Morreu Bernardo Moreira (1932-2022), um personagem histórico do jazz em Portugal

Músico de jazz e formador de muitos músicos, antigo director do Hot Clube de Portugal, Bernardo Moreira (“Binau”) morreu na quinta-feira, em sua casa. Tinha 90 anos.

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Bernardo Moreira na cave do Hot, em Julho de 2000 MIGUEL SILVA

Era o decano dos músicos de jazz em Portugal e sobreviveu a muitos dos que o acompanharam nessa aventura, na primeira metade do século XX. Bernardo Moreira, engenheiro de profissão e contrabaixista por amor à música, conhecido entre amigos e nos meios do jazz por “Binau”, morreu na noite de quinta-feira, em casa, durante o sono.

Director do Hot Clube de Portugal entre Fevereiro de 1992 e Maio de 2009, foi contrabaixista. Com a escritora e professora Yvette K. Centeno, teve quatro filhos que se envolveram também eles na música, tendo três deles seguido carreira no jazz: Bernardo (contrabaixista, n. 1965), Pedro (saxofonista, n. 1969), João (trompetista, n. 1970). O quarto, Miguel, que chegou a ser pianista, dedicou-se depois à astrofísica.

Nascido em Coimbra, a 27 de Junho de 1932, Bernardo José Costa Sousa Macedo Martins Moreira começou ali a tocar na Orquestra Ligeira Académica, nos anos 1950, segundo a Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, dirigida por Salwa Castelo-Branco (ed. Círculo de Leitores, 2010). Segundo o texto que lhe é dedicado, assinado pelo também músico, crítico e divulgador de jazz Manuel Jorge Veloso, foi nessa altura que começou “a interessar-se pelo jazz, participando nas primeiras jam sessions”. Cumprido o serviço militar, foi em Lisboa, onde viria a radicar-se, que concluiu a licenciatura em Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico.

E é também nessa altura que, ainda segundo a Enciclopédia, integra “o núcleo da geração de músicos de jazz amadores”, núcleo esse que incluía, entre outros, “António José [de Barros] Veloso, José Luís Tinoco e Vasco Henriques, com os quais já tocara enquanto estudante em Coimbra”. Em 2018, numa entrevista ao Expresso, por ocasião dos 70 anos do Hot, Bernardo Moreira recordava assim esses tempos: “Quando vim para Lisboa estudar, aos 22 anos, já era conotado como ‘o tipo que tocava jazz’. E algumas vezes, a subir ou a descer o Chiado, cruzei-me com amigas de infância que chegaram a mudar de passeio só para não ter de me falar em público. Era muito fora da norma.” Nada, porém, que o fizesse desistir.

Quarteto do Hot, um outro início

Em finais dos anos 50, é um dos fundadores do Quarteto do Hot Clube de Portugal, como contrabaixista, juntamente com Justiniano Canelhas (piano) e Manuel Jorge Veloso (bateria), vindo a juntar-se-lhes mais tarde, em 1958, o saxofonista Jean-Pierre Gebler. A sua primeira apresentação pública, fora do Hot, segundo escreveu Raul Vaz Bernardo na já aqui citada Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, foi a 5 de Outubro de 1960 no palco da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto; mais tarde, actuaria no estrangeiro, no Festival de Jazz de Comblain-la-Tour (Bélgica), em 1963, participando em jam sessions com músicos como Chet Baker, Philip Catherine ou Jacques Pelzer.

No mesmo ano, o quarteto gravou a música do filme Belarmino, de Fernando Lopes, escrita por Manuel Jorge Veloso, com uma composição de Justiniano Canelhas. O Quarteto do Hot Clube, escreveu Raul Bernardo, “foi fundamental no desenvolvimento da prática do jazz de expressão moderna em Portugal”. E nos anos 60, segundo Manuel Jorge Veloso, “manteve intensa actividade musical, acompanhando no Hot Clube de Portugal, em concertos e na televisão, músicos estrangeiros como, por exemplo, Herb Geller, Dexter Gordon e Pony Poindexter. Formou com Marcos Resende e Paulo Gil o Bossa-Jazz Trio, tendo nesse contexto participado no espectáculo que Vinicius de Moraes, Chico Buarque e Nara Leão realizaram no Teatro Villaret (1968). O mesmo trio passou a acompanhar regularmente cantores brasileiros no célebre programa televisivo Zip-Zip.”

A partir de 1968, por obrigações profissionais ligadas à engenharia, Bernardo foi abandonando progressivamente a música, a ela regressando no início dos anos 1980, primeiro como mentor dos filhos e depois como professor na Escola de Jazz do Hot, entre 1988 e 1994, na cadeira de Introdução ao Jazz. Entretanto, fora eleito director do clube em 1992, cargo que manteve até 2009.

Em 2014, a cantora Paula Oliveira decidiu juntar em trio António José de Barros Veloso (piano), Bernardo Moreira (“Binau”) (contrabaixo) e Manuel Jorge Veloso (bateria) para gravarem com ela um disco, que viria a chamar-se Just In Time e que teve a participação de vários outros músicos. O que, como depois disse Bernardo Moreira, “foi um desafio aliciante e ao mesmo tempo aterrador”, até porque nunca tinham tocado os três juntos. Mas a experiência ficou com um registo histórico.

Na edição especial da revista Hot News que comemorou os 70 anos do Hot Clube (1948-2018), foi incluída em dupla página uma fotografia de seis pessoas que tinham passado pela direcção da instituição. Bernardo Moreira era o primeiro, de pé. Também lá estava Inês Homem Cunha, que lhe sucedeu no cargo e ainda o ocupa, e mais dois dos antecessores de ambos, que não há muito tempo nos deixaram: Manuel Jorge Veloso (1937-2019) e Paulo Gil (1937-2022).

Pois num texto escrito para essa revista, Bernardo Moreira recordou as dezenas de jam sessions no clube nos primeiros 25 anos da sua actividade (1948-1972), antes dos concertos “com grupos fixos, organizados e ensaiados”. E lembrou nomes como os de “Dexter Gordon, Herb Geller, Thad Jones, Trummy Young, Frank Foster e ainda os ‘monstros’ da Bossa Nova como Chico Buarque, Vinicius, Nara Leão, Raulzinho, Luis Carlos Vinhas”, para concluir: “Todos me marcaram de uma forma ou de outra e com eles passei horas inesquecíveis.”

A lição de Sacha Distel

Porém, desafiado a escolher um nome de entre todos, apontou o de Sacha Distel, “cantor de charme” francês, porque com ele vira “de uma forma muito clara a verdadeira hierarquia entre a criação artística e o sucesso comercial”. Terminado o concerto para que fora contratado no Casino do Estoril, o músico “deixava para trás o bando de fãs que o perseguia e, refugiado na cave do Hot, tocava jazz até de manhã”, deixando Bernardo Moreira “deslumbrado com a sua qualidade e entrega à música”.

Daí uma declaração posterior de Sacha “a uma revista francesa em Paris”, que Bernardo quis citar (“de cor”, ressalvava) no final desse seu texto: “O Hot Clube em Lisboa é talvez o melhor sítio do mundo para tocar. Quem está a assistir não conversa e, se bebe, não faz barulho. Está mesmo a ouvir. E sobretudo reage ao que se faz – se tocarmos qualquer coisa boa, vemos-lhes na cara que, mais do que perceberam, gostaram.”

É a esta herança que Bernardo Moreira, ou “Binau”, ficará para sempre ligado. Até porque, como ele disse a fechar a já citada entrevista ao Expresso: “É graças ao Hot Club que hoje sou músico de jazz.” O velório está marcado para domingo, 6 de Novembro, na Capela 1 da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa, realizando-se o funeral na segunda-feira, dia 7, com missa a partir das 14h e saída para o cemitério do Lumiar às 14h30.

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