A guerra que ninguém previu

A União Europeia ignorou as vozes do Leste, cujas feridas do passado soviético próximo avisavam para o risco do caminho seguido.


24 de Fevereiro de 2022: a imprevisibilidade eclodiu no devir histórico, desfazendo a ilusão que os demónios da História europeia estavam definitivamente enterrados. A guerra começada pela invasão russa da Ucrânia, com o seu cortejo de sofrimento, deslocados e mortos, pode ameaçar as fronteiras orientais da União Europeia e da NATO. Mudou definitivamente a Europa, agora que, controlada a pandemia, se esperava uma nova era de prosperidade e tranquilidade.

Era previsível? Ninguém interpretou os sinais de fumo desde a repressão sangrenta na Chechénia, ao separatismo artificial no Donbass, região leste da Ucrânia com maior percentagem de população russófila, alimentado e financiado por Moscovo, à anexação da Crimeia, à repressão brutal interna sobre opositores e dissidentes (recuperou-se a linguagem do passado soviético) e seu assassínio, efectivo ou tentado, (Navalny, recentemente) no país e no estrangeiro, aos discursos oficiais com um programa de acção meditado e assumido. Ou foram estrategicamente desvalorizados?

A prosperidade centro-europeia, a dependência energética a menor custo, as exportações, de máquinas a artigos de luxo para a vasta Rússia, a ausência de sobressalto ético ou político aos capitais vastíssimos duma oligarquia que assim assegurava tranquilidade, legitimidade e rendimentos e reforçava o seu poder autocrático e absoluto, tudo se sobrepôs aos valores. A política ignorou que o verdadeiro cimento da Europa, a sua alma, são a liberdade, a democracia, a dignidade e a vontade livre dos cidadãos. A União Europeia ignorou as vozes do Leste cujas feridas do passado soviético próximo avisavam para o risco do caminho seguido. E, também, todos nós, acomodados nesta ilha de prosperidade e segurança como nunca aconteceu na História, beneficiários dos fundos europeus, fomos coniventes com esse erro estratégico, com a falta de clareza geopolítica, a indiferença e sobranceria que subvalorizou a importância da defesa e segurança para a nossa liberdade e prosperidade.

No século XX a Alemanha errou historicamente duas vezes com consequências dramáticas. A 3.ª década deste século poderá ser marcada por mais um erro, a dependência energética da Rússia , que será histórico, como um ex-responsável político alemão reconheceu. Agora que os Estados-Unidos e o Reino-Unido retaliaram com corte na importação de energia da Rússia, a União Europeia ficou a meio caminho, prisioneira do gás que vem do Leste. Esta é, na essência, a realidade pura e dura, que pactuou com uma tirania organizada e com propósitos claros.

Li texto recente de Kissinger sobre a questão ucraniana. A sua avaliação da Rússia e da política do seu Presidente, sendo clara e factual, pareceu-me biased, ao ignorar o apelo à independência do povo ucraniano sempre que houve oportunidade, a repressão estalinista com a fome induzida deliberadamente que matou milhões – o Holomodor - tragédia que estará presente na memória colectiva ucraniana e na cultura política da geração dirigente actual. E a divisão em duas metades da Ucrânia baseadas na religião ortodoxa e no idioma russo não serão tão relevantes, como se viu pela resistência ucraniana e pela ausência de levantamento da população a favor do exército russo, nem no Donbass nem no norte, sul e leste da Ucrânia.

Mas a análise é consequente: toda a argumentação e acção do Presidente Putin tem uma finalidade clara: recuperar o poder e influência da Rússia, não pelo jogo económico livre e competitivo das democracias liberais representativas, mas pela subjugação imperial herdada dos czares e continuada pela União Soviética. Isso, e a perpetuação da autocracia oligárquica, como Anne Applebaum explicou claramente. Não sendo psiquiatra, não creio que a mesa gigantesca que usou colocando os seus interlocutores a seis metros de distância, sejam o Presidente da França, o chanceler alemão ou os seus ministros e generais, tivesse sido usada para cumprir dever de distanciamento social por receio de covid-19 ou fosse imposição da autoridade de saúde russa. Foi antes a manifestação dum poder autocrático, servido por um ego exibicionista a que Lord Owen (psiquiatra e ex-secretário do Foreign Office) chamou hubris, processo mental que conduz à subvalorização da objectividade e análise crítica na decisão, dominado pela força da convicção assumida como destino e servida por um revisionismo histórico e relativismo moral. Aliás, um hábito por aquelas paragens!

Não acredito que alguma vez a Rússia devolva a Crimeia à Ucrânia. Foi uma conquista de Potemkin, no tempo de Catarina a Grande, aos descendentes da Horda de Ouro que governou o sul a quem o príncipe de Moscóvia pagava tributo. E Sebastopol é a sua grande base naval para o acesso aos mares quentes e a Rússia nunca aceitará um estatuto como Kaliningrado, encravado entre a Polónia e a Lituânia.

Como todos nós, prisioneiros da barragem informativa das televisões, temo uma mortandade em Kiev, Kharkiv, Odessa e noutras cidades, o que será um crime horrível. Isso e a destruição do património artístico, como forma de apagar uma cultura e uma história. Compreendo que o Presidente Zelensky tenha recusado o papel de De Gaulle como líder no exílio, a Ucrânia não é a França e os tempos são outros. O discurso transmitido do seu gabinete em Kiev para o parlamento britânico foi um momento inesquecível de grandeza e significado históricos e quero confiar que o seu destino não será o de integrar a martiriologia ucraniana na luta pela liberdade e independência. Mas confesso que, nos piores momentos, receio que Putin queira realizar o seu destino de chegar a Berlim ou, num momento de arrogância ou desespero, use as armas nucleares. Como se veio a saber, a liderança soviética na crise de Cuba, tinha o plano de usar armas nucleares contra os Estados Unidos. Recomendo a leitura de um artigo What If Russia Wins, publicado há dias no Foreign Affairs. Dá que pensar.

Uma nova Europa pós-24/2, sem dúvida. Mas precisamos de uma nova União Europeia capaz de política conjunta de defesa, capaz de ultrapassar os tradicionais egoísmos nacionais e assegurar os valores essenciais da liberdade, da democracia, da sociedade aberta como barreira contra todas as autocracias, como sugeriu Maria João Rodrigues num excelente artigo no PÚBLICO.

E que impacto na nossa realidade? Vivemos suspensos no inebriamento da maioria absoluta inesperada (?), deslumbrados pelos fundos de resgate e resiliência e outros que farão esquecer idiossincrasias, incompetências e limitações. Que políticas para o futuro? O mesmo enquadramento estratégico ou temos que privilegiar de vez políticas novas o que implicará opções, investimentos e realinhamentos? Para o mar e os seus recursos, para a política para a energia, para o dinamismo da economia, para a reforma indispensável dos grandes serviços públicos, da Saúde à Educação e à Justiça. Mudança ou continuidade? Há um tempo novo, seja qual for o dramatismo da sua evolução, e cujo impacto não poderemos escamotear e isso obrigar-nos-á como nação a agir em conformidade. Assim se deseje e seja possível!

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