The Crown: a família real britânica abandonou os primos russos em 1917?

A nova temporada alega que os reis de Inglaterra recusaram o resgate de Nicolau II e da sua família, e até aponta razões. Verdade ou ficção?

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Jonathan Pryce e Natascha McElhone são o príncipe Filipe e lady Penny Knatchbull na série DR

Nota: Este artigo contém spoilers sobre a série The Crown.

Na nova temporada de The Crown, o sexto episódio abre com um conjunto diferente de reais britânicos do que os que a série da Netflix tem seguido.

Estamos em 1917. O rei Jorge V está à mesa do pequeno-almoço com a sua mulher, a rainha Maria, e o filho mais velho, o futuro rei Eduardo VIII (que viria a abdicar a favor do irmão, Jorge VI, pai de Isabel II). Nesse momento, chega uma carta do primeiro-ministro: o Governo planeia enviar um navio para salvar Nicolau II da Rússia e a sua família, mas, como o czar é primo do rei, não o quer fazer sem a sua permissão.

O rei, com um papagaio ao ombro, parece mais interessado na sua colecção de selos do que em lidar com assuntos do Estado. E deixa a decisão para a rainha consorte. A cena termina antes de ser revelado o seu veredicto.

A seguir somos transportados para a Casa Ipatiev,​ em Ecaterimburgo, Rússia, onde o czar Nicolau II, a sua mulher, quatro filhas e um filho estão detidos. Levada a pensar que está prestes a ser resgatada (pelo “primo Jorge”, presumem), a família é arrastada para uma cave onde é assassinada por revolucionários bolcheviques.

Fast-forward até 1991.

A rainha Isabel II (protagonizada por Imelda Staunton) assiste à cobertura noticiosa sobre o colapso da União Soviética comunista e ouve Boris Ieltsin a prometer democracia quando assume o controlo da Rússia como o seu primeiro Presidente. Mas em breve a rainha ficará a saber que anos antes, quando Ieltsin era um funcionário inferior do Governo, ordenou a destruição da Casa Ipatiev.

O resto do episódio trata da tentativa de reatar relações com a Rússia e de um esforço para encontrar os restos mortais dos Romanov e dar-lhes um descanso digno. É solicitado ao príncipe Filipe (Jonathan Pryce) que forneça uma amostra de ADN para ajudar a identificar os restos mortais, por também ser familiar dos Romanov (Filipe e a rainha eram primos em terceiro grau).

É quando lady Penny Knatchbull (Natascha McElhone), uma amiga próxima de Filipe, desenvolve uma teoria alternativa sobre a razão pela qual os britânicos não resgataram os Romanovs. E Filipe acaba por discutir com Isabel por causa do aparente abandono dos seus antepassados pelos antepassados da monarca.

Mas quanto disto é verdade? Será que o rei Jorge V abandonou de facto os Romanovs a uma morte terrível? Será que Filipe forneceu realmente ADN para identificar os restos mortais da realeza russa? E terá o salvamento sido negado por causa de uma rivalidade entre duas mulheres?

Muitas partes da cena do pequeno-almoço são exactas. Em 1917, o primeiro-ministro pediu efectivamente ao rei autorização para levar a cabo o seu plano de resgate dos Romanov. Regra geral, o rei também estava mais interessado na sua colecção de selos do que em qualquer outra coisa. E tomava quase sempre o pequeno-almoço com um papagaio ao ombro, ainda que Charlotte fosse cinzenta e rosada e não azul e amarela como o animal no programa de televisão.

Jorge V e Nicolau II também eram primos, e direitos. Os dois homens tinham uma semelhança notável um com o outro, algo comentado durante toda a sua vida quando as famílias faziam férias juntas ou se reuniam para casamentos reais. Na correspondência que trocavam, Nicolau tratava Jorge por “Georgie” e, quando Nicolau e a sua família foram assassinados, Jorge V escreveu no seu diário: “Eu era dedicado a Nicky, que era o mais simpático dos homens, um cavalheiro meticuloso, amava o seu país e o seu povo.”

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Nicolau II (Nicky) e Jorge V (Georgie DR

Isso pode ter sido verdade, mas Nicky também ordenou o abrir fogo sobre manifestantes desarmados, em 1905, causando, estima-se, um milhar de mortos. E não levou a sério as reformas constitucionais que poderiam ter protegido o seu trono e a sua vida.

Quando Nicolau foi forçado a abdicar no início da Revolução Russa de 1917, a Inglaterra era aliada da Rússia contra a Alemanha na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o que explica muito do seu interesse em preservar a vida do czar. Foi então que o primeiro-ministro, com a permissão do rei, fez pela primeira vez uma oferta para o salvar.

Mas as coisas eram complicadas. Quando ficou claro que Nicolau não iria regressar ao trono, o Governo britânico teve de arranjar maneira de manter boas relações com o novo regime bolchevique. Além disso, em Inglaterra, o rei era impopular e arriscava a coroa se fosse visto a ser demasiado acolhedor para com os Romanovs. Mais ainda porque a mulher de Nicolau, a imperatriz consorte Alexandra, era, além de neta da rainha Vitória, também alemã. Assim, a oferta de resgate foi retirada.

É apresentada ainda outra razão para a recusa: a mulher de Jorge V, a rainha Maria, tinha ciúmes da mulher de Nicolau. Segundo esta teoria, as duas tinham crescido juntas como princesas alemãs, mas Alexandra, a mais bonita, sempre se destacou. Mais: foi Alexandra que rejeitou as investidas do irmão mais velho de Jorge V, abrindo caminho a Maria, mas como uma segunda opção.

Até que, quando os planos para o casamento já estavam em andamento, Alberto Vítor, que era o herdeiro da coroa britânica, morre, vítima da grande pandemia de gripe de 1889-1892. E Maria acaba por se casar com quem o segundo na linha de sucessão: Jorge.

Por tudo isto, explica lady Penny Knatchbull na série, havia uma enorme rivalidade entre as duas mulheres. E a rainha Maria “não queria que a mais bonita e mais grandiosa Alexandra fosse para Inglaterra roubar-lhe o palco”.

É verdade que Alexandra rejeitou o irmão mais velho de Jorge. Mas os factos ficam-se por aqui. Alexandra e Maria não cresceram juntas como princesas alemãs. A rainha Maria nasceu em Londres e foi criada em Inglaterra, filha de um descendente da Casa de Habsburgo, a então família real da Áustria, e de uma neta do rei Jorge III do Reino Unido.

Também não há provas de que as duas mulheres fossem rivais (isto parece ter sido inventado para que a série espelhasse a rivalidade entre Isabel II e Penny Knatchbull pela atenção de Filipe).

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Nicolau e Alexandra DR

Por último, Filipe forneceu realmente uma amostra de ADN que ajudou a identificar alguns dos restos mortais dos Romanovs. Embora tanto Isabel II como Filipe estivessem relacionados com os Romanovs, a ligação do príncipe vinha de Alexandra, com quem partilhava um antepassado feminino comum, o que significa que só ele podia fornecer uma correspondência de ADN mitocondrial. Com a sua amostra, os cientistas confirmaram, em 1993, que quatro dos restos mortais encontrados pertenciam a Alexandra e às três filhas.

O episódio não o menciona, mas o corpo do irmão de Nicolau II foi exumado para fornecer uma correspondência de ADN para os restos mortais do czar. Os restos mortais de Alexei e da quarta filha dos Romanov foram encontrados mais tarde; Filipe forneceu outra amostra de ADN em 2007 para confirmar as suas identidades.


Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
Tradução: Carla B. Ribeiro

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