O início de uma nova era... ou porque devemos intervir na Ucrânia

Três grandes argumentos a favor de uma intervenção militar de países ocidentais na ajuda à defesa da Ucrânia.

No dia 24 de fevereiro, percebi que o mundo tal qual o conhecera tinha terminado. Sobre esta nova era, que alguns já anunciavam [1], e onde se defrontarão democracias versus autocracias, iremos discutir muito nos próximos anos, mas a forma como evoluirá depende, em larga medida, de como respondermos a esta invasão.

Ao fim de poucas semanas, muito já mudou nas opiniões públicas ocidentais e nas políticas e estratégias. Impressionantes e inesperadas são os casos da Suiça, Suécia, Finlândia ou Alemanha, que alteraram políticas de décadas em menos de uma semana em relação ao seu posicionamento geoestratégico e militar, bem como a resposta política célere e unida da UE, a solidariedade com a Ucrânia e o seu povo, e as musculadas sanções económicas e financeiras impostas pelas democracias liberais à Rússia, incluindo pelo setor privado. Faltará ainda o petróleo e o gás... onde acredito se chegará nas próximas semanas, se a guerra se prolongar, e teremos aí que saber lidar com as consequências, por um objetivo maior!

Ainda assim, o apoio à Ucrânia parece largamente insuficiente para o que seria mais importante: impedir que, no século XXI, possamos assistir em direto a um país independente a ser conquistado por outro que quer mudar as suas fronteiras, impor as suas escolhas, limitar a sua liberdade... e, pior do que isso, assistir ao verdadeiro massacre em direto de um povo, apesar da heroica resistência demonstrada, e à destruição metódica das suas infraestruturas que demorarão décadas a recuperar.

A questão que se coloca é se devemos realmente deixar isto acontecer sem haver uma intervenção militar de países ocidentais na ajuda à defesa da Ucrânia, tal como tem pedido desesperadamente o Presidente ucraniano? Na minha opinião, esta ajuda tem que ser considerada rapidamente pela comunidade internacional e aponto três grandes argumentos.

O argumento moral, na minha opinião, o mais relevante.

Deixar a Rússia conduzir uma guerra injusta, que a cada dia que passa se vai tornando mais suja e sangrenta, atacando indiscriminadamente alvos civis, como escolas, hospitais, maternidades, é ignóbil e imoral. É a lei da selva, a lei do mais forte, é deixar o bullying de Putin vencer! Quantas crianças terão que morrer ou quantas Mariupol terão que existir até que isto seja intolerável para as nossas democracias e nos pese demasiado a todos nas consciências? Que crimes de guerra poderemos tolerar? Poderemos tolerar armas químicas ou biológicas? E as nucleares? Até onde as opiniões públicas das nossas democracias deixarão isto continuar? Há alguma linha vermelha? Até agora parece que não... Putin parece ter carta branca para avançar com todas as ideias, mesmo as mais inacreditáveis, desde que se mantenha a uns kms de distância da NATO!

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Habitantes de Mariupol junto a um bloco de apartamentos destruído REUTERS/Alexander Ermochenko

Parece-me que deixar isto continuar deixará uma mancha indelével nas nossas sociedades e será por si só uma derrota dos regimes democráticos, que assim se tornam semelhantes às piores ditaduras, pois deixam a brutalidade triunfar pelo medo! E isto perdurará no tempo e será uma grande arma das autocracias, o saber que pode usar o medo para triunfar.

O argumento das relações internacionais:

Temos um país independente a ser invadido por outro, sem ter havido qualquer ato de agressão. Pelo contrário, a Rússia invadiu a Crimeia em 2014, sem que tenha havido retaliação militar.

Um dos principais argumentos para a não intervenção é o de que a Ucrânia não faz parte da NATO, e por isso não temos que a defender. Na realidade, o art.º 5 da NATO não impede a NATO de intervir, apenas a obriga a intervir se for atacado um país membro. Por outro lado, uma intervenção dos países ocidentais não tem de ser necessariamente via NATO, podendo ser executada por países europeus apoiados por uma votação expressiva na ONU (a Rússia pode vetar uma força oficial da ONU, mas não pode impedir países de apoiarem esta força).

Além disso, a Ucrânia não pertence à NATO, mas desde 2008 esta adesão está prometida (acordo de Budapeste [2]), mas até Zelensky já percebeu que não vai acontecer tão cedo...

Acresce algo mais grave: em 1994, a Ucrânia acordou entregar o seu armamento nuclear... à Rússia! Em troca, assinou um tratado de não agressão com a Rússia (cumprir acordos não é o seu forte), com a promessa de defesa por parte dos EUA (e Reino Unido). Mas promessas leva-as o vento...

O argumento “final”: a possível escalada do conflito, o uso de armas nucleares, dando origem à tão temida 3.ª Guerra Mundial.

Não vamos negar os perigos, nem a sua enorme relevância, apenas notar que qualquer opção traz riscos! Façamos um exercício lógico e consideremos duas hipóteses: (a) Putin está a fazer bluff e nunca usará armas nucleares; (b) Putin está numa deriva czarista louca e pondera a hipótese do uso de armas nucleares.

Caso a: Se a Rússia tentar atacar outros países, fá-lo-á com armas convencionais e estes poderão defender-se com a ajuda da NATO. A guerra poderá escalar, mas a capacidade da Rússia de travar uma guerra com múltiplos inimigos na situação atual não se afigura provável, até pela previsível superioridade tecnológica da NATO. Assim, Putin estará a usar as armas nucleares apenas como ameaça, numa estratégia que a não ser parada o levará a tentar esticar a corda noutras paragens...

Caso b: É, claramente, o pior cenário, onde podem haver retaliações nucleares. Implica que Putin apresenta uma irracionalidade que o torna especialmente perigoso e imprevisível. Ainda assim, ceder às suas chantagens não me parece que possa resolver o problema, só o adiando e tornando mais complexo, pois ele não irá travar podendo optar por uma escalada do conflito independentemente da intervenção ocidental, mesmo para resolver definitivamente a questão ucraniana (que se complica todos os dias). Só uma clara derrota militar trava os loucos, já nos diz a História. Resta esperar que neste caso, na hora da derrota, seja travado internamente por alguém com mais bom-senso...

O que defendo não são ações de ataque, mas ações militares de ajuda à defesa da Ucrânia, e.g. a reclamada zona de exclusão aérea. Afinal, que direito tem Putin de proibir aviões da NATO num país terceiro, onde bombardeia civis? Não sou militar e haverá quem possa desenhar estas ações para que minimizem a perda de vidas humanas, mesmo do lado russo. Sim, também aí temos de marcar a diferença!

[1] Ver por exemplo as obras de Yuval Harari para algumas discussões interessantes sobre o tema
[2] Para os mais curiosos: https://www.nato.int/cps/en/natolive/official_texts_8443.htm

Miguel Rocha é professor universitário na Universidade do Minho e membro da Iniciativa Liberal. As suas opiniões são a título pessoal e não vinculam de forma alguma as instituições

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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