Tráfico de seres humanos: uma realidade e mais uma consequência da guerra

A guerra e a crise económica que vivemos actualmente constituem-se como terreno fértil para as violações dos direitos humanos.

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@peter.calheiros

A dura realidade dos ucranianos forçados a sair do seu país está a acarretar mais um flagelo social: o tráfico de seres humanos. Esta prática violenta e grave violação dos direitos humanos tem vindo a ser reportada pelos órgãos de comunicação social e outros agentes que se encontram nas fronteiras para onde fogem famílias à procura de segurança. O tráfico de seres humanos merece atenção urgente do público, dos governos e das organizações nacionais e internacionais, dado constituir-se como um fenómeno criminal que tem impacto directo nas suas vítimas, desde crianças a adultos, abalando a sua dignidade e integridade física e emocional. As mulheres são as que apresentam maior vulnerabilidade dadas as desigualdades de raça, género e classe e à maior tolerância da violência e exploração feminina.

O tráfico de pessoas pauta-se por uma natureza oculta e a coexistência com um conjunto de outros fenómenos ilícitos, como a imigração ilegal, a falsificação de documentos e a prostituição, o que por sua vez acarreta para as vítimas processos de estigmatização e repressão, dificultando a prestação de apoio efectivo. Segundo o Observatório do Tráfico de Seres Humanos, esta é uma realidade com um impacto económico comparável ao do tráfico de armas e de droga. Estima-se que por ano sejam traficadas milhões de pessoas em todo o mundo. De acordo com definições internacionais, europeias e segundo a lei nacional, o tráfico de seres humanos é definido em três eixos — acção, meio e objectivo — em concreto, o recrutamento, o transporte, a transferência, o aliciamento, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à violência, ao rapto, à fraude, ao engano, a ameaça ou a outras formas de coacção, ao abuso de autoridade ou aproveitando-se de situações de vulnerabilidade ou incapacidade psíquica da pessoa, as falsas promessas de empregos economicamente apelativos ou de formação noutro país. A exploração tem como objectivos a exploração sexual, a a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, as actividades criminosas ou a extracção de órgãos.

Os factores que explicam a existência da comercialização de pessoas são múltiplos, incluindo as assimetrias endémicas entre os países subdesenvolvidos e os mais desenvolvidos, os movimentos migratórios, as desigualdades, o desenvolvimento do crime organizado, os conflitos armados. A guerra e a crise económica que vivemos actualmente constituem-se como terreno fértil para as violações dos direitos humanos, tendo sido documentadas situações semelhantes, por exemplo, em outras situações de conflito, como na grande guerra e nos conflitos da Europa de Leste.

Os motivos que fazem com que as pessoas acabem nestas redes de comércio de seres humanos prendem-se com a procura de condições de vida mais favoráveis, a tentativa de escapar à precariedade em termos sociais e laborais, a miséria e os conflitos no seu país de origem. A situação de carência social e económica das vítimas é a uma fonte de angariação destas pessoas.

Uma vez dentro de uma rede de tráfico, as vítimas são totalmente controladas com recurso a violência física, psicológica e/ou sexual e incluindo a retirada de documentos pessoais, o uso ou ameaças de violência sobre si ou os seus familiares e a total dependência económica dos traficantes, culminando em isolamento social. Os principais factores de manutenção das vítimas nestas redes são o desconhecimento dos seus direitos e a ausência de competências linguísticas e o excessivo controlo a que são sujeitas.

O impacto nas vítimas, que muitas vezes não têm qualquer hipótese de negar a sua vontade ou de se protegerem, sendo sempre grave, pode variar mediante o tipo de violência praticada, a sua severidade e frequência. A combinação de diversos tipos de violência é frequente nestes casos, tornando fácil perceber a presença de múltiplos sintomas físicos, psicológicos e comportamentais que habitualmente persistem no tempo dada a continuidade dos abusos. A privação do sono, além da insegurança quanto à sua integridade e dos seus familiares, a violência física e sexual a que estão expostos aliada às dificuldades de acesso aos serviços de saúde contribuem para o agravamento deste impacto. Ao nível psicológico e comportamental, encontram-se os sentimentos de falta de controlo, medo, imprevisibilidade, problemas de auto-imagem e auto-estima, depressão, sentimentos de perda de identidade, ideação suicida, ansiedade, ataques de pânico, stress pós-traumático, hipervigilância, hostilidade, comportamentos desviantes, problemas do comportamento alimentar.

Numa tentativa de lidar com estas experiências muitas pessoas acabam por recorrer ao uso de álcool e drogas, agravando ainda mais a sua situação e aumentando o estigma. Tudo isto, como se pode imaginar tem um enorme impacto no bem-estar destas pessoas.

Não podemos, enquanto pessoas e sociedade, permanecer indiferentes a esta realidade que acomete os mais básicos direitos do ser humano, sendo fundamental despertar a atenção dos órgãos governamentais nacionais e internacionais para o combate ao tráfico de seres humanos. São necessárias mais campanhas de sensibilização e esforços de prevenção e intervenção no terreno, sendo possível para as pessoas reconhecerem alguém que está inserida nestas redes, assim como agir sem medo de represálias.

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