Memórias de anos de ensino, com profundas alegrias e intensas mágoas

Não é só na imposição de “novidades” que os professores têm sido maltratados, tendo inclusive muitos ministros da educação fomentado a falta de respeito dos alunos e de encarregados de educação por aqueles

Aposentada, penso muitas vezes na minha vivência de professora cuja carreira teve início no Liceu D. João de Castro (assim se chamava), abençoadamente alguns meses depois do 25 de Abril. Das situações várias que tenho mentalmente vindo a registar nasceu o ensejo de as dar a conhecer, tanto mais que a essas memórias se juntam em tempo mais presente profundas alegrias, mas também intensas mágoas.

Presenteada no primeiro ano de ensino com um número exorbitante de turmas, sete, o que era comum acontecer aos professores provisórios (e assim infelizmente se mantém), só não desisti da profissão porque a delegada da disciplina de Português, Maria do Carmo Lemos (que soube depois ser a mãe de Jorge Lemos, deputado do PCP tão veemente contra o acordo ortográfico de 90), na sua sabedoria experiente, me ajudou a lidar com a situação de indisciplina indescritível, na sala de aula, para além de me apaziguar o medo de não ser capaz de conseguir a atenção dos alunos, sobretudo no programa de Português, em que um número significativo frequentava apenas essa disciplina do 11.º ano, na altura o último ano do secundário, com idades compreendidas entre os 17 e os 19 anos, a pouca distância dos meus 24.

Acabada de sair da Faculdade, e tendo de preparar aulas de Francês e de Português de diferentes níveis, confesso que a experiência das primeiras semanas foi terrífica e dessa data guardo a forte convicção do papel imprescindível dos mais velhos na sua passagem de testemunho. E a esse propósito recordo também um provérbio árabe: “Por cada velho que morre, arde uma biblioteca”. Por isso me tem surpreendido tanto, com destaque para a Reforma de 2003, que se tenha vindo a negligenciar essa relação, muitas vezes com acentuado desprezo, sobretudo quando está em causa o prosseguimento de mudanças profundamente polémicas, instaladas e impostas sem o debate saudável que se exigia. O êxito, segundo o raciocínio dos autores de “inovações”, seria garantido gradualmente com o desaparecimento dos mais velhos, aqueles que são normalmente acusados de “resistentes à mudança”, como se esta fosse sempre inteligente e em proveito dos visados.

A seu ver, formatados os mais novos nas “novidades”, fossem elas teorias da educação, acordo ortográfico, terminologia linguística ou novos programas, facilmente se atingiria o pretendido. O seu raciocínio pressupunha também uma atitude acrítica ou resignada por parte dos “aprendentes das inovações” a quem se lembraria igualmente a obrigação da obediência, inerente a todo o funcionário público. Ainda a propósito de teorias da educação, estreitamente associadas à reformulação e ao esvaziamento de programas, ou do AO 90 cuja implementação foi ao arrepio dos inúmeros pareceres solicitados, sendo visível a qualquer um o caos linguístico, ou da famosa TLEBS (terminologia linguística para os ensinos básico e secundário) que pôs em causa o estudo da Gramática ou da contínua alteração de programas, tal jogo do tira e põe, é de realçar uma estratégia comum a todas estas mudanças: “a necessidade de acções de formação” defendidas energicamente pelos seus mentores e apoiantes, algumas delas exigindo mesmo viagens para outros países, caso do AO 90. Se se lembrarem dos novos programas de Matemática, recentemente anunciados, lá consta igualmente a “necessidade de acções de formação”. Neste último caso, em que a Sociedade Portuguesa de Matemática ficou fora do debate, com a cumplicidade habitual do ME, perguntar-se-á: por quem serão realizadas?

Não é só na imposição de “novidades” que os professores têm sido maltratados, tendo inclusive muitos ministros da educação fomentado a falta de respeito dos alunos e de encarregados de educação por aqueles. Certamente que ninguém esqueceu a frase de Maria de Lurdes Rodrigues, “perdi a confiança dos professores, mas ganhei a da opinião pública”, muito à semelhança de quem, influenciável pelo que os outros possam dizer, afirma “perdi a confiança do meu filho, mas ganhei a dos vizinhos”.

Certamente que não se duvida de que a actual situação de falta de professores seja reflexo da política inábil, negligente e desrespeitadora do Ministério da Educação (ME), ao longo dos anos. Considerar-se-á natural que um professor não receba ajudas de custos quando deslocado do sítio onde vive, tendo de deixar a família e de suportar os gastos que a nova situação habitacional lhe exige? Considerar-se-á natural que um professor permaneça anos e anos num mesmo escalão, devido a quotas que forçosamente acabam por discriminar, ficando assim impossibilitado de chegar ao topo da carreira por muitos anos que trabalhe? Devo confessar que tive muita sorte: cheguei ao último escalão, ao fim de cerca de 40 anos de serviço e pude aposentar-me, com penalização, é certo, três anos antes do tempo devido, libertando-me finalmente de imposições do acordo ortográfico, de teorias ultrapassadas, de novidades indecifráveis, do frenesim de textos funcionais, de “contratos de leitura”, de “complementos oblíquos”, de avalanches de relatórios, de obsessões avaliativas, de recados da OCDE, de ameaças disciplinares! Lamento por isso, e sobremaneira, a situação em que se encontram os colegas dos vários níveis de ensino (do Jardim de Infância ao Secundário), bem como a falta de professores, testemunho evidente da pouca atracção dos jovens pelo ensino que em qualquer sociedade é centro nevrálgico de desenvolvimento. Só a mediocridade de quem tem passado pelos sucessivos ministérios, ao longo dos anos, justifica a dramática situação.

Se o D. João de Castro foi a primeira escola em que leccionei, a Escola Secundária Marquês de Pombal foi aquela de onde saí, após 32 anos de ensino, para uma reforma antecipada (2013) e onde o significado tenebroso do antes do 25 de Abril se revelava em algumas salas de aula. Com efeito, na parede que ficava junto ao estrado, onde se encontrava a secretária do professor, havia uma espécie de microfone ligado ao gabinete do então director que assim podia ouvir, a qualquer momento, o que se dizia na sala de aula. Salas, testemunho de um regime totalitário que como é habitual procura a sua segurança na denúncia que estimula e no medo que provoca, apontando a liberdade de pensar como o seu pior inimigo. Salas que, para mim, sempre foram ponto de partida para uma reflexão com os meus alunos sobre o antes e o depois do 25 de Abril de 1974.

Não é que em democracia não sintamos o incómodo do silêncio forçado, a inoperância da crítica, o menosprezo manifesto na calúnia dirigida a quem pensa de forma diferente, e os exemplos acima citados, e relativos à Reforma de 2003 (que se mantém), são disso exemplo, mas temos pelo menos a liberdade de expor, por escrito ou oralmente, as nossas ideias, de nos reunir, de nos manifestar e de, em muitos casos, obter, com a nossa persistência, recuos consideráveis em algumas situações polémicas. Não obedecer a imposições que contrariam a nossa consciência ou o nosso estudo e inteligência é mais uma possibilidade que a democracia, enquanto ideal, nos oferece; o que acontece é que nela o medo e as ameaças também existem, não de forma brutal, como num regime totalitário, mas sob a capa de conselho amigo para que não se caia na tentação de apresentar críticas que colidam com o que foi definido e estabelecido (assim constava, por exemplo, numa nota prévia aos novos programas da Reforma de 2003, enviados para as escolas que os deveriam analisar criticamente). E até o senhor Presidente da República, no Brasil, em São Paulo (31.7.2021), fingindo não estar a par do que sucede, pelo menos na Escola (ensinos Básico e Secundário), referiu, com ousadia, haver liberdade para se escrever com ou sem acordo ortográfico, quando toda a gente sabe que isso não acontece: “Não há nenhuma guerra entre Portugal e Brasil. Simplesmente, em Portugal há democracia e é livre a opinião sobre o acordo, e é livre adoptar ou não o acordo. […]. A nossa língua é feita de democracia no falar e no escrever.” Desconhecerá o senhor Presidente que sobre todo o professor pesa a ameaça de processo disciplinar caso desobedeça, e a escolha só pode ser entre a de engolir a sua indignação ou, estando próximo da reforma, a de optar por uma penalização? Eis a liberdade a que se referiu o senhor Presidente da República! Mas confesso que aproveitei as suas palavras para deixar que os meus netos continuem a escrever “pára” e não “para” ou “pêlo” e não “pelo”, como impôs o novo AO 90. É que, na verdade, os meus netos e muitas crianças da sua idade (pude constatá-lo) também intuem a lógica da língua que falam, e sabemos nós, os mais velhos, que a ortografia pretende evitar o equívoco e não fomentá-lo.

No contacto que um professor a cada Outono tem com dezenas e dezenas de alunos, que naturalmente confiam na sua competência, transformando-o quantas vezes em confidente de problemas que lhes atormentam a vida, não fui excepção. Regressando ao Liceu D. João de Castro, lembro um aluno que me foi muito querido, mas infelizmente massacrado por muitos colegas, não forçosamente da sua turma, massacrado também pelos pais e massacrado ainda pela sociedade. Anos mais tarde poria termo à vida por não aguentar essa diferença de ser, e compreenda-se, homossexual. Sua confidente, guardo em mim as suas palavras, e o seu sofrimento diário foi determinante para que defendesse sempre, fosse onde fosse e com quem fosse, a liberdade de ser diferente sexualmente, nunca me coibindo de expressar perante guardiães orgulhosos da sua moral quão abjecta era a acusação de pecado, doença ou perversão relativamente à homossexualidade.

Foi, pois, com uma grande alegria e uma forte comoção que ao fim de tantos anos vi acontecer a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, na Assembleia da República, em 2010. Sem dúvida que só em democracia seria possível acontecer esta mudança, que creio revolucionária e forçosamente aliada a uma resistência criticamente activa em relação ao preconceito e a uma moral podre comummente apoiada pela religião que tem muitas vezes por hábito meter-se entre Deus e o crente. Daí a exigência de uma contínua atenção à democracia, de forma a impedir recuos que atinjam, com crueldade, a vida de cada um.

Uma outra experiência que intensificou o desejo de lutar pela liberdade de podermos decidir sobre a nossa vida ocorreu na Escola Marquês de Pombal, onde tive um aluno que frequentava apenas a disciplina de Francês do 11.º ano, e que iniciou tardiamente as aulas devido a tratamentos de quimioterapia. Lembro-me, comovida, da primeira aula em que apareceu e em que me pediu para que o deixasse estar com o boné, pois não tendo cabelo não se sentia à-vontade se não o mantivesse na cabeça. Deu-me conta do seu problema oncológico (cancro na cabeça) e, simultaneamente, da sua vontade em acabar o 11.º ano, terminando a disciplina que lhe faltava. Na turma, não falava com ninguém e escolhera a primeira carteira encostada à parede e junto à porta, num isolamento que impressionava. Nos seus dezoito anos de vida, lutava por acreditar numa cura que não parecia dar sinal de acontecer e era febril que muitas vezes assistia às aulas porque estar ali era uma forma de esquecer momentaneamente a doença e de atenuar o seu medo da morte, como tantas vezes confessou. Foi com ele que pela primeira vez falei da eutanásia e a sugestão foi sua. O que dissemos ficou entre nós. Foi já bastante doente que apareceu no dia em que estava marcado um exercício escrito e nessa altura, com efeito, falava sem que eu compreendesse bem o que dizia e a sua escrita na folha do exercício limitava-se a uma série de riscos. Recebi o seu teste naturalmente, fingindo não reparar no que escrevera; ele esperou que os colegas saíssem e despediu-se de mim dizendo que ia ser internado de novo. Morreu pouco depois.

A eutanásia voltou a ser tema de conversa, bastantes anos depois, no Instituto de Oncologia onde fiz quimioterapia e radioterapia, tendo conhecido pessoas cujo sofrimento atroz, agravado com o faz-de-conta dos cuidados paliativos e a certeza de que a cura para a doença não teria lugar, as fazia desejar como um bem imenso a eutanásia, angustiando-se sobremaneira por não a poderem concretizar. Parece-me já estar a ouvir os moralistas habituais, os que com o seu fanatismo pretensamente salvador ousam meter-se entre nós e nós próprios ou também entre Deus e nós próprios, impedindo-nos de ser responsáveis pela nossa vida.

Que mania abominável este uso de um discurso perversamente bondoso, e sempre paternalista, cheio de boas conclusões e em que se nega aos outros, “para seu bem”, dizem, o sentido de responsabilidade e a capacidade de decidir livremente. Fernando Pessoa, pela voz de Álvaro de Campos, responder-lhes-ia: Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

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