Ucrânia disponível para ouvir o que a Rússia entende por “estatuto neutral”

Depois do recuo de Zelensky sobre a adesão à NATO, porta-voz da presidência dá conta da abertura de Kiev para discutir o seu futuro com Moscovo – mas não aceita “ultimatos inaceitáveis”. Presidente ucraniano pede urgência na resolução da proposta de fornecimento de caças polacos à Ucrânia.

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Volodimir Zelenskii, Presidente da Ucrânia PRESIDENTIAL PRESS SERVICE HANDOUT/EPA

O Governo da Ucrânia mantém-se firme na defesa da integridade territorial do país e na garantia de que não tem a intenção de ceder às exigências “humilhantes” da Federação Russa. Mas à medida que a guerra se arrasta e se alastra pelo território, que as forças da resistência vão sentido cada vez mais dificuldades em repelir o invasor russo, e que o tempo vai revelando o drama humanitário em que o país se transformou, os líderes políticos ucranianos começam a mostrar mais abertura para discutir soluções alternativas para por fim à guerra.

Em entrevista ao canal televisivo alemão ARD, divulgada na terça-feira à noite, e citada pela agência ucraniana Ukrinform, o vice-chefe do gabinete da presidência da Ucrânia, Ihor Jovkva, deu conta da disponibilidade de Kiev para, numa situação de negociações ao mais alto nível, ouvir aquilo que o Governo russo entende por “estatuto neutral” – um dos objectivos que Vladimir Putin traçou para a Ucrânia quando mandou as tropas avançarem com a invasão.

Jovkva garantiu que o país não vai aceitar quaisquer “ultimatos inaceitáveis”, mas disse que “o resto pode ser discutido, como, por exemplo, o que é que significaria um possível estatuto neutral da Ucrânia”.

Já esta quarta-feira, numa mensagem partilhada no Facebook, o porta-voz da presidência repetiu que a Ucrânia “está pronta para discutir o estatuto neutral”, mas só se tiver “garantias securitárias claras” dos países vizinhos, “incluindo a Rússia” e “as principais potências”, como os EUA, a Alemanha ou a Turquia.

Para além disso, sublinhou, todas negociações sobre essa questão terão de passar, sempre, pelo fim imediato das hostilidades e pela retirada das tropas russas do território.

Jovkva só não esclareceu se o debate sobre a “neutralidade” vai constar entre os principais pontos da agenda de trabalhos do encontro de quinta-feira, em Antália, na Turquia, entre Dmitro Kuleba e Serguei Lavrov, ministros dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia e da Federação Russa, respectivamente.

As primeiras três rondas de negociações entre representantes dos dois países centraram-se, essencialmente, no estabelecimento de “corredores humanitários” em diferentes cidades e regiões da Ucrânia, para permitir a retirada de civis das zonas mais afectadas pelos bombardeamentos e ataques russos.

Citada pela Reuters, Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, disse esta quarta-feira que a “preferência” do Governo russo é garantir a “neutralidade” da Ucrânia “através do diálogo”. Por outro, assegurou que os planos da Rússia para a Ucrânia não passam pela destituição do Governo de Kiev.

Nas várias intervenções que dedicou ao assunto, Putin apresentou a “neutralidade” da Ucrânia como objectivo fundamental da “operação militar especial”, a par da “desmilitarização” e da “desnazificação” do país.

No que à “neutralidade” da Ucrânia diz respeito, o Kremlin, e particularmente o seu porta-voz, Dmitri Peskov, tem dito que as exigências russas passam por forçar o seu vizinho a introduzir esse propósito na Constituição ucraniana, assim como a renúncia em aderir à NATO e à União Europeia.

A NATO “tem medo”

Depois de vários dias a defender que a guerra deu ainda mais motivos à Ucrânia para se candidatar à NATO, o Presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, deu a entender, na terça-feira à noite, que está disposto a recuar nessa pretensão, até por causa da reacção pouco entusiasmada dos membros da aliança militar.

“Já refreei [a minha posição] sobre esta questão há algum tempo, depois de ter percebido que a NATO não está preparada para aceitar a Ucrânia”, afirmou, numa entrevista à ABC News.

“A aliança tem medo de tudo o que seja controverso e de um confronto com a Rússia”, criticou Zelensky, assegurando ainda que não quer ser o Presidente de “um país que implora de joelhos por algo”.

Questionado sobre aquilo que a Ucrânia estaria disposta a aceitar para garantir o fim da guerra, o chefe de Estado admitiu disponibilidade para chegar a um compromisso sobre um novo estatuto para as províncias de Donetsk e de Lugansk, no Donbass, mas sem abdicar da integridade territorial da Ucrânia.

“[Para negociar] precisamos de garantias securitárias. Estas ‘pseudo-repúblicas’ não foram reconhecidas por ninguém, para além da Rússia. Mas podemos discutir e chegar a um acordo sobre como é que estes territórios vão viver”, disse Zelensky.

Reconhecidas como Estados independentes por Putin antes da invasão, as províncias separatistas e pró-russas do Leste da Ucrânia estão em guerra com o Exército ucraniano desde 2014. Os Acordos de Minsk, de 2014-2015, pressuponham a admissão de um elevado grau de autonomia para ambas, mas o reconhecimento russo da secessão deitou por terra esse tratado.

O Kremlin pretende agora que Kiev também reconheça a independência de Lugansk e de Donetsk e que aceite ainda que a península da Crimeia, a sul, anexada pela Rússia em 2014, faz oficialmente parte do território russo.

“Não estamos preparados para aceitar ultimatos”, insistiu, no entanto, Zelensky, chutando o futuro imediato da Ucrânia para a disponibilidade da Federação Russa em dialogar. “Aquilo que é necessário ser feito é que o Presidente Putin comece a falar, a iniciar um diálogo, em vez de viver numa bolha informacional e sem oxigénio.”

Confusão com os MiG

A desilusão de Volodimir Zelensky com a NATO não se prende apenas com a falta de interesse da aliança em aceitar a Ucrânia nas suas fileiras num futuro próximo. O Presidente ucraniano não tem escondido a sua indignação com a recusa da NATO em impor uma zona de exclusão aérea para travar a Força Aérea russa – decisão justificada pelos seus membros com os riscos de a arrastar para o conflito – e agora pede uma resposta célere à proposta da Polónia para fornecer aviões militares à Ucrânia.

“Decidam o mais rapidamente possível, enviem-nos os aviões”, pediu Zelensky, numa mensagem difundida pela rede social Telegram. “Resolvam imediatamente.”

Em causa está uma proposta do Governo polaco para deslocar todos os seus caças MiG-29 até à base militar norte-americana em Ramstein, na Alemanha, para depois os EUA os transferirem para a Ucrânia.

Uma vez que se trata de aviões de fabrico soviético – que, para além da Polónia, também a Eslováquia e a Bulgária possuem –, os pilotos ucranianos teriam mais facilidade em operar com eles, ao invés dos caças F-16, de origem norte-americana.

Mas pouco depois do anúncio da Polónia, na terça-feira, que parece ter apanhado o Washington de surpresa, o Pentágono disse que o plano não era “sustentável” e informou que, se Varsóvia quisesse fornecer aviões de combate à Ucrânia, teria de o fazer a título individual.

Nesta quarta-feira, o primeiro-ministro da Polónia, Mateusz Morawiecki, esclareceu que a entrega de aviões à Força Aérea ucraniana seria sempre uma escolha “unânime e inequívoca de toda a aliança do Atlântico Norte”: “Não concordámos em fornecer aviões sozinhos, tem de ser uma decisão da NATO como um todo.”

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