Um dia na vida do jazz e o jazz nos dias de uma vida

A atmosfera do 1.º Festival de Jazz de Cascais, há 50 anos, foi irrepetível. E isso é também lembrado num livro recente sobre Barros Veloso.

Foi uma estreia com o efeito de uma bomba: depois de muitos anos a penar por maior difusão e a ambicionar um maior público, o jazz ganhou o estatuto de grande acontecimento nacional com a realização do 1.º Festival Internacional de Jazz de Cascais. Foi em Novembro de 1971, faz agora 50 anos, nos dias 20 e 21, por coincidência um sábado e um domingo, como este ano. Das muitas efemérides celebradas em 2021, esta é daquelas que dificilmente se esquece, embora o jazz “de multidões” tenha sido episódico, desvanecendo-se com os anos na diminuição do número de adeptos, que depois foram à sua vida, seguindo outras músicas. Mas naquele primeiro dia (e quem lá esteve, como nós, não o esquece) havia a atmosfera irrepetível de uma estreia, tal qual viria a viver-se num outro dia irrepetível, o 1.º de Maio de 1974, escassos dias após o derrube da ditadura. Porque naquelas noites que duraram até às tantas, no inacabado Pavilhão do Dramático de Cascais estava gente de variados gostos e de muitas artes a ouvir jazz (Amália, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Jorge Peixinho, Fernando Tordo, Alexandre O’Neil, Francisco Pinto Balsemão, tantos outros), a par de muitos que pouco ou nada o ouviam, mas que ali foram ver Miles Davis (septeto, com Keith Jarrett), Ornette Coleman, Phil Woods, Dexter Gordon e, sob a sigla Giants of Jazz, também Dizzy Gillespie, Thelonius Monk, Art Blakey ou Sonny Stitt.

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Dizzy Gillespie a tocar no meio da plateia em 1971, numa foto de capa do diário A Capital e Miles Davis na capa da revista Mundo da Canção

A história, já contada e recontada em jornais e revistas, foi uma odisseia à nossa pequena escala. De cada vez que a ela se volta, relembram-se episódios homéricos, picarescos, bizarros, alguns até pueris, mas nada se compara à memória de lá ter estado, por entre uma multidão sequiosa de música e liberdade, em plena ditadura e aproveitando a “abertura” cosmética do marcelismo, no palco inimaginável de um pavilhão nunca acabado (em 1971 não tinha instalação eléctrica, nem sanitária, nem pavimento, o chão era em betão e foi nele que assentaram os sons do jazz), que viria a acolher mais festivais de jazz – e de rock, estreando-se em 1973 com os Procol Harum.

Agora que os festivais são outros, Leonel Santos dedicou este mês a recordar o de 1971 no seu Jazzlogical, passando em revista o que sucedeu no festival e dele se disse em jornais e revistas, a começar pel’A Capital, que lhe dedicou um suplemento de oito páginas e onde, por entre tantas palavras, se registavam estas, de Manuel Jorge Veloso (1937-2019), que acompanhara Dexter Gordon à bateria numa daquelas inesquecíveis noites em Cascais: “Tão importante o que aqui se passou que, sinceramente, neste momento dói-me tudo e mais alguma coisa, até o coração”.

O episódio do contrabaixista Charlie Haden (que integrava o grupo de Ornette) a dedicar Song for Che aos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné ou as excentricidades de Miles são dois dos episódios recorrentes quando se fala deste festival (que não existiria sem Luís Villas-Boas, o seu mentor, ou João Braga, que conseguiu desbloquear o patrocínio), mas há muito para desvendar, para quem se interesse pelo tema: há o documentário Rewind Cascais Jazz 1971, de 17 minutos, realizado por João Abecasis Fernandes e estreado no Estoril Jazz de 2009 (o documentário encontra-se na íntegra no YouTube, dividido em Parte 1, Parte 2 e Parte 3), já editado num DVD apenso ao opúsculo Cascais Jazz, 40 Anos de um Festival Mítico, de João Moreira dos Santos, e, também da autoria deste, o livro Jazz em Cascais, Uma História de 80 anos (1928-2008), editado pela Casa Sassetti em 2009. Além de textos de muitos autores.

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Cartaz do festival de 1971 e capa do livro de Barros Veloso

A estes, veio juntar-se agora um livro que não é somente acerca de jazz, mas de um nome que figura na primeira linha da história do jazz nacional: António José de Barros Veloso, Uma Vida, Vários Mundos. Em forma de extensa e estimulante entrevista conduzida por Margarida Almeida Bastos (ed. By The Book, 2021), tem um capítulo dedicado ao jazz, no qual Barros Veloso conta como chegou a tal música por volta dos 11 anos, ouvindo Glenn Miller ou Tommy Dorsey num gramofone de corda; como se estreou em Coimbra como pianista já depois de ouvir discos de Parker e Miles; como integrou mais tarde o grupo que pôs o Hot a ouvir música ao vivo; e como nos anos 60 deixou o jazz para se dedicar em exclusivo à medicina, voltando a ele nas décadas de 70, 80 e 90, acompanhando com prazer músicos de novas gerações.

De 1971, recorda o “elenco de luxo que nunca tínhamos sonhado ver”, comentando: “Melhor do que isto e de uma só vez era para nós impensável.” E ele lá esteve, entre as 15 mil pessoas da audiência, como alguém que diz que na sua vida o jazz “tem sido uma companhia constante”. À distância de meio século, este 1971 foi decisivo para que o jazz se tornasse constante em muitas vidas mais.

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