Barragem do Pisão não cumpre objectivos ambientais europeus, defendem associações

Grupos ambientalistas submeteram pareceres críticos ao Estudo de Impacte Ambiental de barragem do Pisão, que esteve em consulta pública até quinta-feira. Empreendimento conta com 120 milhões de euros vindos do Plano de Resolução e Resiliência.

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Um dos objectivos da nova barragem é alimentar a agricultura de regadio, além do abastecimento às populações e a produção de energia Nuno Ferreira Santos

O Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA) e a associação Zero consideram que a Barragem do Pisão, no distrito de Portalegre, não cumpre os objectivos ambientais determinados pelo Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR), criado pela União Europeia, que enquadra o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), plano esse que financiará a construção da barragem em 120 milhões de euros. As posições das duas associações ambientalistas, que põem em causa o financiamento da barragem pelo PRR, estão nos pareceres que entregaram durante a consulta pública ao Estudo de Impacte Ambiental (EIA) daquele empreendimento.

O EIA, elaborado pela empresa Aqualogus – Engenharia e Ambiente, faz parte da Avaliação de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidráulico de Fins Múltiplos do Crato (AHFMC) – o nome oficial da Barragem do Pisão, um projecto da responsabilidade da Comunidade Intermunicipal do Alto Alentejo. Depois do EIA ter sido publicado, iniciou-se uma consulta pública a 1 de Julho que terminou nesta quinta-feira. Ao todo, houve 166 participações em relação ao EIA, segundo a informação do site. Só após os resultados da consulta pública é que a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) poderá emitir uma Declaração de Impacte Ambiental, que, a ser favorável, permite o licenciamento do projecto.

Os principais objectivos da Barragem do Pisão são a promoção da agricultura por regadio daquela região, o fornecimento de água a 110.000 pessoas dos municípios de Alter do Chão, Avis, Crato, Fronteira, Gavião, Nisa, Ponte de Sor e Sousel, e ao subsistema do Caia, que abastece Arronches, Elvas, Campo Maior e Monforte, e a produção de energia eléctrica a partir de duas centrais fotovoltaicas. O custo final da Barragem de Pisão e da central fotovoltaica pode aproximar-se dos 300 milhões de euros. Para a barragem, o valor de construção é de 171 milhões de euros. Destes, 120 milhões virão do PRR.

O EIA prevê dois cenários de construção, a primeira alternativa com mais infra-estruturas, que permitirá regar 6850 hectares, e a segunda, menos ambiciosa, que permitirá regar 6343 hectares. O resumo não técnico do EIA defende “viabilizar a construção do AHFM do Crato” no caso da segunda alternativa, devido ao “valor socioeconómico” do projecto, que pode ajudar no desenvolvimento da região. No entanto, o documento lista uma série de efeitos negativos associados à barragem, entre os quais: “alterações dos usos do solo”; “redução do sequestro anual de carbono devido à desmatação” causada pela barragem; “possibilidade de contaminação dos solos e das águas (…) através do uso de pesticidas e fertilizantes nas actividades agrícolas”; “alteração do regime de caudais gerada pela barragem”; “afectação da flora e da fauna”.

É a partir destes efeitos negativos que o GEOTA argumenta que “a construção da AHFMC contraria o objectivo de transição ecológica, originando impactes muitos significativos no ambiente, e colocando em causa um dos princípios básicos subjacentes ao MRR”, lê-se no contributo produzido pelo grupo para a consulta pública. Já a Zero defende que os documentos em consulta pública mostram uma violação do critério necessário para ter acesso aos fundos europeus no âmbito do MRR.

Segundo o regulamento europeu que cria o MRR, este “mecanismo deverá apoiar actividades que respeitem plenamente as normas e as prioridades em matéria de clima e de ambiente da União e o princípio de ‘não prejudicar significativamente’” os objectivos ambientais. Estes objectivos, definidos num outro regulamento da União Europeia, onde se estabelece o regime para a promoção do investimento sustentável, são seis: a mitigação das alterações climáticas; a adaptação às alterações climáticas; a utilização sustentável e a protecção dos recursos hídricos e marinhos; a economia circular; a prevenção e o controlo da poluição; e, por último, a protecção e o restauro da biodiversidade e dos ecossistemas.

Para o GEOTA, o projecto em Pisão não cumpre quatro dos seis objectivos ambientais. Desde logo, o grupo aponta que a albufeira vai ser uma nova fonte de gases com efeito de estufa, especialmente de metano, pondo em causa a mitigação às alterações climáticas. Por outro lado, tanto a alteração do regime de caudais da ribeira da Seda, que vai alimentar a barragem, como a agricultura intensiva associada ao regadio, com o uso de pesticidas e fertilizantes, é o oposto à utilização sustentável e à protecção dos recursos hídricos, além de que não previne o controlo da poluição. Em quarto lugar, a perda de uma área significativa de montado, devido à albufeira e à agricultura, e a ameaça de um ecossistema importante para a nidificação de aves como o sisão e a abetarda – cujas populações têm sofrido uma forte redução no país –, põem em causa a protecção e restauro da biodiversidade e dos ecossistemas.

Já a Zero sublinha que haverá a destruição de centenas de hectares de montados, que serão afectados 14 habitats incluídos na Directiva Habitats da União Europeia, sendo que um deles é “considerado prioritário” para aves em risco como o sisão, a abetarda e a águia-caçadora. Além disso, “haverá uma artificialização da ribeira de Seda e seus afluentes, com impactes cumulativos na albufeira do Maranhão, e aumento de risco de contaminação” devido ao uso de agro-químicos, argumenta a associação.

Qual benefício?

“Consideramos que a construção da Barragem do Pisão põe em causa, em última análise, os interesses da União Europeia, uma vez que o projecto não respeita estratégias europeias como a da Biodiversidade (nomeadamente o restabelecimento de 25.000 quilómetros de rios livres na Europa) incluídas no Pacto Ecológico Europeu, a Directiva-Quadro da Água e a Lei do Restauro”, lê-se no documento do GEOTA. Para a Zero, os impactos demonstrados no EIA deveriam inviabilizar o acesso a fundos públicos advindos do MRR”.

Além disso, tanto o GEOTA, como a Zero contestam a necessidade da barragem para abastecer água às populações daqueles municípios, já que o abastecimento “tem sido feito através da Barragem de Póvoa e Meadas” e há uma tendência na diminuição da população naquela região, refere o GEOTA. “O volume dedicado ao abastecimento público representará pouco mais de 1% do volume de afluência anual prevista na albufeira do Pisão, enquanto o uso agrícola representa 65%​”, lê-se no comunicado da Zero. “O EIA não comprova a necessidade da construção para garantir o abastecimento público”, acrescenta.

A Zero refere ainda que um estudo socioeconómico encomendado pela Comunidade Intermunicipal do Alto Alentejo, também disponível para consulta pública, apesar de ter estimado que o empreendimento poderia promover a fixação de 340 a 400 pessoas na região, concede que o projecto não ‘seja capaz de inverter a previsão de despovoamento para a região'.

Catarina Miranda, bióloga e coordenador do projecto Rios Livres do GEOTA, também questiona a promessa económica daquele empreendimento, recordando o que se passa na vizinhança. Na região da barragem do “Alqueva, os dados dos censos mostram que a população está a decrescer”, diz ao PÚBLICO. “Há um benefício económico [da barragem do Alqueva], mas será que a população é beneficiada?”

Com base no estudo socioeconómico, a Zero reenquadra o dinheiro vindo do PRR como um financiamento aos grandes proprietários agrícolas da região: “Toda a área beneficiada por rega está em apenas 77 explorações, sendo que os 120 milhões de euros de investimento via PRR são, na prática, um apoio de dois milhões de euros distribuídos pelos 57 particulares, sobretudo grandes proprietários.”

Há, também, uma questão de fundo que Catarina Miranda não se esquece. “Uma coisa muito importante é o cenário das alterações climáticas e da seca”, refere a bióloga. “Não se justifica a construção de barragens como esta que promovem formas de agricultura de regadio com uso intensivo de água, e que promove a poluição e a degradação dos solos.”

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