EUA anunciam cortes no uso da água do Colorado, sem haver acordo para reduções drásticas
É necessária uma redução no consumo de água do rio Colorado de cerca de um terço do seu fluxo anual, e não é fácil para os estados desta bacia hidrográfica chegarem a um consenso sobre como fazê-lo. A agricultura e o mercado de hortofrutículas devem ser fortemente penalizados.
A seca histórica no Sudoeste dos Estados Unidos está a fazer com que as maiores barragens cheguem a níveis cada vez mais baixos, exigindo cortes sem precedentes no consumo de água. A Administração de Joe Biden anunciou na terça-feira que a redução do fluxo de água do rio Colorado passou pela primeira vez um limite a partir do qual serão necessários cortes sem precedentes nos estados do Arizona e do Nevada.
No entanto, o Governo federal, que tinha feito um ultimato aos sete estados (e o México) que partilham o rio Colorado para encontrarem forma de fazer cortes radicais no seu uso da água do rio até 15 de Agosto, anunciou numa conferência de imprensa que lhes daria mais tempo para chegarem a um acordo sobre a água que abastece 40 milhões de pessoas.
Vão, no entanto, avançar cortes que já tinham sido negociados. Previsões a 24 meses reveladas nessa conferência de imprensa mostram que o nível dos dois maiores reservatórios do Colorado, o Lago Mead e o Lago Powell, chegaram a um ponto tão baixo que vão ser accionados cortes previstos em acordos anteriores: os estados do Arizona e do Nevada, bem como o México (onde o Colorado desagua) terão a quantidade de água que recebem do rio reduzia pelo segundo ano seguido: 21% para Arizona, 85% para o Nevada, e 7% para o México.
Mas isto ainda não é nada, se comparado com o esforço pedido em Junho pelo Bureau of Reclamation – a agência que gere e protege a água e as barragens nos EUA – aos estados que formam a bacia superior (Novo México, Colorado, Utah e Wyoming) e a bacia inferior (Nevada, Califórnia e Arizona) do rio Colorado.
É necessária uma redução no consumo de água entre 2500 milhões e 4900 milhões de metros cúbicos – cerca de um terço do fluxo anual do rio. Isto para garantir que nas barragens de Glen Canyon e Hoover, que levaram à formação dos lagos Powell e Mead, respectivamente, continue a ser possível produzir electricidade. O esforço teria de ser voluntário, senão a ameaça era de que a agência federal imporia os cortes.
Mas encontrar um consenso entre os estados não tem sido fácil, embora o vice-secretário do Interior, Tommy Beaudreau, tenha sublinhado, na terça-feira, que “ainda há tempo”. Não avançou nenhum calendário para quando o Governo federal poderia impor os cortes mais radicais, se não houvesse um acordo voluntário.
Ponto de viragem
Esta situação mostra bem quão dura se tornou a seca na bacia do rio Colorado e o desafio que é conjugar os interesses muitas vezes contraditórios dos estados face à necessidade de cortar um abastecimento de água fundamental para cidades, agricultura e produção de electricidade para milhões de pessoas.
O declínio do rio Colorado levou ao desaparecimento de três quartos a água dos maiores reservatórios norte-americanos, aproximando-os cada vez mais dos níveis em que deixa de ser possível produzir electricidade nas barragens, e milhões de pessoas vão perder acesso a água potável e para irrigação agrícola. Com a declaração pelo Bureau of Reclamation, na terça-feira, de que a bacia inferior do rio Colorado chegou ao nível 2 de escassez de água, entram em vigor os cortes automáticos de água para o Arizona, o Nevada e o México.
“O sistema está a chegar a um ponto de viragem e, se não agirmos, não poderemos proteger o sistema e os milhões de norte-americanos do Oeste Americano que dependem deste recurso crítico”, disse Camille Calimlim Touton, comissária daquela agência federal.
O Pacto do Rio Colorado, assinado em 1922, é o documento que estabelece as regras de partilha da água do rio entre os sete estados norte-americanos (Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada, Novo México, Utah e Wyoming) pelo qual ele passa, juntamente com o Tratado da Água entre os Estados Unidos e o México de 1944 (pois o rio banha ainda dois estados deste país, e desagua lá).
O Pacto estabelece duas bacias do rio, a bacia superior e a bacia inferior. Estipula a quantidade de água a que têm direito (9200 milhões de metros cúbicos por ano cada bacia) e as regras para que os utilizadores da bacia superior não gastem mais do que aquilo a que têm direito, com mecanismos que podem obrigar a fazer compensações, se houver abusos.
Bloqueio
Mas, nos últimos tempos, responsáveis estaduais de ambas as bacias têm expressado frustração com as negociações para reduzir o uso da água do Colorado.
Responsáveis do Colorado, que fica na bacia superior, disseram esperar que os estados da bacia inferior, que consomem mais água, se esforcem mais. Por sua vez, o director do Departamento de Água do Arizona, Tom Buschatzke, disse ser “inaceitável” que o seu estado “continue a carregar um fardo desproporcionado das reduções em benefício de outros que não contribuíram”.
As negociações estão num ponto de bloqueio. “Através da nossa inacção colectiva, o Governo federal, os estados da bacia do Colorado e cada utilizador da água do rio está a ser cúmplice em permitir que a situação chegue a este ponto”, disse John Entsminger, administrador geral da Autoridade da Água do Sul do Nevada, numa carta enviada esta semana à secretária do Interior, Deb Haaland.
A raiz do problema é a seca que dura há 23 anos no Sudoeste dos Estados Unidos, a mais longa em 1200 anos. A neve nas Montanhas Rochosas que alimenta o rio Colorado, com um percurso de mais de 2330 quilómetros, tem vindo a diminuir à medida que o clima aquece. Os solos cada vez mais secos absorvem a água antes de poder chegar aos reservatórios, e os episódios de calor extremo, também mais frequentes, aceleram a evaporação.
“A seca prolongada que está a afectar o Oeste, impulsionada pelos efeitos das alterações climáticas, incluindo o calor extremo e a baixa precipitação, é um dos desafios mais significativos para o nosso país”, comentou Tommy Beaudreau.
As negociações para tentar reduzir o uso de água do rio Colorado estão a tentar fazer um equilíbrio entre as necessidades a curto prazo, para impedir que os Lago Mead e Powell fiquem num nível demasiado baixo, e estabelecer um acordo a longo prazo, em que todas as partes terão de encontrar formas de usar menos água, porque as alterações climáticas tornaram o Oeste norte-americano mais quente e mais seco.
“A situação que estamos a enfrentar é que a redução continuada nos lagos Mead e Powell está a começar a afectar a capacidade de física de usar a água que lá está armazenada”, disse Deven Upadhyay, director-geral adjunto do Distrito Metropolitano de Água do Sul da Califórnia, um grande fornecedor de água no estado. Cerca de um quarto da água que fornece é proveniente do Colorado.
“Não podemos discutir sobre isto para sempre. Os reservatórios acabariam por secar, e deixaríamos de ter acesso à água, e acabaríamos por não ter nada sobre a qual negociar”, disse Upadhyay. “Posto isto, as discussões estão-se a passar num quadro diferente agora”, concluiu.
Mas não é fácil encontrar um equilíbrio entre as exigências de tantos estados, cidades, tribos e agricultores. O rio Colorado foi dividido há um século, e para além dessa grande divisão em bacia superior e inferior, o acesso à água é governado por uma confusa teia formada por uma hierarquia de direitos baseada na doutrina de reserva prévia [um sistema exclusivo do Oeste dos EUA] que significa que a primeira pessoa que chega à água tem prioridade, adquire um direito superior ao dos futuros beneficiários. Essa pessoa e os seus sucessores têm o direito de usar uma quantidade especificada de água para um fim que traga benefícios todos os anos.
Mas esta teia de direitos superiores e secundários baseia-se num sistema desactualizado e desigualdades que, por exemplo, deixaram de fora da equação os nativos americanos.
As negociações durante os últimos dois meses “não produziram nada em termos de acção colectiva significativa para ajudar a evitar a crise iminente”, disse John Entsminger.
Agora começa o pior
Especialistas no rio Colorado dizem que o ultimato sobre o rio apresentado pelas autoridades federais – a redução do consumo de entre 2500 milhões e 4900 milhões de metros cúbicos de água – é apenas o início do que será um período de dramatismo sem precedentes para todos os intervenientes no rio.
“O período mais tumultuoso dos 100 anos de história [do Pacto do Colorado] acontecerá provavelmente nos próximos anos”, disse Zach Frankel, director executivo do Conselho dos Rios do Utah. “O Bureau of Reclamation move-se a uma velocidade glacial. Portanto, o facto de terem testemunhado perante o Congresso dos Estados Unidos que os estados tinham 60 dias para conceber um plano para cortar entre 2500 milhões e 4900 milhões de metros cúbicos ao seu consumo de água do Colorado é um abalo sísmico. É chocante. É espantoso”, acrescentou Frankel.
“Mas como decidimos quem faz os cortes? Este é o maior desafio na Bacia do Rio Colorado”, expôs Zach Frankel.
A dimensão do corte no consumo das águas do Colorado pedida pelas autoridades federais é considerada adequada pelos especialistas, levando em conta as condições de emergência do rio.
Jack Schmidt, director do Centro de Estudos do Rio Colorado na Universidade do Utah, disse que os dados do Bureau of Reclamation mostram que os estados da bacia do rio têm estado a usar 1480 milhões de metros cúbicos de água anualmente durante quase todo este século, o que impede a recuperação dos níveis de água nos lagos Mead e Powell, mesmo durante os anos mais húmidos. Invernos mais secos e um fraco escoamento provavelmente levaram o excesso de consumo até 2200 milhões de metros cúbicos anuais, disse Schmidt. Isto é quase o valor mínimo que o Bureau of Reclamation pede aos estados para cortarem no seu consumo de água do Colorado.
“Os números avançados – [recorde-se] um corte de 2500 milhões a 4900 milhões de metros cúbicos – são perfeitamente razoáveis e responsáveis”, disse Schmidt. “O valor de 2500 milhões trava a sangria, e o de 4900 milhões de metros cúbicos serve para iniciar a recuperação do sistema”, explicou.
A situação exige mesmo acções drásticas: espera-se que o lago Powell esteja com um nível de 1073 metros a 1 de Janeiro de 2023 – o que fica apenas 9,7 metros acima do mínimo que é considerado necessário para se poder produzir electricidade na barragem de Glen Canyon. O lago Mead deve estar a 319 metros – o que levou a accionar os cortes adicionais no Nevada, Arizona e México.
Não têm sido tornados públicos detalhes das negociações entre os estados para os cortes no consumo de água, mas as declarações que têm sido feitas mostram as divisões entre os estados da bacia superior e os da bacia inferior, sublinhando as dificuldades em chegar a um compromisso.
No mês passado, os estados da bacia superior divulgaram um plano de conservação com cinco pontos que não especificava objectivos de poupança, mas que sugeria, entre outras coisas, que fosse retomado um programa de 2015 que compensava agricultores que deixassem terra por cultivar.
Becky Mitchell, directora da Administração de Conservação de Água do Colorado, recusou-se a pôr um número no sacrifício que a bacia superior está disposta a fazer. “Sempre dissemos que o sucesso depende do que acontecer na bacia inferior”, afirmou, numa conversa online organizada pelo jornal Colorado Sun. “Se não houver cortes significativos à água que é usada na bacia inferior, os nossos cortes nunca terão muito peso”, concluiu.
Deixar de cultivar
Esta posição deve-se ao facto de a bacia inferior do Colorado usar muito mais água do que os seus vizinhos a norte. Por isso, nos estados mais a sul, os agricultores e gestores da água estão a preparar-se para grandes perturbações. Grandes regiões agrícolas da Califórnia e do Arizona estão a prever faltas no mercado agrícola dos Estados Unidos, porque os agricultores destes estados terão de deixar mais terras em pousio para poupar água.
“Esta questão afecta todo o país, porque muitos dos produtos hortofrutícolas americanos são provenientes dos vales Imperial e Yuma”, disse Mike Wade, director executivo da Coligação de Água para a Agricultura da Califórnia. “Se não houver água suficiente, isso vai afectar a quantidade e a qualidade da fruta e vegetais frescos que chegam aos supermercados em todo o país”, realçou.
Wade disse que cerca de 280 mil hectares devem ser deixados por cultivar na Califórnia este ano, o que fará com que haja no mercado menos tomates, melões, arroz e luzerna. E com futuros cortes no consumo da água do rio Colorado, a situação agravar-se-á.
Paul Orme, um advogado que representa agricultores em Pinal County, no Arizona, disse que dos cerca de 100 mil hectares de terrenos irrigados da região, 40 mil vão ser deixados em pousio. “Uma situação é sempre má, seja qual for o prisma”.
“Pousio é uma palavra feia aqui – ninguém gosta de o fazer”, disse Robert Schettler, porta-voz do Distrito de Irrigação do Vale Imperial, que usa água do rio Colorado. “Tem impacto sobre a economia local. E a agricultura é a nossa espinha dorsal. Estamos a afastar terrenos produtivos da produção. Isto significa que há menos trabalho para os trabalhadores agrícolas, para os vendedores de sementes, para os enfardadores de feno e para tudo o que esteja relacionado com a agricultura”, explicou.
A expectativa é que os agricultores do Oeste sejam pagos para não cultivar as suas terras e poupar água do Colorado. Muitos esperam que parte do financiamento venha dos 4000 milhões de dólares (3900 milhões de euros) destinados à mitigação na seca no pacote legislativo aprovado pelo Senado na semana passada que comporta o maior investimento de sempre no combate às alterações climáticas.
Deven Upadhyay, do Distrito Metropolitano de Água do Sul da Califórnia, disse esperar que estes fundos possam facilitar a curto prazo as dores de ajustamento a viver com menos água. Mas as autoridades também têm de investir em sistemas de irrigação mais eficientes, renovações de canais e tornar o consumo mais sustentável no futuro.
Os últimos anos revelaram uma tendência perturbante, disse: mesmo em anos em que a precipitação se aproximou dos valores médios, o escoamento que chega aos reservatórios diminuiu drasticamente, o que sugere que há alterações fundamentais e de longo prazo na relação entre a acumulação de neve nas montanhas e a quantidade de água que acaba por chegar às terras afectadas pela seca do Oeste americano.
“Agora o pensamento é este: para ter fluxos para os reservatórios dentro dos valores médios, que permitam uma operação dentro dos parâmetros normais, seria necessário ter valores de precipitação significativamente mais elevados do que a média, e mais acumulação de neve”, explicou. “Os dados mudaram completamente.”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post