As consciências morais do Ocidente pecaminoso

No fim de contas, e por mais que o neguem, predicadores como Boaventura Sousa Santos e Manuel Loff compartilham com Putin não só o ponto de partida (o diagnóstico da ”ruína moral” do Ocidente) como o desejo de serem os obreiros de uma “desocidentalização” do mundo.

Um povo que não tenha o seu quinhão de predicadores é um povo fadado para a dissolução moral. Felizmente, Portugal tem os seus, tão intrépidos e infalíveis como os que predicam noutras paragens. Nestes dias negros em que o mundo assiste à destruição e ao morticínio gratuitos na Ucrânia, missionários como Boaventura de Sousa Santos ou Manuel Loff afoitam-se a pregar aos gentios a mensagem antiocidental. E quando saem a terreiro para verberar o relativismo moral do Ocidente, usam de maximalismo moral. Veja-se o caso do historiador Manuel Loff. Qual Kant redivivo nos laboratórios sociais da Universidade do Porto, ele postula as condições apriorísticas da viabilidade da moral. É dele o retumbante e insofismável axioma, há dias, no PÚBLICO: “Não há argumento moral viável que não assegure coerência.” E isto, creiam-me, não só é moral, como vem com caução científica.

Perante a devastação das cidades ucranianas pelos invasores russos, o que ocorre a Manuel Loff? O Iraque, o Iémen, a Palestina e a filial da McDonald’s em Guantánamo. Estes predicadores não se ralam tanto com os pecados de Putin, como com expor no pelourinho os pecados morais do Ocidente. Se pretendem apenas a nossa contrição (autocrítica, chamam-lhe) ou se visam a nossa redenção, é coisa que não fica clara. Enquanto não expiar os pecados que os seus dedos acusadores lhe apontam, o Ocidente está moralmente inibido de condenar a invasão e destruição de um país soberano às mãos de um autocrata cujo plano é vergar uns quantos Estados à vassalagem e convertê-los em recetáculos da “alma russa”. Só se lamenta que não tenham a bondade de nos informar, do alto dos seus apostolados, por quantas gerações durará a penitência; ou se é inapagável a mancha do pecado.

Na hora em que maternidades e teatros são bombardeados por terem faltado à “neutralidade” que, jura Putin, era o nec plus ultra existencial da Ucrânia, crê o animoso Loff que o que importa é poder “discutir história, política internacional, racismo e neocolonialismo dos últimos 30 anos”, isto é, o que importa é discutir “as guerras e ocupações ilegais do Ocidente”. Não conta para o caso que a Ucrânia, como outras antigas repúblicas soviéticas, tenha justamente voltado o rosto para Ocidente após a derrocada da URSS. Por ingratidão histórica, sem dúvida, já que era a Leste que se desenhava para este país um horizonte de paz, liberdade, justiça social e até, de acordo com Cirilo I, de apuramento metafísico, sob o agasalho previdente da Federação Russa e em aliança fraterna com a China.

Para Loff, as lágrimas do povo português, a compaixão a que o movem os ucranianos, com a dádiva, nalguns casos, das suas próprias casas – o terem-se os europeus “mobilizado como nunca para acolher e integrar refugiados”, nas palavras do próprio – não constituem um gesto admirável mas antes um achaque de eurocentrismo, diz-nos este europeu arrependido. É realmente uma felicidade tê-lo entre nós, com o seu policentrismo mental, para administrar a excomunhão do Ocidente. Para este historiador, “as dificuldades dos ucranianos”, sendo “menores” que as de outras pessoas em fuga de guerras, como os sírios e os afegãos, faria deles refugiados não prioritários: metam-se no fim da fila, diria, se fosse ele a mandar. Talvez possamos ter pena deles, mas não muita: só a que Loff considerar proporcional depois de ponderado o cadastro do Ocidente.

A lição destes evangelizadores é retumbante: defender uma boa causa só é permitido às belas almas que, como eles, têm a ficha limpa. Para Boaventura, por exemplo, a ajuda humanitária à Ucrânia não é uma ajuda impoluta, não pode ser apreciada pelo que é, porque traz manha: serve para as lideranças europeias “salvarem a face”; o que subentende a sua culpabilidade.

Estes predicadores aparecem na praça com o brio de quem quer repor verdades inconvenientes, mas, ao compararem o incomparável, verberam a partir do púlpito da pós-verdade, fruto tardio do desconstrucionismo no qual vários deles se doutrinaram. O que há ainda para relativizar quando um desvairado tira do bolso o chaveiro do Apocalipse, para o chocalhar, do cimo das ogivas nucleares russas, nas barbas das democracias ocidentais, numa ameaça que se estende, por razões óbvias, ao conjunto da humanidade?

A tese implícita no catecismo antiocidental destas vozes é a de que as democracias não são muito melhores que as autocracias, e que o ato horrendo do governo russo, sendo condenável, deve ser matizado à luz dos erros do Ocidente. No fim de contas, e por mais que o neguem, predicadores como Boaventura Sousa Santos e Manuel Loff compartilham com Putin não só o ponto de partida (o diagnóstico da ”ruína moral” do Ocidente) como o desejo de serem os obreiros de uma “desocidentalização” do mundo. Discutir a imoralidade das prédicas desta espécie de Zizeks para néscios é um direito que, presume-se, não perdemos e que, por tal, devemos exercer sem restrições.

Sejamos justos. Há historiadores e historiadores. Fernando Rosas, que até parte de uma mundividência com pontos de contacto com a de Boaventura e Manuel Loff, demonstra, na ótima entrevista que deu ao PÚBLICO, que é possível contextualizar sem apostolar; que é possível não estar com a NATO sem resvalar para a evangelização antiocidental. Há, porém, uma contradição no seu juízo sobre o rearmamento da Alemanha, que ele considera um erro grave. Se a Alemanha, principal potência económica e industrial da UE, não se pode rearmar, quem fica para assegurar a defesa do continente europeu, senão a NATO…?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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