Pais, deixem que os vossos filhos se aborreçam!

Quando habituamos os nossos filhos a parar, a exercitar a paciência, a aceitar o aborrecimento e a tirar partido do tédio, estamos a abrir-lhes possibilidades com elevado potencial de transformação.

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Lukas Blazek/Unsplash

Para as férias que se aproximam, tendemos a fazer planos para impedir que as crianças se aborreçam. Evitamos a possibilidade de tédio como quem foge de um inimigo a abater. À semelhança do experienciado ao longo do ano, replicamos o modelo aditivo de tempo ocupado, no sentido de aproveitar ao máximo o tempo livre. Com esse intuito, enchemos o tempo livre, transformando-o em tempo ocupado, sempre em busca do novo, do excitante e do surpreendente.

Quase sem darmos por isso, esta incessante busca transforma-se num ciclo vicioso que requer cada vez mais novidade, excitação e surpresa, para criar a mesma dose de adrenalina. Esta procura constante rapidamente conduz à insatisfação. Parece que já nada é suficiente para satisfazer tamanha necessidade de ocupação e de novidade. E, nos intervalos de tanta atividade, as crianças aborrecem-se, solicitando mais e mais estimulação. Nesses intervalos da atividade, conotados com o tédio, procuramos engendrar desafios cada vez mais empolgantes para preencher o tempo, tornando-nos reféns de uma espiral interminável que, no final, produz sempre mais insatisfação, agitação e inquietação.

A esta incessante demanda junta-se a preocupação excessiva com o acompanhamento constante das crianças. Esta preocupação é motivada pela necessidade de segurança, mas não só. A esta sobrepõe-se a crença de que as crianças têm de estar permanentemente no centro da atenção dos adultos, para serem entretidas, reguladas e protegidas. Esta crença também tem por base a conceção de que as crianças não têm capacidade para se entreterem sozinhas ou com outras crianças, nem tão pouco competência para gerirem os seus próprios conflitos com os pares, necessitando de uma mediação permanente para ultrapassarem diferendos e disputas.

A consequência deste modelo de sobreocupação do tempo livre − que pressupõe a implicação constante dos adultos na gestão do mesmo − é, em grande parte, responsável por que os pais cheguem ao final das férias quase mais cansados do que estavam no início, desejando que os filhos regressem rapidamente para a escola e retomem rotinas que lhes deem estabilidade. Mas não tem de ser necessariamente assim. É sempre possível quebrar este ciclo e recomeçar de novo, desinstalando padrões de hiperatividade e de hiperestimulação para retornar, gradualmente, a uma maior tranquilidade, essencial para que todos, miúdos e graúdos, desfrutem do tempo livre com maior qualidade.

E não pensemos que, ao desinstalar estes padrões, estamos a negligenciar as crianças, a dar-lhes pouca importância ou tão pouco a desinvestir na sua educação. Antes pelo contrário. Quando habituamos os nossos filhos a parar, a exercitar a paciência, a aceitar o aborrecimento e a tirar partido do tédio, estamos a abrir-lhes possibilidades com elevado potencial de transformação, em consonância com as ideias defendidas pelo filósofo Walter Benjamin. Nas palavras deste filósofo, a “pura inquietação não gera nada de novo”, limitando-se a reproduzir e a acelerar o já existente. Ao invés, o tédio profundo − ao qual chama o “pássaro onírico, que choca o ovo da experiência” − constitui o ponto alto do descanso espiritual, essencial para gerar algo de novo. Nesta perspetiva, só quem é tolerante com o tédio será impulsionado o procurar um movimento totalmente novo, que está na base de todo e qualquer processo criativo.

Esta premissa significa que apenas quando quebramos a positividade da atividade pura estamos a abrir um espaço no qual, através da negatividade do parar interiormente, podemos aceder a algo de verdadeiramente novo. Segundo a filósofa Hannah Arendt​, “a atividade pura nada mais faz do que prolongar o que já existe”. Assim, “só por meio da negatividade do parar interiormente, o sujeito da ação pode dimensionar todo o espaço de contingência que escapa a uma mera atividade”, abrindo-se a possibilidades que radicam na hesitação, na dúvida, na vacilação, na espera e na paciência.

A capacidade contemplativa constitui um ponto alto da interrupção da atividade, impondo-se enquanto passagem iniciática na abertura ao novo e ao diferente. A contemplação requer, por excelência, uma maior passividade, qualidade que importa recuperar para escapar ao afã e inquietação que pautam a vida moderna. “A atividade pura empobrece a experiência. Impõe o igual. Quem não é capaz de deter-se não tem acesso a algo de verdadeiramente diferente. As experiências transformam. Interrompem a repetição do sempre igual. Para tanto é necessária alguma passividade. É fundamental que nos deixemos afetar por aquilo que escapa à atividade do sujeito ativo”, defende Arent.

Nesta linha, entre as correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade, Nietzsche preconiza o fortalecimento do elemento contemplativo: “A vida contemplativa pressupõe uma pedagogia específica do ver, que significa habituar o olho ao descanso e à paciência, capacitando-o para uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento. Este aprender-a-ver representa a primeira pré-escolarização para o caráter do espírito”.

Em jeito de conclusão, este texto funciona ao contrário daqueles que sugerem uma série de atividades para ocupar as crianças e as famílias durante o tempo de férias. Como contraponto, este artigo propõe a desocupação do tempo de férias para que este se transforme efetivamente em tempo livre. Se, entretanto, houver lugar ao aborrecimento e se experienciarem momentos de tédio, tanto melhor. Significa que estamos no bom caminho.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990.

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