Um palavrão para Putin

Segurança, certeza, controlo. Três palavras que são procuradas de forma incessante e obcecada, pese embora todos saibamos que não há forma de fugir ao inesperado.

Foto
Em Lviv, jovens voluntários fazem malhas de camuflagem para o Exército ucraniano nas praças da cidade, um equipamento essencial para prevenir ataques aéreos Adriano Miranda

Uma família, bons amigos, uma casa, um bom emprego, uma vida boa e, de repente, desapareceu tudo. Nunca pensei que tal coisa pudesse acontecer numa capital europeia no século XXI.

A frase foi derramada por uma jovem ucraniana em frente a uma câmara de televisão depois de ter abandonado Kiev. Não utilizei as obrigatórias aspas porque cito as suas palavras de cor e não posso jurar que não me tenha falhado um verbo, uma vírgula ou um perfeitamente compreensível palavrão — nenhuma dúvida tenho, porém, de que todo o seu testemunho foi precisamente um palavrão dirigido a Putin. Mas mais do que a exatidão das palavras citadas ou seu destinatário óbvio, que jamais poderiam traduzir a frustração, o ódio e o desespero do seu olhar, interessa o seu sentido e a interpretação simples e duro que delas podemos fazer: nada temos como garantido.

Não há garantias para o que sucede daqui por uns minutos, umas horas, amanhã, para a semana que vem ou para o próximo mês. Um lugar-comum, dirão. Certamente que sim. Mas quantas vezes nos lembramos deste lugar-comum e agimos com base nesta verdade sem reverso que faz dos nossos bem estruturados planos meros rabiscos incertos? Fica o convite à reflexão.

Não há dúvidas sobre a necessidade de planeamento na vida atual. É impossível viver sem planear. Mesmo aqueles que levam vidas mais simples, mais despreocupadas, mais ao sabor da direção em que o vento sopra, precisam de planear a sustentação da sua sobrevivência. Não é possível colher indefinidamente sem plantar, por exemplo. Mas outra coisa diferente é planear para tudo querer controlar. Como se planear e tentar controlar tudo ao mais ínfimo pormenor pudesse garantir uma segurança absoluta sobre o que vai acontecer.

A maioria de nós, quer viva em Portugal, na Ucrânia, na Rússia ou na Cochinchina, procuramos constantemente segurança. É assim a natureza humana. É graças a isso que sobrevivemos. Só que a segurança absoluta não existe. É uma ilusão. E é por viver nessa ilusão que ficamos desamparados quando o que imaginamos como seguro desaparece, quando o chão nos foge debaixo dos pés.

Poucas coisas se poderão comparar em termos de insegurança com uma doença grave que nos relembra a nossa vulnerabilidade e fragilidade ou — e só o posso imaginar, certamente com enormes omissões — com um ataque à nossa vida, como sucede numa guerra, sendo certo que, neste último caso, ao atentado à sobrevivência há que juntar a ameaça a tudo aquilo que para a maioria de nós, ocidentais, significa vida.

Uma família, bons amigos, uma casa, um bom emprego, uma vida boa e, de repente, desapareceu tudo. Nunca pensei que tal coisa pudesse acontecer numa capital europeia no século XXI.

Novamente sem aspas. E sem chão. Queda no abismo para a imprevisibilidade.

Numa ocasião em que visitei Marrocos, num dia de sol e calor, entrei, na companhia de mais de uma dezena de companheiros de viagem, num restaurante para almoçar. Não havia esplanada. Ocupámos uma mesa junto a uma enorme janela que deixava entrar a claridade daquele dia fantástico e eu apressei-me a escolher um lugar de frente para a janela para poder apreciar a vista e o céu azul. Já depois de almoço, apercebi-me que se aproximava uma gigantesca nuvem negra.

Em segundos, o dia fez-se noite. Os relâmpagos caíram como fogo de artifício e a trovoada desabou sobre o restaurante, fazendo tremer as paredes. Ouviam-se gritos, os rostos expressavam terror. Lá fora, pessoas corriam de um lado para o outro, debaixo de um chuveiro violento, à busca de abrigo. Nos breves instantes em que durou a tempestade, senti pela primeira vez a minha vida ameaçada pela natureza. E sei que muito provavelmente a minha vida não chegou a estar ameaçada e que exagerei na reação. Pouco depois, o sol voltou a brilhar e eu segui a minha vida e o plano delineado para o resto do dia, da semana, do mês.

Nenhuma comparação tem este caricato susto com a dimensão da tragédia humana a que assistimos na Ucrânia (à semelhança dos que já assistimos em dezenas de lugares do globo) e que ultrapassa todos aqueles que, como eu, nunca a viveram. Mas relato-o com um propósito, fazendo desde já a ressalva de que talvez eu e as três dezenas de pessoas que estavam naquele restaurante naquele dia sejamos todos uns medricas assustados que, antes da trovoada, contávamos estar em segurança, com tudo controlado e cheios de certezas sobre o que faríamos naquela tarde e no dia seguinte. Segurança, certeza, controlo. Três palavras que são procuradas de forma incessante e obcecada, pese embora todos saibamos que não há forma de fugir ao inesperado.

Se olharmos para a história da humanidade — já para não falar na sucessão de imprevistos de que resultaram a formação do planeta que habitamos —, encontramos milhões de exemplos de partidas que a vida pregou a milhões de pessoas que achavam que viviam em segurança e com controlo sobre as suas vidas. Como os cerca de 900 mil ucranianos que já tiveram de deixar o seu país. Um número que, estima a ONU, pode chegar a 4 milhões.

Uma família, bons amigos, uma casa, um bom emprego, uma vida boa e, de repente, desapareceu tudo. Nunca pensei que tal coisa pudesse acontecer numa capital europeia no século XXI.

“A vida costuma troçar dos tais que levam a sina desnuda, escrita no rosto. Ainda que feche os olhos durante algum tempo, abre-os quando menos se espera e anula os trunfos do jogo. E a vida tem mais de cem mil olhos por toda a parte”, alerta-nos o brilhante Mário de Carvalho num dos seus livros. Quer isto dizer que devemos esperar sempre o pior? Claro que não, isso seria insuportavelmente angustiante. Trata-se, antes, de ter consciência da imprevisibilidade da vida e de aceitar (e aceitar pode ser a coisa mais difícil da vida) o que há do outro lado do agora, do outro lado do que temos: o instante que vivemos.

Tomemos como exemplo o instante em que lê estas linhas. Já tomou consciência de que estando a ler estas palavras pela primeira vez não faz a mínima ideia de quais serão as seguintes. Também é assim a vida, como as letras, as palavras, as páginas seguintes de um livro que se lê pela primeira vez. As linhas que vai ler no desenlace deste texto são ainda (a não ser que já tenha espreitado) uma incógnita para si. Também o comportamento humano é uma incógnita. De tal forma que, incompreensivelmente, um só homem (dizem que Putin não ouve ninguém) pode revirar por completo o destino de milhões de pessoas, deixando-as à mercê da imprevisibilidade da vida e a morte. E isso é que faz da imprevisibilidade uma enormíssima tragédia, para não dizer um palavrão.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990


Sugerir correcção
Ler 1 comentários