Novo Governo terá de refazer contas do OE por causa da crise a leste

Com o país em suspenso até tomada de posse do próximo Parlamento e do novo Governo, a proposta orçamental que o executivo tem na gaveta deverá sofrer profundas alterações para responder às consequências económicas da invasão da Ucrânia por parte de tropas russas.

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O primeiro-ministro disse que os impactos dependerão da "extensão do conflito" e das sanções que a União Europeia venha a decidir esta quinta-feira LUSA/TIAGO PETINGA

O atraso na tomada de posse do novo Governo de maioria absoluta do PS saído das eleições legislativas de 30 de Janeiro vai implicar “alterações substanciais” no Orçamento do Estado (OE) para 2022 devido à escalada do preço do petróleo, ao aumento da incerteza económica e à eventual subida das taxas de juro de referência do Banco Central Europeu, cenário que decorre da invasão desta quinta-feira da Rússia sobre território ucraniano. Ontem, António Costa, que na campanha para as legislativas usou o OE chumbado como bandeira eleitoral,​ não quis abrir o jogo sobre o alcance do impacto mas no PS há quem o veja como inevitável, assim como no maior partido da oposição.

Na conferência de imprensa sobre a crise provocada pelo ataque militar da Rússia à Ucrânia, o primeiro-ministro foi questionado sobre a necessidade de o Governo rever ou mudar o OE, mas António Costa não se comprometeu, considerando prematuro fazer já uma avaliação das consequências económicas das sanções a aplicar à Rússia. “É preciso saber qual é a extensão, a duração deste conflito”, disse, evitando responder directamente à questão do OE.

O primeiro-ministro ressalvou ainda que o impacto do conflito na proposta orçamental dependerá também das sanções que a União Europeia iria anunciar ainda esta quinta-feira e das “contra-medidas que serão aplicadas ou não pela Rússia”. “Em função disso poderemos fazer uma avaliação integral da situação”, completou.

No entanto, no núcleo político do PS, há quem defenda sem hesitação que o “Orçamento tem de ser modificado. O risco do aumento das taxas de juro, a inflação, os custos da energia, tudo o que tem a ver com custos de matérias-primas e sector alimentar vieram mudar os dados”, disse ao PÚBLICO um dirigente nacional do PS.

No maior partido da oposição o impacto é dado como certo. O economista e deputado social-democrata Hugo Carneiro diz que o cenário de guerra vai levar, necessariamente, a que o Orçamento que o Governo apresente tenha de sofrer “alterações substanciais” ― que o PCP e o Bloco chumbaram ― porque o “quadro macroeconómico está a evoluir de forma desfavorável”.

Em declarações ao PÚBLICO, o professor da Universidade Católica de Lisboa e quadro do Banco de Portugal argumenta que “o aumento dos preços energéticos tem um impacto brutal nas economias europeias e na portuguesa também terá”.

“Se isto começa a impactar nos juros à habitação, as famílias vão começar a sentir o aumento das prestações”, adverte Hugo Carneiro, sustentando que “as bolsas mundiais desde o início do ano têm assistido a uma instabilidade grande por causa da incerteza da economia e da inflação”.

O deputado, que integra a Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças, alerta o Governo para o facto de esta escalada de aumentos (nos produtos alimentares, materiais de construção, combustíveis, energia) “limitar a capacidade de crescimento do país”. “Uma coisa é começar um novo Governo com o Orçamento do Estado aprovado, outra coisa é o país estar suspenso durante seis meses, que é a situação que temos”, declarou.

Uma nova crise que se junta a um país politicamente parado

A invasão militar da Rússia junta-se à pressão nos preços e a factores internos. Um outro dirigente socialista questionou o adiamento do início da legislatura e alertou para os efeitos decorrentes desse adiamento, não apenas na formação do novo Governo mas também a nível do trabalho parlamentar. “O Governo está parado do ponto de vista político, apesar de o PS ter maioria absoluta”, afirma.

“Apesar da maioria absoluta cada protagonista em concreto não sabe qual é a sua situação, se vai continuar, se não vai. Tudo isto gera paralisia”, constata.

Em declarações ao PÚBLICO, o dirigente socialista sustenta que “a partir do momento em que há este adiamento da tomada de posse do Governo, esse adiamento tem um preço a pagar” e diz que “nunca devia ter acontecido”. “Isto é um sinal de uma certa irresponsabilidade que grassa no mundo político”, acrescenta, deixando um recado ao executivo de António Costa: “Independentemente da maioria do PS, o Governo não tem legitimidade como se estivesse em plenitude de funções. Estamos perante um Governo em gestão, que gere as questões da pandemia, as relações internacionais. O Governo tem feito o que é necessário, mas um Governo em gestão não pode tomar decisões para o futuro”. E acrescenta: “Este Governo está limitado porque não pode tomar decisões que dependam da Assembleia da República.”

No diagnóstico que faz do executivo, o dirigente do PS, que já foi deputado, alerta, por outro lado, para a circunstância de haver algumas áreas que “não estão a andar”, como é o caso do PRR (Programa de Recuperação e Resiliência). “A comissão de acompanhamento do PRR chamou há dias a atenção para algumas áreas problemáticas, por exemplo a habitação”, atira. “Se o ritmo não aumentar muito não vai ser possível executar o financiamento que está acordado com a Comissão Europeia e é muito dinheiro”, avisa.

A comissão de acompanhamento do PRR manifestou “vários factores de preocupação” com a concretização dos investimentos previstos para a habitação, dada a “ambição” dos objectivos, o “reduzido prazo” de execução e o “aumento dos preços”. “Perante a clara ambição dos objectivos definidos no PRR para a resolução das carências habitacionais, a que acresce o reduzido prazo para a concretização dos investimentos, considera-se crucial desenvolver um conjunto de medidas”, lê-se no primeiro relatório da comissão, revelado há uma semana pela agência Lusa. O documento acrescenta que há “urgência” em adoptar mecanismos para tornar a “informação transparente”.

A este propósito, o deputado do PSD, Hugo Carneiro, vaticina atrasos na execução do PRR, um programa de fundos europeus que tem um período de execução até 2026 e uma dotação que ultrapassa os 16.600 milhões de euros. “O PRR também pode sofrer atrasos porque é preciso haver Orçamento para poder executar os fundos. De resto, é esse Orçamento que vai dizer o que se vai gastar nas diferentes áreas sectoriais, dotando o país do quadro legislativo legal que permite essa execução”, explica o economista.

“Embora o Governo possa ir trabalhando nos gabinetes, nós teremos perdido oito a nove meses de trabalho. Para um país que tem as dificuldades económicas e sociais que são conhecidas, o atraso tem um grande impacto”, declara Hugo Carneiro, para quem “o atraso na execução dos fundos pode levar a que o potencial que tínhamos de crescimento venha a acontecer mais tarde”. com Ana Sá Lopes e Liliana Borges

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