De Costa a Costa — da “geringonça” à maioria

O que não fez ou fez mal o anterior Governo de António Costa — e que se espera que corrija nesta nova legislatura.

Imagino um eleitor que, na véspera, ou mesmo no momento de votar, hesitou até ao último minuto onde traçar uma cruz, perdido entre a lista infindável dos 21 partidos concorrentes. A maior parte dos hesitantes da última hora, não tenho dúvida de que terão votado no PS. Aliás, em António Costa.

E porquê? Porque, revendo em acelerado estes seis anos de governação, e lembrando-se dos rostos e posturas dos outros candidatos, nos debates da TV, 19 dos quais freneticamente apostados em apear António Costa do poder a qualquer preço (exclua-se o Livre), esse eleitor anónimo acabou por reconhecer que, entre os 21 rostos dos líderes dos partidos, havia um só que lhes inspirava confiança, qualidades de liderança e prestígio na UE, e que não iria, por isso, dispensá-lo nos próximos quatro anos, nem muito menos castigá-lo.

Mesmo se, ao longo desta caminhada de seis anos, o criticou e atacou, a ele ou aos seus ministros, umas vezes por um repentino impulso de protesto, mas outras vezes cheio de razão, esse cidadão anónimo e hesitante ter-se-á lembrado, no momento decisivo de votar, de que António Costa teve de gerir a herança arrasadora de um Governo que tinha aplicado com servilismo as “políticas de austeridade”, oferecendo-se para “ir além da troika” à custa dos cidadãos e da nossa independência; que o país, nos últimos dois anos, fora atravessado por uma pandemia que levou os cidadãos a pôr a salvaguarda da sua vida e da família acima das suas dificuldades materiais, deixando em quarentena a esperança num futuro mais justo e mais promissor — estou certo de que, no último minuto, esse cidadão indeciso teve consciência de que qualquer outra solução seria um voto na incerteza, na instabilidade e numa perigosa aventura: muito provavelmente, a ingovernabilidade e o caos.

Dir-me-ão que estas são as piores razões para dar a maioria a um partido e a um líder, e que a História está cheia de trágicos desenlaces de impulsos irracionais que mobilizaram as massas para a fé cega em utopias redentoras, em que os cidadãos, assustados, trocaram a liberdade pela segurança.

Mas, no ano em que se comemoram 48 anos de liberdade e democracia, tantos quantos os que os portugueses viveram silenciados pela ditadura, ouvir o histérico Ventura apoderar-se despudoradamente das quatro palavras sagradas que Salazar fez suas – “Deus, Pátria, Família e Trabalho”; o imberbe Xicão a vociferar que era preciso “acabar com o socialismo” (como se alguma vez tivesse havido socialismo em Portugal!); e Rui Rio dizer que nunca houve fascismo, terão chegado para assustar o português mais sensato, desejoso de paz, liberdade e respeito, e levá-lo a dar ordem à caneta para pôr a cruz no sítio certo.

É verdade que Salazar nunca andou fardado em cima de um alazão, de um tanque ou de um Alfa Romeo convertível; que era um provinciano, conservador e católico, que desprezava as massas e os militares, que nunca saiu do país (para dizer a verdade, nunca saiu verdadeiramente da sua aldeia), a não ser num dia em que foi acertar agulhas com Franco, em Badajoz, sobre a neutralidade ibérica); mas também é verdade que o ditador de Santa Comba adoptou a saudação fascista, como Hitler e Franco; que se inspirou nas corporações de Mussolini; que criou a Mocidade e a Legião Portuguesas na sequência da Guerra Civil de Espanha e do “perigo vermelho”; que instituiu a PIDE, onde alguns inspectores vieram da Itália fascista, com uma rede de bufos que, em cada esquina, vigiavam cada palavra que se dizia, e a Censura, que vigiava cada palavra que se escrevia; e que criou os Tribunais Plenários e as prisões políticas, com o seus métodos macabros de tortura e intimidação.

Quem viveu e sofreu esses tempos de horror, de asfixia, de guerra, de emigração e de miséria, não os esquece facilmente — e, por isso, não confia na irresponsável amnésia de Rui Rio, que não descartou vir a acolher, se ganhasse, algumas propostas de Ventura. Rio deixou o partido em cacos; e o “Chega”, com os seus deputados brancos de origem caucasiana, que se resume a exclamações carroceiras em outdoors e comícios, ou se torna uma horda de arruaceiros, como os squadri de Mussolini, ou, dócil como um cordeiro pascal, à espera de um lugarzito numa qualquer aliança da direita.

Se descontarmos os pequenos partidos, folclóricos e improvisados, que tiveram nestas eleições as suas epifanias, resta tentar perceber a subida em flecha da IL, cujo líder ostenta um semblante e um discurso que seduzem o eleitor mais incauto. Mas o que quer realmente a Iniciativa Liberal? Com esse canto de sereia que é a retórica do mercado redentor, Cotrim de Figueiredo representa o verdadeiro perigo de que a direita moderada e social, querendo fazer uma himenorrafia*, acabe por se render à teoria neoliberal.

E o que defende a IL? Inspirado na famosa resposta que os industriais do tempo de Luis XIV deram a Colbert, quando este lhes perguntou o que o Estado podia fazer por eles — “laissez-nous faire!” (“deixem-nos agir”) —, e, depois, nas teorias de Hayec e de Friedman, o neoliberalismo, no final dos anos 20 e, sobretudo, depois da queda da URSS, defendeu o mercado livre da presença e do controlo do Estado, que deveria limitar-se a apoiar e financiar a iniciativa privada (e resgatar, depois, empresas falidas) e apoiou ditaduras cruéis, como o Chile de Pinochet. Gosto de sintetizar a filosofia dos seus próceres com a famosa frase de António Silva quando se apropria dos charutos do amigo Barata, com uma sentença lapidar: “O que é meu é meu, o que é teu é nosso”! Troque-se “teu” por “Estado” e a frase merecia figurar nos tratados de economia!

E o que podemos esperar do que resta dos outros partidos da “geringonça”, que se reclamam da “verdadeira” esquerda, envergonhadamente nostálgica de Lenine, Trotsky, Mao ou Che Guevara, e que, mais uma vez, foram ao fundo como o incorrigível escorpião, ao querer atingir mortalmente a sua vítima: António Costa e o execrado PS, arriscando-nos a ter de suportar mais uma vez no poder uma maioria dessa direita cada vez mais radical? O BE arrisca-se a ficar um pequeno partido de causas fracturantes, e o PCP prefere voltar a empunhar o altifalante à frente dos grevistas da CGTP, do que ser um atrelado da “geringonça”.

E o que se esperava deles? Por exemplo, que, desde o primeiro dia na AR, exigissem uma rigorosa averiguação judicial a todas as privatizações cometidas pelo Governo da troika, dando a conhecer aos portugueses as malfeitorias da aliança PPD/CDS, que, com a benção de Cavaco, entregaram a grupos estrangeiros todas as nossas empresas estratégicas, numa operação sem paralelo na UE. E, sobretudo, que tivessem aprendido de vez com os erros do passado, em que o ódio da esquerda revolucionária à social-democracia, ajudou sempre a pôr no poder as mais cruéis ditaduras dos tempos modernos!

E o que não fez ou fez mal o anterior Governo de António Costa — e que se espera que corrija nesta nova legislatura? Seria longo enumerar pontualmente alguns graves deslizes e omissões, e apontar ministros que foram gravosos erros de casting, mas destacaria três pontos:

  1. A imperativa reforma da Justiça, para a qual existe um ministério (e que, por isso, não se deve confundir, como tem feito erradamente o primeiro-ministro, com a interferência no poder judicial), abrangendo a forma de nomeação e poderes das entidades reguladoras, que falham sistemática e escandalosamente no escrutínio rigoroso e independente do cumprimento da lei e da Constituição, o que as torna permeáveis ao nepotismo e à corrupção, e mina a confiança dos portugueses na transparência, imparcialidade e eficácia dos tribunais e do Ministério Público;
  2. Um Ministério do Ambiente que não esteja refém de lobbies e que não governe intimidado pela força que a política da troika deu aos abusos em áreas que são pulmões vitais do país (das águas às áreas protegidas; das florestas aos solos aráveis e às faixas costeiras);
  3. E, last but not the least, a definição do que deve ser o papel do Estado na Cultura, nas áreas do Património e das Artes Vivas (coisa que até hoje nenhum Governo fez), tarefa que deve ser assumida pelo primeiro-ministro e subscrita e apoiada por vários ministérios, e cujo orçamento passe a ser visto, não como uma esmola aos artistas, mas como um investimento e um direito, não apenas dos criadores, mas dos cidadãos **.

* Termo cirúrgico para “refazer a virgindade”.

** Incluindo a revogação imediata do Acordo Ortográfico, essa barbaridade que o anterior MNE, autoritariamente, decidiu manter em vigor, sem dar satisfações aos ministros da Educação e da Cultura (os que mais deviam ser ouvidos), um ato (sem c) que nos isolou ainda mais dos PALOP, ao aprovar uma ortografia absurda e que só nós adotámos (sem p), no conjunto dos países lusófonos.

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