoltada. Como é que um director de uma faculdade, sem sequer se dignar a aparecer, dá ordem para a polícia de choque entrar na faculdade e retirar os alunos que lá estão? Foram 12 polícias para tirar quatro pessoas”, diz, indignada. Os outros três alunos estavam colados ao chão e foram arrancados de lá, conta a estudante, que tinha a missão de lhes dar apoio: “Eles ficaram com feridas nas mãos. Foi uma força excessiva para retirar alunos que estavam a lutar pelo futuro.”

Mas aqui está ela junto com mais centenas de pessoas, feliz com a energia que está a receber da manifestação: “É muito bom ver não só os estudantes, mas a sociedade em geral, aqui unida para gritar pelo fim ao fóssil e para dizer que não podemos continuar a viver na normalidade.”

Notícia actualizada às 7h20