A morte dos anfíbios pode ser uma pista para o aparecimento de malária

É essa a hipótese na Costa Rica e no Panamá, onde o desaparecimento de dezenas de espécies é agora associado ao aumento de casos de malária na região. Mais um aviso de que a perda de biodiversidade pode prejudicar a saúde humana.

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A rã dourada panamenha está entre as espécies cujas populações entraram em colapso após o aparecimento de um fungo letal Brian Gratwicke/Wikimedia Commons

Se por morrer uma andorinha, não acaba a Primavera, ouve-se com recorrência, o mesmo não se pode dizer dos anfíbios. Não que colapsem com uma estação do ano, mas o desaparecimento de dezenas de espécies de anfíbios, como sapos ou salamandras, pode ser a alavanca que engrena o aparecimento de mais doenças infecciosas transmitidas por mosquitos. Mais concretamente a malária, cujo aumento de casos na Costa Rica e no Panamá surge agora associado ao desaparecimento de anfíbios desde os anos 1980.

Em pouco mais de três décadas, a partir desses anos 1980, um fungo mortal passou despercebido na América Latina. O fungo quitrídio (de seu nome Batrachochytrium dendrobatidis) não é um problema meramente local. Além de ser extremamente virulenta, a quitridiomicose (doença provocada por este fungo) já contribuiu para extinguir 90 espécies e para o declínio de mais de 500. Uma análise publicada na revista científica Science, em 2019, afirma mesmo que a quitridiomicose “representa a maior perda de biodiversidade atribuível a uma doença”.

E foi isso que aconteceu na Costa Rica e no Panamá. Este fungo, que se move em superfícies molhadas, infectou dezenas de espécies de anfíbios e desregulou o ecossistema instalado. A onda que conduziu o fungo aos anfíbios viajou pela Costa Rica nas duas últimas décadas do século XX e depois para o Panamá no início dos anos 2000. “Depois deste colapso em movimento das populações de anfíbios, ambos os países notaram grandes aumentos nos casos de malária”, lê-se num artigo agora publicado, na revista científica Environmental Research Letters.

“É claro que a ecologia das doenças infecciosas transmitidas por mosquitos depende da temperatura e da precipitação. Estes regimes de chuva estão em mudança e continuarão a mudar devido às alterações climáticas. E com isto devíamos esperar também uma mudança na distribuição espaciotemporal das doenças transmitidas por mosquitos”, alerta Michael Springborn, líder deste estudo e investigador na Universidade da Califórnia em Davis, em resposta ao PÚBLICO.

O fluxo e a lógica por detrás da associação entre o desaparecimento dos anfíbios e o aumento dos casos de malária são relativamente simples. As alterações climáticas promovem uma “migração” dos mosquitos para outras regiões e, quando antes estes mosquitos eram comidos pelos anfíbios, agora (sem anfíbios) estão livres para se acomodar, proliferar e infectar pessoas com malária.

O aumento registado na Costa Rica e no Panamá, quando compararam os anos antes e depois do desaparecimento de anfíbios, é significativo: no pico, uma em cada mil pessoas por ano contraiu malária, quando tal não seria expectável antes da morte dos anfíbios.

A equipa liderada por Springborn chegou a estas conclusões através da associação de dados disponibilizados pelos ministérios da saúde locais e de modelos desenvolvidos para mostrar uma associação entre a menor presença de anfíbio e o crescimento da malária nos dois países.

Ainda assim, é apenas uma associação – não existem provas directas deste impacto. “Não podemos manipular a natureza”, aponta Henrique Silveira, investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, explicando que só com esta manipulação se poderia criar um ambiente que mostrasse um fenómeno de causa e efeito.

“O nosso ecossistema está tremido”

Henrique Silveira acrescenta à discussão a importância de perceber mais sobre a transmissão destas doenças. “A biodiversidade, que poderíamos considerar irrelevante para a transmissão de doenças, afinal tem um impacto bastante interessante. E isto relembra que o controlo de doenças infecciosas transmitidas por vectores [como mosquitos] é complexo e envolve várias componentes – em que o ambiental é claramente importante”, diz ao PÚBLICO.

O impacto das alterações climáticas na mobilização de mosquitos para outros locais e na disseminação de doenças infecciosas não é novo. Mas a sua associação com a perda de biodiversidade nunca tinha sido demonstrada.

“O nosso ecossistema está tremido”, nota Isabel Veiga, investigadora em malária da Universidade do Minho. “O aumento de malária [neste estudo] não é directo. Mas é mais uma evidência de que é muito importante preservarmos o nosso ecossistema, mesmo não gostando de mosquitos, de sapos ou de rãs. É um pequeno ponto que negligenciamos e que faz com que tudo flua”, alerta.

Este estudo liderado por Springborn também pode ter o condão de criar uma nova ferramenta para observar futuras alterações – e para prestar mais atenção aos declínios de espécies menos estudadas. O investigador norte-americano nota ao PÚBLICO que outras áreas da América Central e do Sul têm tido experiências semelhantes.

Os factores ambientais não são somente a perda de biodiversidade. “Existem três formas diferentes que podem associar os ecossistemas à malária, dependendo também da região. Nalguns locais pode ser a desflorestação, a temperatura ou a precipitação”, diz Springborn.

A precipitação é um dos mais comuns, inclusive na preparação dos planos de controlo: quando chega a época de chuvas, entram os programas de protecção. “Precisamos de todo o tipo de informação para vigiar esta doença e, se forem recolhidos dados regularmente, isto pode servir para criar avisos sobre futuras transmissões”, indica o investigador Henrique Silveira.

Portugal não está fora de perigo

Apesar de ser uma doença com a qual não lidamos de forma corrente na Europa, a malária estima-se que, em 2020, tenham existido 241 milhões de casos e 627 mil mortes em todo o mundo. “Houve um passo atrás no programa [contra a malária da Organização Mundial da Saúde] a nível de fundos”, explica Isabel Veiga. A investigadora da Universidade do Minho acrescenta ainda o medo dos trabalhadores que fazem a desinfestação dos mosquitos em saírem de casa durante a pandemia.

“Com a covid-19, houve mais 14 milhões de casos do que anteriormente e mais 70 mil mortes. Só comparando os dados de 2019 com 2020. Este aumento deve-se ao facto de as pessoas terem receio de sair de casa. Alguém com sintomas vai deixar a infecção atingir um ponto mais severo e isso pode levar a um maior número de mortes. E quanto mais tempo demorar a ser tratado, mais tempo [o doente] é um vector de transmissão para outras pessoas”, acrescenta.

Com o aumento das tempestades, da seca e das mudanças repentinas de tempo em Portugal, estaremos também em perigo? “Não está fora de questão, já que temos [no país] o mosquito que pode transmitir a malária, e com o aumento das temperaturas, Portugal pode assimilar temperaturas mais tropicais e ajudar na proliferação destes mosquitos”, atenta Isabel Veiga. “Se será um problema para Portugal? Acredito que não. Tendo em conta o nosso sistema de saúde, mesmo que haja um surto, conseguiremos responder”, esclarece.

A debilidade dos sistemas de saúde é um dos maiores problemas na limitação da malária, à qual se juntam também as condições de habitação ou mesmo os tratamentos disponíveis para uma doença que é endémica nas regiões mais tropicais de África, Ásia, América Central e do Sul.

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