O Moscatel de Setúbal está de boa saúde mas terá de se reinventar à mesa

As produções de vinho Moscatel duplicaram nos últimos 20 anos. As adegas estão cheias de vinhos à espera que o tempo revele identidade, mistério e riqueza. Riqueza que deverá ser reinventada à mesa

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Para esta prova foram submetidas pelos produtores nove referências de Moscatel de Setúbal

O universo das bebidas alcoólicas vive rodeado de contradições curiosas. No caso dos vinhos tranquilos, por exemplo, as tendências apontam para redução dos volumes de álcool por litro (apresentar hoje um tinto com 15% de álcool dá quase direito a prisão e, em muitos casos, é um castigo mais do que justo), mas o consumo de bebidas destiladas, com níveis de álcool altíssimos, cresce a ritmos impressionantes.

Quando falamos de bebidas destiladas não estamos apenas a falar dos whiskies, gins, vodka ou até rum. Falamos mesmo de aguardentes vínicas ou de aguardentes de frutos variados. As distribuidoras de bebidas vaticinam – e isso vale o que vale – que a aguardente de medronho passará a ser uma coisa entre o exótico e o finório. Tudo isso pode parecer estranho, sim, mas assim é o mundo.

Por outro lado, e continuando nas contradições, as bebidas alcoólicas doces de entrada de gama e até gama média passam – talvez com excepção do vermute em alguns mercados do sul da Europa – por uma crise valente. Basta ver a evolução em queda dos preços dos châteaux de referência da região do Sauternes, esse mítico vinho francês de colheita tardia. Tudo isso porque o mercado passou a fazer do açúcar em geral um alvo a abater.

Todavia, não há esquina de zonas centrais de moda de qualquer capital de europeia que não tenha bares de cocktails, que, curiosamente têm quase sempre uma matriz doce, com a ajuda de ingredientes variados (especiarias, frutos e infusões) ou de bebidas alcoólicas adocicadas, com destaque para os vermutes. É, de facto, um mundo misterioso.

Há, porém, notícias menos más neste domínio, como é o caso do renascimento dos vinhos de Jerez. Outrora famosos em mercados estratégicos (Inglaterra e Países Baixos), entraram de desgraça a partir dos anos 1970, em virtude do excesso de produção e redução da qualidade dos vinhos. Hoje, e em resultado, de um trabalho estratégico que envolve produtores, chefs, responsáveis de marketing e outros pensadores, a região de Jerez está a renascer. Hoje, provar um palo cortado (uma das categorias do Jerez) é um exercício de bom gosto.

Prova de Moscatel de Setúbal Marisa Cardoso
Prova de Moscatel de Setúbal Marisa Cardoso
Prova de Moscatel de Setúbal Marisa Cardoso
Prova de Moscatel de Setúbal Marisa Cardoso
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Prova de Moscatel de Setúbal Marisa Cardoso

Desafio: o momento de consumo

Entremos agora no Moscatel de Setúbal para dizer que não está, nem de perto nem de longe, em crise. Bem pelo contrário. No ano 2000, as produções de vinhos Moscatel situavam-se à volta de um milhão de litros por ano. Quando chegamos a 2020, os valores são o dobro: dois milhões de litros de Moscatel. Mais. Há 10 anos haveria na região uns quatro produtores que faziam vinhos de moscatel roxo. Hoje não haverá produtor que não tenha nas suas vinhas a muito complicada, mas deslumbrante casta moscatel roxo, responsável por vinhos inusitados e misteriosos.

Dedicamo-nos nesta edição aos vinhos de moscatel de Setúbal – vinhos de datados e vinhos de lote (os de moscatel roxo ficam para uma próxima). Uns mais doces e outros mais secos; uns com aromas de frutas primárias e outros com cheiros mais químicos; uns capazes de funcionar no início da refeição e outros feitos para acompanhar sobremesas de diferentes perfis.

De resto, o desafio dos vinhos doces em geral é o seu momento de consumo. Por regra, chegam-nos no final da refeição, com as sobremesas, quando já estamos um tanto ou quanto saturados de comida e vinho. E essa é a razão pela qual ficamos a ganir por um café, a água com gás e a conta se faz favor. Donde, um dos desafios do universo do Moscatel de Setúbal é perceber como se pode adaptar o vinho doce e com notas de frutos cítricos confitados ao início das refeições.

Os franceses fazem isso muito bem na ligação entre o Sauternes e o foie gras. Portanto, por que razão não podemos nós fazer o mesmo? Dava jeito reduzir o açúcar residual nos vinhos? Pois dava. E isso nem é pecado (até no porto vintage se vê essa tendência). Alguns moscatéis de Setúbal podem ligar bem com terrinas de fígados de peixe (e em que terra haverá melhores e variados peixes do que Setúbal?), com entradas à base de cogumelos (sabor a terra), de algas (notas salinas) e de frutos secos (figos, amêndoas e aparentados).

E esta é que é a questão: em Azeitão e arredores há muita riqueza de perfis de moscatel. Assim sendo, é fundamental criar em conformidade. É para isso que os chefs existem. Os que pensam, não os que se inspiram em São Google.

Aqui ficam alguns moscatéis que merecem ser conhecidos – os que resultam de diferentes colheitas para uma média de idade precisa (5, 10 ou 20 anos) e aqueles espelham um ano especial.


Este artigo foi publicado no n.º 4 da revista Solo.

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