Caro BE

No Bloco de Esquerda, os dirigentes estão muito mais à esquerda do que os votantes. Os eleitores do BE são mais liberais, são em geral mais europeístas e nem sempre comungam do antiamericanismo dos seus dirigentes.

No seguimento das eleições legislativas e com a inauguração de um novo ciclo político muito se tem falado da necessidade de uma reflexão ideológica no PSD face à reorganização geral da direita. Mas então e a esquerda, estará ela dispensada, neste momento, de debate doutrinal?

Parece claro que o PS não tem esse tipo de angústias. Contra a tendência europeia de erosão do centro, a maioria absoluta do partido português do centro-esquerda parece assegurar, pelo menos para já, que o seu posicionamento está correto e corresponde aos anseios do eleitorado.

Também no PCP não parece haver lugar para dramas existenciais, apesar da pesada derrota eleitoral do partido. Um partido que não mudou uma vírgula à sua ideologia com a queda do Muro de Berlim não irá certamente mudar por causa do resultado de umas eleições burguesas. O PCP permanecerá o que é até desaparecer.

Mas na área do Bloco de Esquerda algo parece mover-se. A intervenção agreste de Boaventura Sousa Santos (BSS) foi desagradável no tom mas relevante na substância. BSS considera que o Bloco deveria tornar-se uma espécie de Livre em tamanho grande. De imediato os dirigentes do Bloco tentaram descredibilizá-lo publicamente, através de Fernando Rosas, mas sem endereçar em nenhum momento a questão de fundo que ele levantara.

Note-se que o BE sempre foi um partido complexo, desde logo por ser formado a partir de correntes tão diversas como o trotskismo do PSR, o maoismo da UDP e o marxismo crítico da Política XXI. Mas a grande questão ideológica que hoje se coloca ao BE não tem a ver com estas discussões do passado, nem com a clivagem posterior entre as tendências “Socialismo” e “Esquerda Alternativa”. Pelo menos visto a partir de fora, o problema hoje reside cada vez mais na oposição entre, por um lado, a visão vanguardista comum às várias correntes e tendências internas do partido e, por outro lado, a visão da qual BSS se fez porta-voz, de um partido não vanguardista, não antissistema, aberto à mudança societária (no fundo, a mesma questão geral subjacente a sucessivas saídas do partido ao longo dos anos, de Rui Tavares a Ana Drago).

O problema maior, mais evidente hoje em dia do que alguma vez no passado, é que a visão vanguardista é comum à maioria dos dirigentes do Bloco, enquanto a postura antivanguardista e mais reformista caracteriza os seus eleitores. Enquanto no PS e no PCP existe alinhamento ideológico entre os dirigentes desses partidos e aqueles que neles votam, tal não se verifica no Bloco. Neste partido, os dirigentes estão muito mais à esquerda do que os votantes. Os votantes do Bloco são mais liberais, sobretudo na economia, são em geral mais europeístas e nem sempre comungam do antiamericanismo dos seus dirigentes.

Por isso os votantes do BE mudam facilmente não só para o Livre e para o PS, mas também para os partidos da direita, agora sobretudo para a Iniciativa Liberal. Aquilo que fixou durante muito tempo os eleitores do Bloco não foi a adesão a um partido vanguardista, anticapitalista e revolucionário - mais próximo do PCP do que do PS - e cuja natureza eles em geral ignoram. Aquilo que fez a boa fortuna do Bloco foi antes a sua coragem na defesa das chamadas “causas fraturantes”. Terminada esta agenda – que será encerrada com a questão da eutanásia - o Bloco fica definitivamente confrontado com o arcaísmo ideológico dos seus dirigentes e, confrontados com ele, os eleitores preferem outras paragens.

Será mesmo, caro BE, que um verdadeiro aggiornamiento ideológico poderá continuar a ser evitado?

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