Como ruiu a ?URSS - os segredos de ?Gorba?tchov

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Gorbatchov, em 1986, numa conferência de imprensa na Islândia, depois de uma cimeira com o então Presidente dos EUA, Ronald Reagan, que haveria de lhe pedir publicamente o derrube do Muro de Berlim Bryn Colton/Assignments Photographers/CORBIS/vmi

Há 20 anos, que se completam amanhã, comunistas de linha dura tentaram derrubar Mikhail Gorbatchov. Pouco tempo depois, a URSS entrou em colapso. Documentos só agora conhecidos mostram quanto o líder soviético estava desesperado por manter o poder - e como pediu dinheiro à Alemanha para salvar o seu país.

Há um só momento - uma única decisão - que algumas pessoas não perdoam a Mikhail Gorbatchov, 20 anos depois.

Gorbatchov, o último líder do Partido Comunista da União Soviética e o último presidente da URSS, a sua mulher e os seus conselheiros mais próximos sobreviveram a uma tentativa de golpe por parte do KGB (a polícia secreta), da liderança militar e do ministro do Interior. Regressaram a Moscovo depois de terem estado sob detenção domiciliária na casa de férias [datcha] de Gorbatchov na estância de Foros, na Crimeia. O seu avião aterrou em Moscovo, a capital, às 2h15 locais de 22 de Agosto de 1991.

Nos três dias anteriores, cerca de 60 mil pessoas tinham-se concentrado em frente à Casa Branca, a sede do Parlamento da República Soviética Russa, que se tornara no bastião dos apoiantes de Gorbatchov. Quando ouviram na rádio que ele tinha sido libertado da detenção domiciliária na península da Crimeia, celebraram e gritaram "Presidente, Presidente", e esperaram que Gorbatchov, então com 60 anos, aparecesse.

Mas Gorbatchov, que só foi libertado porque os líderes do golpe tinham ficado amedrontados pelo seu próprio povo e não se aventuraram a tomar de assalto a Casa Branca, escandalizou os seus compatriotas russos rejubilantes. Em vez de pedir para ser conduzido directamente do aeroporto até junto dos seus apoiantes, e em vez de saborear o momento da vitória e festejar a derrota dos conspiradores, ordenou ao seu motorista que o conduzisse à sua datcha. Passou o resto da noite em casa, e regressou ao seu gabinete no Kremlin na manhã seguinte.

Pelos padrões actuais, foi uma incomparável gaffe de relações públicas. Mas os três dias de detenção domiciliária na península da Crimeia não deixaram apenas o país confuso. Também perturbaram o equilíbrio interior de Gorbatchov - e sobretudo o da sua mulher, Raisa Maximovna Gorbatchova.

Apagar o passado

A mulher de Gorbatchov pagou o preço mais elevado desses três dias. Foi obrigada a viajar deitada no voo para Moscovo. Tinha hematomas nos olhos, a fala tinha sido afectada e sentiu o corpo parcialmente paralisado. Os médicos diagnosticaram-lhe um acidente vascular, que mais tarde se revelaria ter sido um grave ataque de hipertensão.

O stress desses dias, quando a União Soviética se aproximava do fim após quase 69 anos de existência, foi demasiado para os Gorbatchov. Não era o senhor do Kremlin, mas o seu antigo protegido Boris Ieltsin a brilhar agora como a nova estrela política em Moscovo. Imediatamente após o golpe, Ieltsin proibiu todas as actividades do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), do qual Gorbatchov tinha sido, até então, secretário-geral. E porque o movimento de secessão entre as repúblicas soviéticas não russas continuava, Gorbatchov tornou-se um Presidente sem Estado. Em breve, a única república central da URSS seria a Rússia, e Gorbatchov já perdera o seu controlo.

Raisa Gorbatchova passou esses dias pós-golpe na varanda da datcha do Presidente. Foi num desses dias que ela apagou uma parte do seu passado, ao queimar 52 cartas que o marido lhe escrevera durante viagens oficiais. Eram "cartas da nossa juventude", como as descreveria posteriormente Gorbatchov, cartas que a sua mulher guardara durante toda a sua vida. No entanto, depois das suas experiências em Foros, ela ficara temerosa, inclusive em relação àqueles que mais tarde ascenderiam ao poder. Chorou quando lançou ao forno as cartas que carinhosamente guardara, dizendo ao marido que não as queria ver nas mãos de estranhos.

Gorbatchov, que também desconhecia o que iria acontecer à sua família e ao país nos meses seguintes, e que respeitava as opiniões da sua mulher, seguiu-a queimando também outros documentos. Deitou fogo a 25 blocos de apontamentos, incluindo as notas que tirara quando estava no poder, pormenores da vida política quotidiana, descrições de políticos e vários planos. Só manteve o seu diário privado. Passaram quase 20 anos até que falasse novamente deste incidente, numa entrevista, em Fevereiro de 2011, à Novaya Gazeta, jornal de que é proprietário.

Um arquivo gigante

Os documentos oficiais dos seus quase seis anos no poder foram preservados. Gorbatchov levou-os consigo quando anunciou que se demitia do cargo de Presidente soviético no final do ano, e doou-os à fundação que tem o seu nome. Desde então, cerca de dez mil documentos têm estado armazenados na sede da fundação, no bairro de Leninegrad Prospect 39, em Moscovo. Lá estão também os arquivos pessoais dos seus conselheiros de política externa Vadim Zagladin e Anatoli Cherniaev.

Os documentos ilustram o fim do período da experiência comunista. Incluem actas de negociações com líderes estrangeiros, recomendações manuscritas dos assessores de Gorbatchov, notas oratórias para conversas ao telefone e gravações dessas conversas, bilhetes confidenciais de embaixadores e registos abreviados de debates no politburo.

Não ficou de fora nenhuma das questões com que o autoproclamado reformador da União Soviética se confrontou naqueles anos.

Há memorandos em que o líder soviético é aconselhado sobre como pôr fim à guerra no Afeganistão [sob ocupação da URSS até 1989], sobre como lidar com os judeus que queriam emigrar, ou como lhe é explicado por que deve recusar um encontro com o líder palestiniano Yasser Arafat ("não se pode esperar nada de concreto dele") ou por que deveria receber no Kremlin Mathias Rust, um jovem piloto alemão que aterrara ilegalmente um pequeno avião perto da Praça Vermelha e evitar o seu julgamento ("levantam-se questões sobre o seu estado psicológico").

Há relatórios de informadores no interior do partido comunista da Alemanha de Leste [o Partido Socialista Unificado] que descrevem quão más eram as condições na RDA, detalhando em quem ainda confiar no politburo em Berlim Oriental. Havia relatórios igualmente meticulosos sobre o que a revista francesa Paris Match escreveu sobre Raisa Gorbatchova ou sobre o que a cantora russa Alla Pugacheva disse a uma revista alemã sobre a política de perestroika [abertura] de Gorbatchov.

Burocracia ineficaz

Ler estes documentos é como recuar no tempo. De uma só vez, eles revelam os muitos problemas de um sistema calcificado, onde camponeses e mineiros se rebelavam e intelectuais exigiam eleições democráticas. As populações dos países bálticos, os georgianos e os moldavos revoltavam-se contra os russos, enquanto o fim da "Doutrina Brejnev" - a política externa da URSS que ditava que os países não podiam abandonar o Pacto de Varsóvia - pairava sobre a Europa de Leste.

Gorbatchov, que em tempos fora responsável executivo por uma província em Stavropol, estava ao leme deste país, vendo-o sufocar essencialmente por questões de tamanho e pela recusa dos seus burocratas em mudar de rumo. Os documentos também indicam que, mesmo sob o poder de Gorbatchov, a burocracia mantinha a sua ineficácia.

Anatoli Cherniaev, conselheiro de Gorbatchov, por exemplo, queixa-se de líderes incompetentes no movimento comunista mundial, como o [então] líder do PC Francês, Georges Marchais ("um caso perdido") e Gus Hall, presidente do Partido Comunista USA ("um filisteu com conceitos plebeus"). Em todo o caso, Moscovo continuava a pagar milhões para sustentar os seus representantes mundo fora.

Por esta altura, já se tinham acabado os ovos e o açúcar nas lojas na União Soviética e até os stocks de vodka estavam em baixo. As condições eram tão más que, em Setembro de 1988, Cherniaev teve de apresentar um pedido por escrito para se instalar uma ligação telefónica no apartamento do seu motorista, Nikolai Nikolaievitch Maikov, para que o secretário-geral pudesse falar com ele.

A Der Spiegel também é referida repetidamente nos documentos internos nos arquivos de Gorbatchov. Por exemplo, um memorando de Junho de 1987 revela que Cherniaev estava profundamente desgostoso com 54 perguntas que os jornalistas da revista alemã enviaram ao líder do Kremlin e que ele caracterizava como "bastante insolentes." Ele suspeitava que a Spiegel tencionava conduzir uma entrevista que tinha pedido a Gorbatchov "como um interrogatório". No memorando, Cherniaev recomenda que o Kremlin "não deve, obviamente, responder" a este pedido. O pedido é carimbado como "devolver com recusa". E a entrevista não se fez. Agora, 24 anos depois, fica claro porquê.

Ainda um tabu

Mais tarde, Gorbatchov usou alguns destes documentos nos seus livros, para grande humilhação da actual liderança no Kremlin. Mas muitos dos documentos continuam, ainda hoje, a ser um tabu. Isto deve-se, em parte, ao facto de estarem relacionados com decisões ou pessoas sobre quem Gorbatchov ainda não quer falar. Mas sobretudo porque eles não se encaixam na imagem que Gorbatchov pintou de si mesmo, em particular a de um reformador que avança com determinação, remodelando gradualmente o seu enorme país de acordo com as suas ideias.

Durante uma visita de investigação à Fundação Gorbatchov, o jovem historiador russo Pavel Stroilov, que hoje vive em Londres, copiou secretamente cerca de 30 mil páginas de material ali arquivado e disponibilizou-as à Spiegel. Os documentos revelam algo que Gorbatchov preferia manter em segredo: que foi obrigado a agir pelos próprios acontecimentos no moribundo Estado soviético e que, no meio do caos, perdeu muitas vezes o controlo da situação. Também mostram que ele era traiçoeiro e que, ao contrário do que declarava, chegou a fazer acordos com a linha dura do partido e com os militares.

Por outras palavras, o líder do Kremlin fez o que muitos estadistas reformados fazem: mais tarde, embelezou significativamente a sua imagem como reformador honesto.

O Ocidente elogiou Gorbatchov por não resistir pela força ao colapso da União Soviética. Na realidade, não se sabe, ainda hoje, se o líder do Kremlin deu, efectivamente, luz verde às acções militares contra georgianos, azerbaijaneses e lituanos que se rebelaram contra o Governo central em Moscovo entre 1989 e 1991. Quando as tropas soviéticas reprimiram violentamente as manifestações, 20 pessoas foram mortas na Geórgia, 143 no Azerbaijão e 14 na Lituânia - para não falar das guerras e da sublevação em Nagorno-Karabach, na Transnístria e na Ásia Central.

Muitos não esqueceram a tragédia que se desenrolou em Tbilisi, capital da Geórgia, na noite de 8 para 9 de Abril de 1989, quando soldados russos usaram baionetas afiadas e gás tóxico para dispersar uma marcha de protesto na cidade.

Gorby sabia da repressão?

Gorbatchov alega que só teve conhecimento do incidente seis horas depois. Não deu aos militares nem aos serviços secretos sinais claros para se conterem perante o conflito que emergia, embora soubesse quão frágeis eram as relações entre russos e georgianos. Também não responsabilizou ninguém depois dos acontecimentos. Ainda hoje, insiste em que continua a ser "um grande mistério" saber quem deu ordens para a violência em Tbilisi.

No entanto, quando Gorbatchov se encontrou com Hans-Jochen Vogel, o então líder da bancada parlamentar do Partido Social-Democrata (SPD), da Alemanha, a 11 de Abril, dois dias depois da supressão sangrenta dos protestos, tentou justificar a posição da linha dura. Mais tarde, mandou apagar a seguinte passagem da versão publicada das actas de conversa com Vogel:

Vocês souberam dos acontecimentos na Geórgia. Conhecidos inimigos da União Soviética tinham-se juntado. Abusaram do processo democrático, gritaram slogans provocadores e até apelaram ao envio de tropas da NATO para a república. Tivemos de adoptar uma atitude firme para lidar com esses aventureiros e defender a "perestroika" - a nossa revolução.

Os "conhecidos inimigos da União Soviética" eram, de facto, civis pacíficos. Dos 20 georgianos mortos em Tbilisi, 17 eram mulheres.

Um comentário feito numa reunião do politbuto a 4 de Outubro de 1989, onde Gorbatchov tomou conhecimento de que 3000 manifestantes tinham sido mortos na Praça de Tiananmen, em Pequim, em Junho desse ano, mostra que ele estava preparado para encontrar resistência ao seu plano de reformas e que não estava a excluir a necessidade de acção violenta. Disse Gorbatchov:

Temos de ser realistas. Eles têm de se defender, e nós também. Foram 3000 pessoas. E então?

Embora as actas desta reunião tivessem sido publicadas posteriormente, esta passagem nãoconsta delas.

Intervir num banho de sangue

Em 1990 e 1991, Gorbatchov podia presumir que muito poucos dirigentes de topo no Ocidente questionariam o seu papel nos conflitos sangrentos nas repúblicas soviéticas que aspiravam à independência. Nessas semanas, a única preocupação de americanos e europeus ocidentais era saber se os soviéticos se retirariam mesmo da Europa de Leste. Consequentemente, permitiram que Gorbatchov lhes mentisse descaradamente, como quando Moscovo tentou impedir o movimento de independência dos Bálticos no último minuto.

Em Janeiro de 1991, sob pressão dos serviços secretos e dos militares, Gorbatchov aceitou, aparentemente, o que já era uma aventura fútil: proclamar o poder presidencial na Lituânia sob o controlo de Moscovo. Como já havia acontecido em Budapeste e Praga, "trabalhadores" leais à União Soviética pediram a Moscovo que enviasse tropas em seu auxílio, e foi isso precisamente que saiu cá para fora. A 13 de Janeiro, unidades especiais do exército soviético e de segurança do Estado avançaram em tanques até ao edifício-sede da televisão estatal em Vilnius, tomaram de assalto a estação e mataram 14 pessoas.

Numa conversa telefónica com o então presidente dos EUA, George H. Bush, dois dias antes, Gorbatchov negara categoricamente que Moscovo interviria em Vilnius:

Bush: Estou preocupado com os vossos problemas internos. Como alguém que está de fora, tudo o que posso dizer é isto: se você conseguir evitar o uso da força, isso beneficiará as suas relações connosco, e não apenas connosco.

Gorbatchov: Só interviremos se houver um banho de sangue ou se houver agitação que não só ameace a nossa Constituição, mas também vidas humanas. Estou agora sob uma pressão tremenda para introduzir controlo presidencial na Lituânia. Ainda estou a conter-me, e só no caso de uma ameaça muito séria é que tomarei medidas duras.

Helmut Kohl, o chanceler alemão que, em nome do seu governo, fez uma campanha constante pelo direito à autodeterminação de populações nacionais, declinou fazer qualquer crítica a Gorbatchov. Quando os dois líderes falaram ao telefone, cinco dias após os acontecimentos sangrentos em Vilnius, mencionou a acção militar soviética apenas de passagem:

Gorbatchov: Agora, toda a gente começa a perguntar: Estará Gorbatchov a abandonar o seu rumo? Estará o novo Gorbatchov acabado, e será que se mudou para a direita? Posso dizer com toda a honestidade: não mudaremos a nossa política.

Kohl: Como político, compreendo que há momentos em que manobras evasivas são inevitáveis se esperamos atingir determinados objectivos políticos.

Gorbatchov: Helmut, estou a par da sua avaliação da situação, e eu respeito muito isso. Adeus.

Mas naqueles dias, Gorbatchov perdeu a derradeira réstia de credibilidade junto do seu povo. "Ele está ao lado daqueles que mataram em Vilnius", escreveu no seu diário um desiludido Anatoli Cherniaev, o mais fiel confidente. Cherniaev ditou à sua secretária uma longa carta a Gorbatchov que pode ser lida como um ajuste de contas.

Mikhail Sergeievitch!

O seu discurso no Soviete Supremo [sobre os acontecimentos em Vilnius] assinala o fim. Não foi a prestação de um grande estadista. Foi um discurso confuso e tagarela. Você não quis dizer o que realmente tencionava dizer. E, aparentemente não sabe o que as pessoas pensam sobre si - lá fora, nas ruas, nas lojas e nos transportes públicos. Só falam de "Gorbatchov e da sua clique." Disse que queria mudar o mundo, e agora você está a destruir esta obra com as suas próprias mãos.

A secretária escreveu a carta, mas depois acusou Cherniaev de ter traído Gorbatchov. A carta foi colocada num cofre em vez de ser enviada.

Kohl, a última esperança

A presença do ex-chanceler alemão Helmut Kohl é particularmente proeminente nos documentos de Gorbatchov. Na altura, ele tinha uma grande dívida de gratidão para com o líder russo, porque Gorbatchov recusou colocar tropas em Berlim Leste para impedir o colapso da Alemanha Oriental, no Outono de 1989. Também não obstruiu a reunificação no ano seguinte. De facto, para consternação de muitos camaradas das suas próprias fileiras, Gorbatchov nem sequer se opôs a que uma Alemanha reunificada se juntasse à NATO.

Kohl conseguiu retribuir o favor em 1991, e isso era precisamente o que Gorbatchov esperava dele. Durante essa fase, Kohl foi, em muitos aspectos, a última esperança de Gorbatchov.

Aparentemente, o líder soviético tinha-se esquecido de que, durante anos, considerava o chanceler alemão um medíocre político de província. A 1 de Novembro de 1989, quando recebeu no Kremlin Egon Krenz - o sucessor do líder da Alemanha Oriental Erich Honecker e o último líder comunista da RDA - disse-lhe:

Parece que Kohl não é o maior intelectual, mas ele goza de uma certa popularidade no seu país, sobretudo entre os cidadãos comuns.

A mensagem parece ter sido: Isto não é algo com que devas preocupar-te. O próprio Gorbatchov tinha ignorado Kohl durante anos. Via-o como o porta-voz dos americanos e, durante muito tempo, manteve-se deliberadamente afastado da Alemanha Ocidental nas suas viagens à Europa.

As actas do encontro entre Krenz e Gorbatchov foram posteriormente publicadas em Moscovo, e foram recentemente também colocadas à disposição do público na Alemanha. No entanto, a passagem relativa a Kohl desapareceu na versão russa. Gorbatchov ficou tão embaraçado que a mandou apagar.

Quebrar o gelo

No Verão de 1990, depois de os dois homens terem negociado os pormenores da reunificação alemã, a relação de Gorbatchov com Kohl mudou. O gelo foi finalmente quebrado quando Gorbatchov e a sua mulher, Raisa, viajaram até à Alemanha em Novembro, visitando os Kohls na sua casa em Oggersheim, na região ocidental, visitando a adjacente Catedral de Speyer juntos. Até jantaram no restaurante favorito de Kohl, o Deidesheimer Hof. Naquela ocasião, os dois homens passaram a tratar-se pelos primeiros nomes - o que foi um progresso na relação.

Agora que a situação se estava a tornar arriscada no seu país, Gorbatchov precisava do influente chanceler alemão. Tudo escasseava nas lojas: carne, manteiga, leite em pó - e a sua popularidade estava a afundar-se.

Nesses meses, Gorbatchov pegava no telefone cada vez mais vezes para discutir a situação com o "amigo Helmut", que subitamente se tornara seu conselheiro político. Ambos usavam uma linha telefónica especial, e dificilmente alguma dessas conversas entre Moscovo e Bona apareceria posteriormente nos livros de Gorbatchov. Kohl, nas suas memórias, também só as menciona de passagem.

Esta hesitação torna-se clara a quem leia as transcrições, a maioria das quais preparada por tradutores que também tinham de prestar contas ao KGB. As conversas estavam repletas de queixas de Gorbatchov, os gritos de ajuda de um náufrago - palavras que o outrora orgulhoso líder soviético faria de tudo para que fossem esquecidas, duas décadas depois.

Na altura, porém, ele queria que Kohl encorajasse o Ocidente a salvar a União Soviética. Queria que o chanceler apresentasse o iminente colapso como uma catástrofe que poderia mergulhar o mundo inteiro no caos. Ou, claro, também esperava apoio na sua luta contra o seu mais duro rival, Boris Ieltsin.

Os dois homens falaram por telefone uma vez mais na tarde de 20 de Fevereiro de 1991. Kohl ligou a Gorbatchov, depois de Ieltsin, num discurso televisivo na véspera, ter apelado à demissão de Gorbatchov do seu posto no Kremlin. Gorbatchov também nunca publicou esta conversa, porque revela quanto ele subestimou o seu rival e como avaliou mal a situação.

Kohl: Olá Mikhail. Demitiste-te, como Ieltsin está a exigir?

Gorbatchov: Penso que ele sente que está a perder a autoridade e a ficar cada vez mais isolado. O seu discurso, ontem, foi um acto de desespero ou um erro estúpido. Ieltsin é um destruidor por natureza. Já não tem nada de construtivo a oferecer. Está a explorar a difícil situação actual e a tentar desencadear uma luta política.

Kohl: Isso vai beneficiá-lo a si.

Gorbatchov: Na reunião de hoje do Soviete Supremo da URSS, alguém disse que esses métodos não eram dignos de um homem com o estatuto dele [Ieltsin]. Provavelmente, ele terá de retractar-se quanto às palavras que proferiu. O presidente do Cazaquistão e o presidente do Soviete Supremo da Ucrânia já se distanciaram dele.

Kohl: Isso é vantajoso para si. Parece-me que se sente melhor agora. Fico feliz com isso.

Menos de quatro meses depois, mais de 45 milhões de eleitores escolheriam o supostamente isolado Ieltsin como presidente da Federação Russa, a maior república da União Soviética. Isto marcou o princípio de uma liderança dual que prenunciou o fim do domínio soviético. Numa conversa telefónica, em 30 de Abril, Kohl assegurou ao líder do Kremlin:

Kohl: Estou a fazer tudo o que posso para lhe angariar apoio aqui na Europa Ocidental. Farei o mesmo em Washington, onde irei dentro de duas semanas. Deve compreender que aqui algumas pessoas exprimem opiniões pessimistas sobre a sua situação.

Gorbatchov: Sim, estou ciente disso.

Kohl: Resumindo, isto é basicamente o que se diz: sim, Gorbatchov é um político forte, mas não conseguirá obter o que planeou. Nesta situação, é extremamente importante criar um ambiente diferente, psicologicamente. Por isso é que preciso que me dê informações autênticas. Tem de dizer-me como está verdadeiramente a situação.

Gorbatchov: Sabe, Helmut, há muitas pessoas entre os nossos amigos americanos que murmuram coisas sobre a "situação de Gorbatchov". Dizem, por exemplo: olhem, Gorbatchov apoia a preservação da União, enquanto Ieltsin poderá conceder aos Estados bálticos e a outras repúblicas a sua independência. Ieltsin apoia a propriedade privada, enquanto Gorbatchov favorece uma economia mista. Ieltsin vai preocupar-se mais com questões internas e, portanto, não vai atrapalhar os americanos noutras partes do mundo. Estas não são recomendações credíveis. Bush e o seu secretário de Estado, [James] Baker, ainda se mantêm firmes mas estão a ser cada vez mais pressionados. É claro que também tenho de superar essas dificuldades.

Kohl: Podes confiar em mim, Mikhail. Deixarei isso suficientemente claro aos líderes americanos e da Europa Ocidental.

A 5 de Julho, quando Ieltsin já era o presidente "de facto" da Rússia, esperando apenas pela sua tomada de posse, Kohl encontrou-se com Gorbatchov na residência de Verão do Partido Comunista da Ucrânia, em Mezhgorie. Nesse momento, nenhum dos dois líderes podia saber que, meio ano depois, a Ucrânia já seria um país independente.

À medida que iam sendo conduzidos do aeroporto de Kiev [capital ucraniana] para Mezhgorie, Kohl revisitou o pior cenário possível:

Kohl: Já pensei nisso: O que aconteceria se Gorbatchov partisse subitamente e Ieltsin ocupasse o seu lugar? Tenho de dizer que fico horrorizado só de pensar nisso. É claro que o país não pode ser deixado a tal homem.

Gorbatchov: Estamos obviamente de acordo nesse ponto.

Kohl: O que farás tu, Mikhail, quando os Estados bálticos finalmente deixarem a União [Soviética]?

Gorbatchov: Podem fazê-lo, é claro. É difícil mudar as ideias deles sobre soberania. Eles recusam envolver-se em qualquer discussão razoável. Se realmente querem retirar-se [da URSS] só há uma forma de o fazerem - a abordagem constitucional. Mas eles têm um enorme medo de seguir a via constitucional normal.

Kohl: Não vai mantê-los na União pela força. Por outro lado, deve ser claro para os Estados bálticos que não há outra opção senão aquela prescrita pela Constituição. E para eles o apoio verbal do Ocidente não muda nada.

Nem os alemães nem os russos viriam mais tarde tornar esta conversa pública, porque a visão de Kohl sobre Ieltsin era tão devastadora quanto a de Gorbatchov. O chanceler também preferiu não ver impresso o facto de que fez uma distinção clara entre o seu apoio público do princípio de autodeterminação e a sua verdadeira posição. Kohl não apoiou verdadeiramente a retirada das repúblicas soviéticas do Báltico da União e exigiu que tais decisões fossem aprovadas pelo Parlamento em Moscovo - o que, nessa altura, já era wishful thinking.

Kohl: Só um burro pode presumir que a destruição da União beneficia seja quem for. O colapso da União Soviética seria uma catástrofe para todos. Quem apoiar isso está a pôr a paz em perigo. Nem toda a gente me compreende quanto a isto. Mas pode presumir que não vou mudar de opinião quanto a isto... O decorrer da reforma de Gorbatchov tem de ser apoiado de forma consistente. Se Ieltsin vier ter connosco, vou dizer-lhe o mesmo. Dir-lhe-ei que ele não tem hipótese se não cooperar consigo. Os americanos disseram-lhe o mesmo.

Gorbatchov: Não, eles estão praticamente a incentivá-lo. Aos olhos deles, ele é um reformador.

Kohl: Se Ieltsin vier à Alemanha, será uma visita de trabalho. O meu objectivo mais importante é que vocês não se ataquem.

Gorbatchov: Talvez fosse boa ideia não o convidar em nome do chanceler? Outra pessoa devia convidá-lo e depois o chanceler juntava-se às reuniões como se fosse por acaso.

Kohl: Óptimo.

O objectivo de Gorbatchov de arruinar as hipóteses de Ielstin de avançar ainda mais e de conseguir ter Kohl do seu lado é, se possível, compreensível do ponto de vista humano. Politicamente, no entanto, era absurdo. Parece ainda mais absurdo que Gorbatchov ainda quisesse ser visto como o líder de uma potência mundial, mesmo quando estava a ser forçado a suplicar para conseguir algum apoio nos bastidores.

Precisamos de dinheiro

Duas semanas mais tarde, Gorbatchov viajou até Londres para estar presente, pela primeira vez, numa cimeira com os líderes das sete nações industrializadas e pedir que o seu país fosse admitido neste clube de pesos-pesados económicos. Kohl tinha aberto a Gorbatchov o caminho para Londres, passando por cima das objecções de americanos e japoneses. Na realidade, contudo, ele foi a Londres suplicar pelo menos 30 mil milhões de dólares para resgatar uma União Soviética doente e o seu presidente.

Muitos dos relatos escritos nessa semana - e Gorbatchov não viria a publicar nenhum deles - indicam que ele terá visto a situação como sendo humilhante. Na reunião em Kiev, repreendeu um homem da entourage de Gorbatchov que viria a tornar-se um dos seus contactos-chave nas semanas seguintes: Horst Köhler, o futuro presidente alemão que, na altura era secretário de Estado no Ministério das Finanças em Bona e o sherpa (representante pessoal) de Kohl na cimeira do G-7.

Quando Köhler apelou aos soviéticos que aceitassem as condições do Fundo Monetário Internacional (FMI), o líder do Kremlin indignou-se: "A URSS não é a Costa Rica. O rumo que a História toma, agora, irá depender do modo como configurarem as vossas relações connosco."

Quanto à ideia de um Plano Marshall para a União Soviética, Gorbatchov descreveu-o como "um regresso à velha arrogância, segundo a qual o comboio económico soviético não podia subir a montanha sem a locomotiva capitalista."

Na realidade, esta locomotiva era a única opção que restava aos soviéticos. A sua confiança em Kohl durante essas semanas era ilimitada. De facto, estavam praticamente eufóricos, acreditando que as coisas poderiam melhorar para eles com a ajuda do poderoso chanceler. Em Kiev, Cherniaev, o conselheiro de Gorbatchov, notou:

A nova amizade com os alemães recebeu mais um reforço. Se tudo correr bem com o factor germano-soviético, isso determinará o futuro quer da Europa como da política mundial.

No voo de regresso a Moscovo, Gorbatchov disse:

Kohl... fará tudo para nos ajudar a erguer-nos e voltarmos a ser uma superpotência moderna. Bem, ele está muito ansioso em relação à Ucrânia [Kohl também se encontrou com líderes ucranianos em Kiev]. Mas, para ele, já não é a Lebensraum de Hitler.

[Lebensraum, palavra alemã que significa espaço físico e populacional, com vastos recursos naturais necessários para um Estado-nação ser uma potência. O termo foi cunhado pelo geógrafo Friedrich Ratzel no século XVIII].

No início de Setembro, cerca de três semanas depois do golpe de Agosto, a situação financeira na URSS era tão precária que Gorbatchov chamou à parte o então ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, Hans-Dietrich Genscher, quando este visitava Moscovo e, abandonando qualquer sentimento de orgulho, declarou:

Gorbatchov: Precisamos de dinheiro para as despesas correntes, para que possamos continuar a viver e a manter as importações enquanto decorrerem as negociações para a reestruturação das novas dívidas a curto prazo. Tenciono discutir isto hoje com Kohl por telefone.

Genscher: Não sei se deve abordar uma questão tão delicada ao telefone. Posso enviar ao chanceler um telegrama encriptado, para que só ele o possa ler.

Gorbatchov: Precisamos de dois mil milhões de dólares. Talvez vocês possam adiantar 500 milhões dos pagamentos que iremos receber de vocês em Outubro, e retiramos a outra metade das nossas reservas. Esperamos conseguir mil milhões no Médio Oriente. Enviei [o vice-chefe do KGB] Primakov para lá com essa missão.

Genscher: Não tenho autoridade para responder a isso. Mas transmitirei tudo ao chanceler, imediatamente.

Kohl enviou Köhler a Moscovo. Gorbatchov, que já previa cenários horrendos à luz do apoio hesitante do Ocidente, encontrou-se com Köhler a 12 de Setembro.

Gorbatchov: O que se passa com a ajuda à URSS? Estamos a negociar, a ponderar as opções e a fazer cálculos. Isto é simplesmente indesculpável. Faz lembrar a República de Weimar na Alemanha. Embora os democratas discutissem uns com os outros, Hitler chegou ao poder sem grande esforço. Os países estrangeiros devem-nos 86 mil milhões de dólares, o que é, mais ou menos, a quantia de que precisamos agora. Espero que retirem as conclusões necessárias do que eu disse.

Köhler: O chanceler autorizou-me a informá-lo de que aprovámos o primeiro pedido, designadamente fornecer-vos mil milhões de marcos alemães. Quanto ao pedido de outros mil milhões, não temos alternativa a não ser envolver os nossos parceiros na União Europeia e no G-7. A busca de opções está complicada, devido às vossas expectativas financeiras bastante elevadas.

Gorbatchov: Não podem encontrar uma forma de nos concederem empréstimos em condições mais favoráveis? Talvez até empréstimos isentos de juros?

Köhler: Isso é muito difícil. Vou tentar convencer os meus parceiros [no G-7] de que o seu país ainda é passível de crédito. Para isso, no entanto, precisarei de mais pormenores sobre a vossa dívida externa e as possibilidades de venderem as vossas reservas de ouro.

Gorbatchov: Os números relativos às colheitas não são bons. Falei com [o presidente do Cazaquistão Nursultan] Nazarbaiev mesmo antes da sua chegada. Ele disse-me que as colheitas na área das terras recém-privatizadas são ainda mais modestas do que as estimativas previam.

Köhler: Segundo agências americanas, as colheitas no seu país totalizam 190 milhões de toneladas este ano, comparadas com as 230 milhões do ano passado. Uma diferença gigantesca.

Gorbatchov: Seria bom que nos fornecessem 180 milhões de toneladas... Durante a guerra do Golfo [após a invasão do Kuwait por Saddam Hussein, em 1990], toda a gente se juntou e colectaram-se grandes quantias para apoiar esse esforço - cerca de 100 mil milhões de dólares. Mas, quando se trata de apoiar este processo histórico num grande país, um processo de que depende tudo no mundo, começamos a regatear.

Köhler: Os americanos ganharam a guerra sem investir um único dólar do bolso deles.

Gorbatchov: E o que dizer de tudo o que a União Soviética fez pelo mundo? Quem está a somar esses números? E quanto pouparam com a nossa "perestroika" e nosso novo pensamento? Centenas de milhares de milhões de dólares no resto do mundo!

Köhler: Não há tempo a perder. É uma questão de semanas, até de dias. Um dos erros de cálculo na vossa "perestroika" foi subestimar o lado económico da questão.

Mas o plano para fazer chegar milhares de milhões de dólares a Moscovo com ajuda da Alemanha, e com isso salvar Gorbatchov, não resultou. Quando os ucranianos declararam a sua independência, num referendo em 1 de Dezembro de 1991, e elegeram o seu próprio Presidente, os dados estavam lançados. Sete dias depois, a Rússia, a Ucrânia e a Bielorrússia formaram a Comunidade de Estados Independentes [CEI], com oito repúblicas não eslavas que a ela aderiram depois.

A União Soviética estava a ser liquidada. A Alemanha celebrava o Natal quando Gorbatchov se demitiu do cargo de Presidente em 25 de Dezembro e a URSS chegou pacificamente ao fim. No mesmo dia, eEe enviou uma carta para Bona:

Querido Helmut!

Embora os acontecimentos não tivessem seguido o caminho que eu achava ser o mais correcto e o mais vantajoso, não perdi a esperança de que o esforço que iniciei há seis anos será eventualmente concluído com êxito, e que a Rússia e outros países que agora fazem parte de uma nova comunidade se transformem em países modernos e democráticos.

Com todos o nosso coração, Raisa e eu desejamos a Hannelore [Kohl] e a toda a sua família saúde, prosperidade e felicidade.

Do teu Mikhail

Nesta carta, Gorbatchov é de novo, totalmente, o estadista. Isso explica por que a carta está entre os poucos documentos daquele ano fatídico de 1991 que o reformador falhado publicaria posteriormente.

Exclusivo Pública/Der Spiegel - The New York Times Syndicate

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