Paulo Bragança e o fado das canções de Adriano

A revisitação do repertório de Adriano Correia de Oliveira por Paulo Bragança é, comprovadamente, um dos grandes momentos do ano em que o recordamos.

Completaram-se esta quinta-feira seis meses do ano em que se assinalam 80 anos do nascimento de Adriano Correia de Oliveira (Porto, 9 de Abril de 1942) e também os 40 anos da sua morte (em Avintes, a 16 de Outubro de 1982), que lhe abreviou a vida, precocemente, a outros 40. Do que até agora se fez, entre exposições e concertos, para lá da edição de um livro de banda desenhada com inclusão de um CD (O Perigoso Pacifista, ed. A Seita, 2022), fica sobretudo a curiosidade de saber o que virá depois, até Abril de 2023, quando tais comemorações se encerram, além do prometido livro Adriano, um canto em forma de Abril, ainda em curso.

Porém, a par das comemorações “oficiais”, merece especial relevo a atenção que um cantor, e fadista, resolveu dedicar à obra de Adriano. Trata-se de Paulo Bragança, que já editou um disco intitulado Adriano 80, no dia 10 de Junho, e conta lançar outro, em Outubro, Adriano 40. Não o moveu a conjugação de datas, como publicamente explicou, mas uma atracção antiga pela voz do cantor, que já no início da década de 90 o levara a cantar, na Aula Magna lisboeta, a Trova do vento que passa. Voltou a ele em 2017, dedicando-lhe um espectáculo que viria a estrear-se nesse mesmo ano na Festa do Avante! e na FOLIO, em Óbidos. Outros projectos e palcos se foram atravessando no seu caminho (Museu do Fado, Bons Sons, Caixa Alfama, uma colaboração num disco dos Moonspell, um concerto memorável no CCB) até a pandemia lançar novo manto de escuridão sobre a sua voz e presença, eclipsando-o. Quis o destino, e a força de vontade que lhe é intrínseca, que neste ano de 2022 renascesse em palco e em disco e logo com esse seu dedicado tributo a Adriano. E se nas sete canções gravadas em Adriano 80 (Minha mãe, A noite dos poetas, Menina dos olhos tristes, Rosinha, As mãos, Canção com lágrimas e Erguem-se muros) já era possível perceber até que ponto ia o seu empenhamento na recriação de tal repertório, ao vivo isso é ainda mais visível e caloroso, como foi possível testemunhar num dos seus concertos, no passado dia 25, em Mirandela.

Quem tivesse, como nós, assistido ao concerto do CCB, em Outubro de 2019, o último que deu até voltar em Março deste ano aos palcos, em Ílhavo, pôde confirmar que a voz de Paulo Bragança está de novo num excelente momento. E o repertório de Adriano deu-lhe novo fôlego, permitindo cruzar as suas canções, não só as já gravadas, mas outras ainda por gravar (como Lira ou Trova do vento que passa), com temas de outros autores que de algum modo permitem aproximações à obra e à pessoa de Adriano Correia de Oliveira, em diferentes momentos da sua vida. Como Soldado, dos Sitiados (“Ai, sinto queimar este fogo, dentro de mim!/ Liberdade onde vais?/ Liberdade onde cais?”); Remar remar, dos Xutos & Pontapés (“Remar remar/ Força a corrente/ Ao mar, ao mar/ Que mata a gente”); Traz outro amigo também, de José Afonso (a amizade, em Adriano, era conhecido ponto de honra); ou ainda dois conhecidos fados de Amália, que ele cantou quase no início e no final do espectáculo: Maldição (“É lucidez, desatino/ De ler no próprio destino/ Sem poder mudar-lhe a sorte”) e Cansaço (“Daí este meu cansaço/ De sentir que quanto faço/ Não é feito só por mim”).

Não deixa de ser curioso que, depois de tributos episódicos em 2007 (em dois discos que assinalaram os 25 anos da sua morte, Aqui e Agora e Adriano Sempre!), a obra do cantor surja renascida na voz de um fadista não convencional. Porque a voz e a música de Adriano tiveram num outro fado, o de Coimbra, a sua génese, rumando depois (como o fez José Afonso) à balada e aos caminhos pioneiros da nova canção portuguesa. Este renascimento por via de um certo fado cumpre o fechar de um ciclo, abrindo outro. O fulgor emprestado aos temas de Adriano por Paulo Bragança traz-nos de novo as suas canções, numa voz que as dignifica, atribuindo-lhe o brilho das obras vivas, sem reminiscências de museu (por curiosidade, refira-se que na plateia, em Mirandela, estava outro cantor, Tino Flores, que ali se deslocou interessado em saber o que alguém como Paulo Bragança faria com as canções de Adriano).

Esta viagem entre fados acabou por ser selada com Samaritana, canção antiga que, não sendo fado de Coimbra nem de Lisboa (Paulo Bragança gravou-a no disco Lua Semi-Nua, em 2001), foi apropriada por vozes coimbrãs após ter sido gravada em 1928 por Edmundo Bettencourt. Adriano Correia de Oliveira não a gravou, mas se fosse vivo e ali estivesse, havia de sorrir perante o “achado”. Quanto a Paulo Bragança, a sua revisitação do repertório de Adriano é, comprovadamente, um dos grandes momentos do ano em que o recordamos.

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