Será muito difícil a Turquia encerrar os estreitos do Bósforo e dos Dardanelos aos navios russos

Os turcos controlam a passagem estratégica que liga o mar Mediterrâneo ao mar Negro. Apesar das pressões, farão tudo para não pôr em causa o tratado que lhes deu essa autoridade.

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O submarino russo Rostov-na-Donu passou no Bósforo, em Istambul, a caminho do mar Negro, a 13 de Fevereiro YORUK ISIK/Reuters

O pedido ucraniano foi feito poucas horas depois do início da invasão da Rússia, a resposta continua sem chegar. Este sábado, na sua página de Twitter, o Presidente da Ucrânia, Volodomir Zelensky, agradeceu ao homólogo turco, Recep Tayyip Erdogan, por “proibir a passagem dos navios de guerra russos no mar Negro” sugerindo que Ancara tinha tomado essa decisão. Não tomou, nem é provável que isso aconteça. Um responsável turco ouvido pela agência Reuters confirmou que a Turquia “não decidiu encerrar os estreitos aos navios russos”.

Ancara considerou a ofensiva militar russa “uma violação inaceitável da lei internacional” e tem manifestado o seu apoio a Kiev, mas pôr em causa as regras das passagens que ligam o mar Mediterrâneo ao mar Negro é algo que Erdogan evitará até poder. De acordo com a Convenção de Montreux, a Turquia tem o controlo dos estreitos do Bósforo e dos Dardanelos e garante a liberdade de tráfego a navios civis nestas vias, regulando o seu uso em caso de conflito militar.

Se a Turquia acedesse ao pedido ucraniano, os navios de guerra que a Rússia tem habitualmente estacionados noutros pontos do mundo deixariam de poder navegar de volta até ao mar Negro e de assistir as tropas que estão na Ucrânia. Na segunda semana do mês, seis navios de guerra e um submarino russos passaram pelos dois estreitos a caminho do mar Negro para aquilo que Moscovo descreveu como exercícios militares perto de águas ucranianas. A Marinha russa já foi entretanto responsável por vítimas nos confrontos na costa da Ucrânia e nas suas ilhas no mar Negro.

Mas como o Governo turco explicou, a convenção, assinada em 1936, prevê que em tempo de guerra um país continua a poder fazer regressar os seus navios aos portos de origem, bastando que o peçam a Ancara. Só se a Turquia for um dos países envolvidos no conflito é que “a passagem de navios de guerra fica inteiramente deixada à descrição do Governo turco”, lê-se no artigo 19.

“A Turquia segue de forma transparente todas as cláusulas do tratado de Montreux com determinação. Sempre aconteceu até hoje e a Turquia vai continuar a respeitar estritamente as suas cláusulas”, afirmou na sexta-feira o presidente do Parlamento turco, Mustafa Sentop, citado pelo jornal The Daily Sabah.

“Se Ancara negasse o acesso da Rússia ao mar Negro, estaria a mexer num ninho de vespas: Moscovo iria exigir renegociar a Convenção de Montreux e a Turquia nunca conseguiria um acordo tão bom outra vez. É por isso que Ancara não vai violar a convenção existente”, defende, no Twitter, Soner Çagaptay, director do programa de investigação da Turquia no centro de estudos Washington Institute.

Membro da NATO, a Turquia está a tentar manter um delicado equilíbrio face à intervenção russa. Erdogan ofereceu-se a Zelensky para tentar convencer Vladimir Putin a voltar às negociações, ao mesmo tempo que criticou a Aliança Atlântica e os países ocidentais por falta de “determinação” nas suas reacções. Contra a invasão, Ancara opõe-se, em simultâneo, à imposição de sanções económicas à Rússia, que diz não servirem para nada.

Invasão, aliás, é uma palavra que o Governo de Erdogan tem evitado usar, assim como guerra – de acordo com o ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Çavusoglu, há peritos legais turcos a tentar precisar se o conflito na Ucrânia pode ser definido como guerra, determinando assim as cláusulas de Montreux que podem ser invocadas.

A verdade é que a Turquia tem actualmente boas relações com a Rússia (apesar de se opor às políticas russas na Síria e na Líbia, e à sua anexação da Crimeia, em 2014) e com a Ucrânia. E se os turcos cooperam com Moscovo na energia (a Turquia importa cerca de um terço do seu gás natural à Rússia, mas também na defesa, é a Kiev que têm vendido os seus drones (neste momento, há um acordo de co-produção de drones em vigor). Muitos dos cereais importados por Ancara vêm da Rússia (66%) e da Ucrânia.

Pressões da NATO

“Os aliados da NATO vão seguramente aumentar as pressões para que Ancara reconsidere a sua relação especial com a Rússia”, disse ao jornal Arab News Emre Ersen, especialistas nas relações entre a Turquia e a Rússia da Universidade de Mármara, em Istambul, lembrando a polémica decisão turca de comprar à Rússia o sistema antimíssil S-400, em 2019, num desafio aos Estados Unidos e à NATO.

Mais centrada nas consequências económicas que esta guerra pode ter para o país, que enfrenta há um ano a queda acentuada da lira, a imprensa turca tem sublinhado os possíveis efeitos do encerramento dos estreitos do Bósforo e dos Dardanelos na economia, lembrando os habituais turistas russos e ucranianos que este ano deixarão provavelmente de fazer férias na Turquia.

A maioria dos analistas turcos insiste que o Governo de Erdogan vai tentar manter uma posição o mais equidistante possível, apelando a uma resolução diplomática. Aliás, a Turquia vê a Convenção de Montreux como garante da sua neutralidade. Na prática, diz Ersen, “actualmente, a Turquia não está em posição de sacrificar as suas relações nem com a Ucrânia nem com a Rússia”.

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