Armas processuais de destruição em massa

Querem mais eficácia, querem melhor solução na justiça? É eliminar tudo. Afinal, as garantias de defesa são como o cabelo: rapa-se e acabam logo os problemas com a lavagem, o penteado, as comichões, a caspa e os piolhos.

Já vi quem dissesse ou escrevesse que tem havido juristas e outros que, a respeito das garantias em processo penal, se têm dado ao manifesto exagero de defender a supressão de algumas delas (das que restam). Por exemplo a eliminação da instrução ou uma (ainda) maior limitação dos recursos. Sobretudo nos últimos tempos - por ocasião do incêndio sobre a nova versão do artigo 40.º do Código de Processo Penal (uma redação pouco feliz mas que tem em vista uma coisa que me ensinaram ser essencial, a imparcialidade) ou a respeito da entrevista do senhor presidente do Tribunal Supremo -, há quem tenha dito ou escrito que se corre o risco de franquear a porta ao iliberalismo e/ou que foram ultrapassadas as fronteiras da (in)decência processual em matéria de defesa da eliminação de (ainda mais) garantias, incluindo algumas que a ação civilizadora do tempo e do modo levou séculos a conquistar.

Ora, eu acho muito injusto que se atribuam exageros a tais vozes, porque as mesmas só defendem a eliminação de algumas garantias. Não exageram nada, nem vão (pelo menos ainda) ao ponto essencial, ou seja, à eliminação de todas as garantias. Isso é que era, e é para isso que as coisas se devem orientar. Para que, e de uma vez por todas, se alcance a eficiência e, finalmente, se acabe, de uma penada, com as duas (únicas e absolutas) causas de todos os problemas que a Justiça enfrenta, que são, já se sabe, a falta de meios e o excesso de garantias. Pelo que, eliminando todas elas, se arrancam pela raiz esses dois tumores malignos do sistema: não havendo garantias, fica por natureza impossibilitado o seu excesso; e, sem garantias, já não faltarão os meios, que quase deixam de ser precisos (exceto para, em meses ou anos, dizer quem está na trupe do mal).

Querem mais eficácia, querem melhor solução? Isso sim é um verdadeiro Ovo de Colombo, e - estou convencido - só por apego (excessivo, bem entendido) aos valores ou por delicado pudor é que ainda ninguém o propôs. Sem tirar nem pôr, e arrenego quem veja neste meu escrito ponta de ironia ou algum princípio de vómito sarcástico. Nada disso, é pura (puríssima) convicção: é eliminar tudo. Afinal, as garantias são como o cabelo: rapa-se e acabam logo os problemas com a lavagem, o penteado, as comichões, a caspa e os piolhos.

Bem ensinava Frei Atanagildo, em O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena (aliás, o melhor manual de processo que já li): em tempos de necessidade, nada de processo, nada sequer de procedimento, acende-se logo a fogueira ou tranca-se logo a porta da gafaria - e deita-se fora a chave, digo eu. Ah, meu frei, só tendes imitadores timoratos, ninguém tão clarividente e corajoso como vós. Imaginem lá que no Iraque tinha sido assim, e se tinha ido verificar se afinal havia mesmo armas de destruição em massa? Uma perda de tempo, uma ineficácia. Manobras, é o que é. Se disseram que havia, é porque havia, e vamos lá mas é varrer tudo. Perguntar, duvidar e verificar é que são armas de destruição em massa, só complicam, atrasam e até destroem o que é clarinho e se está mesmo a ver. Se Frei Atanagildo diz.

E não se preocupe o cidadão (é que pode acontecer a qualquer um, atenção, que a malandragem não escolhe ais, nem telejornais) se um dia lhe entrarem em casa para uma busca e, depois, o levarem para o cárcere preventivamente por causa dos perigos de perturbar as investigações ou de fuga, ou por causa do alarme (ou do alarido) social. Nem se preocupe se, depois, passar daí à prisão definitiva, e pelo meio perder os bens todos, et cetera, e tudo muito rapidamente (ou muito lentamente - depende dos meios sobrantes, claro), e sem verdadeiros juízes, sem recursos, e sem outras manobras e manhas dilatórias.

Parece um cenário aterrador, mas não é. E não é por quatro razões. Primeiro, porque numa sociedade civilizada dar garantias e defesa à gatunagem é, obviamente, um luxo insuportável. Segundo, porque a procuradores e a polícias calha bem o célebre dito atribuído ao Professor Cavaco, nunca se enganam e raramente têm dúvidas. Terceiro, porque, como noutro dito que dizem também ser dele, só querem que os deixem trabalhar, de preferência com mais meios, mesmo quando a única fase processual for o inquérito e os únicos intervenientes, além do visado (como agora se diz) e da vítima (para abrilhantar a lapela), forem o Ministério Público e as polícias. Quarto, porque o cidadão sabe bem o que fez, como diria uma aluna minha de saudosa memória (e de altas classificações, como se pode imaginar), e portanto deixe-se lá dessa coisa das garantias, e dos truques, e afins, porque isto está-se mesmo a ver que é choldra com ele, rapidinho, e acabou a conversa.

Ora agora, impedimentos, instruções, julgamentos, recursos e outras conversas da treta! Está bem, está. Falam, falam, e nós aqui dois, quatro, seis, oito, dez ou 12 anos a investigar, qual Job, tudo com muito esforço e para o bem comum, e depois vem algum juiz, alguma instrução, algum julgamento ou algum recurso e dá cabo disto tudo. Pode lá ser uma coisa dessas?! É gafaria, e já. E se acontecer a qualquer um dos leitores, pois azar, é a vida. E nada de tugir ou mugir, ó malandragem.

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