Operação Marquês: MP pede condenação de Salgado a pelo menos dez anos de prisão

“Não estou em condições de prestar declarações”, disse ao juiz. O ex-banqueiro, que responde por três crimes de abuso de confiança, foi pronunciado pelo juiz de instrução criminal Ivo Rosa por alegadamente se ter apropriado de 10,6 milhões de euros com origem na Espírito Santo Enterprises. Sentença será conhecida a 7 de Março.

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Ricardo Salgado não tinha ainda aparecido no julgamento, apareceu nesta terça-feira LUSA/PAULO CUNHA

O Ministério Público pediu, nesta terça-feira, em tribunal que Ricardo Salgado seja condenado a uma pena não inferior a dez anos de prisão. Para o procurador Vítor Pinto, a prova produzida ao longo do julgamento é suficiente para dar como provado que o ex-banqueiro cometeu os três crimes de abuso de confiança qualificada de que vem acusado.

O procurador justificou a pena com o facto de os montantes de que Ricardo Salgado se apropriou serem demasiado elevados. “Uma quantia que grande parte da população portuguesa não conseguirá auferir durante uma vida de trabalho”, disse.

Além disso, para o procurador, o ex-banqueiro não demonstrou arrependimento, mas sim uma motivação “manifestamente egoísta”, “dada a sua elevada condição económica que bem podia dispensar a apropriação de tais valores”, assim como uma “persistência criminosa com que actuou e a sua conduta posterior, no sentido de arranjar e forjar justificativos”.

Ricardo Salgado apareceu, na manhã desta terça-feira, no julgamento no âmbito da Operação Marquês em que responde por três crimes de abuso de confiança, causando surpresa. O ex-banqueiro nunca tinha comparecido neste julgamento até agora. No entanto, não prestou declarações em tribunal. Disse ao juiz que não estava em condições de prestar declarações devido à doença que lhe foi diagnosticada, Alzheimer. “Não estou em condições de prestar declarações”, sublinhou.

Ricardo Salgado foi pronunciado pelo juiz de instrução criminal Ivo Rosa por alegadamente se ter apropriado de 10,6 milhões de euros com origem na Espírito Santo Enterprises, tida como o “saco azul” do Grupo Espírito Santo (GES). Segundo a pronúncia, foram feitas três transferências da ES Entreprises, em 2011, para sociedades offshore controladas por Ricardo Salgado.

Foi um empréstimo pessoal, diz defesa

Mas a sua defesa sempre se centrou – além de tentar suspender o julgamento com o argumento de que a doença de que padece, Alzheimer, não lhe permitir exercer devidamente o direito de defesa – em duas premissas: Ricardo Salgado não era o único responsável da Espírito Santo Enterprises (ESE), e o dinheiro que recebeu foi mesmo um empréstimo pessoal, com juros, que apenas deixou de pagar quando o BES entrou em colapso e as suas contas foram bloqueadas.

E foi essa mesma linha que seguiu nas alegações finais, ao pedir a absolvição de Ricardo Salgado e criticar o procurador por pedir uma pena de prisão para uma pessoa que sofre de uma doença comprovada, que não lhe permite exercer devidamente o seu direito de defesa em tribunal.

A defesa do ex-banqueiro disse mesmo que Vítor Pinto preferiu “fingir” que o ex-banqueiro não sofre de qualquer doença e que pode ser condenado a uma pena de dez anos. “Ao pedir a prisão efectiva de uma pessoa com patologia, o Ministério Público não pede algo que vai contra a lei, pede algo que vai contra a decência e o humanismo do Estado de direito”, alegou.

O advogado Francisco Proença de Carvalho pediu, assim, que o seu cliente, que “tem sido arrasado nos últimos oito anos”, tenha apenas “direito a ser julgado pelos mesmo princípios humanistas que os outros arguidos”.

Em seguida, o advogado decidiu arrasar a acusação que levou o seu cliente a tribunal: “A narrativa acusatória era frágil na Operação Marquês e agora está coxa neste julgamento.”

Para Francisco Proença de Carvalho, “a prova da acusação são os três núcleos de transferências que estão em causa e uma presunção criminal que teve apenas um ligeiro apoio em dois testemunhos”.

Quando fala em dois testemunhos, o advogado refere-se ao inspector tributário Paulo Silva, que não tem “qualquer conhecimento directo dos factos, não participou neles e é o grande responsável pela teoria fracassada da Operação Marques”, e ao primo de Ricardo Salgado José Maria Ricciardi. “O primo desavindo a quem o MP recorre sempre que tem de acusar Ricardo Salgado”, afirmou.

Francisco Proença de Carvalho contestou também o “famoso mito da gestão centralizada do Grupo Espírito Santo”. Disse que as várias testemunhas demonstraram que havia uma hierarquia e que não era Salgado o único a decidir e contrariaram as “teorias falsas e populistas ideias de um dono disto tudo”.

“Não é admissível. Só serve a útil e oportunista centralização da culpa”, sustentou, para a seguir considerar que o MP está a especular quando sugere que houve um documento forjado para justificar uma das transacções. “O processo penal não pode viver de especulações do inspector tributário ou do Ministério Público”, afirmou.

Já no final das suas alegações, o advogado de Ricardo Salgado voltou a atacar. Para Francisco Proença de Carvalho, “o Ministério Público fingiu que não sabe” e faz uma “aparente desvalorização da doença de Alzheimer de uma pessoa com quase 80 anos e que já foi, durante dez anos, arrasada publicamente”.

“É um Ministério Público agressivo e desumano”, disse, para a seguir dizer que, “a haver alguma pena, nunca poderá ser efectiva”. “Não concedemos nisso”, disse.

Francisco Proença de Carvalho diz que “dificilmente se pode encontrar sujeito a tanta pressão mediática e pressão judicial durante quase 10 anos, e que aos 70 anos viu a vida virada do avesso de um dia para o outro. Mais tarde ou mais cedo a saúde iria ser afectada”.

O advogado sublinha que Ricardo Salgado tem problemas de audição e de coração, e que até tem um pacemaker. Lembra que o diagnóstico de Alzheimer foi feito por um “reputado médico”, com um elevado grau de certeza, e que, infelizmente, desde o último relatório médico, as faculdades cognitivas do ex-banqueiro se agravaram.

“Nada custou mais a esta defesa do que ter de admitir ao tribunal e opinião pública o diagnóstico médico de Ricardo Salgado, e nada custa mais do que ver a forma desumana com que algumas pessoas se referem a situação de saúde de Ricardo Salgado”, afirmou para a seguir sublinhar que não pode haver outra decisão “que não seja a absolvição”.

Depois das alegações da defesa do ex-banqueiro, o procurador Vítor Pinto pediu para fazer uma réplica. Ou seja, responder aos advogados de Ricardo Salgado.

Começou por dizer que já não se usava fazer dramas e teatros nas alegações finais e depois desdramatizou a questão que envolve a doença de Ricardo Salgado: “O arguido soube referir todos os dados referentes à sua identidade. Onde é que foi revelada qualquer afectação das suas capacidades cognitivas, quando, manifestamente, o arguido está capaz de entender o sentido de uma pena?”, questionou o procurador.

Antes de se decidir a data para a leitura da sentença, o juiz voltou a perguntar a Ricardo Salgado se queria dirigir-se ao tribunal. No entanto, o ex-banqueiro voltou a alegar, tal como fez no início, que não tinha condições para o fazer. “Sinceramente, eu gostaria de poder dizer algo, mas estou muito diminuído nas minhas faculdades, e a minha memória foi-se embora, peço desculpa por isso, mas não tenho condições”, afirmou Ricardo Salgado.

O juiz disse que o silêncio o ia desfavorecer e que este é um direito dado a qualquer cidadão. “Só agradeço a sua atenção”, concluiu Ricardo Salgado.

A leitura da sentença ficou marcada para o próximo dia 7 de Março.

Ex-banqueiro estava acusado de 21 crimes

O MP, no processo da Operação Marquês, tinha imputado a Ricardo Salgado a prática de 21 crimes. Para além dos três crimes de abuso de confiança, o ex-banqueiro foi acusado de corrupção activa de titular de cargo político (um), corrupção activa (dois), branqueamento de capitais (nove), falsificação de documento (três) e fraude fiscal qualificada (três).

No entanto, o juiz Ivo Rosa apenas o pronunciou por três crimes de abuso de confiança. Os restantes caíram por prescrição ou por falta de provas.

Por exemplo, Ivo Rosa deu como provado que da esfera de Ricardo Salgado saíram mais de 70 milhões de euros. A acusação do MP diz que este valor serviu para subornar José Sócrates e os ex-gestores da PT Henrique Ganadeiro e Zeinal Bava, mas o juiz considerou que não há provas suficientes para Salgado ser pronunciado por corrupção e, num dos casos, o crime já teria prescrito.

Segundo o MP, da esfera de Ricardo Salgado terão saído cerca de 29 milhões de euros com destino a José Sócrates com vista a pagar a intervenção deste, na qualidade de primeiro-ministro, em favor dos interesses de Ricardo Salgado e do BES, no âmbito da OPA da Sonae, nos investimentos da PT no Brasil, na Venda da Vivo e na aquisição da participação da Oi.

Relativamente a 12 milhões (desses 29), a acusação alega que saíram da esfera de Ricardo Salgado para contas de Hélder Bataglia, também arguido na Operação Marquês. Posteriormente, este terá feito transferências para uma conta de Joaquim Barroca, gestor do grupo Lena, que, por sua vez, transferiu o valor para Carlos Santos Silva, empresário e amigo de José Sócrates. Defende o MP que estes 12 milhões de euros tinham como destinatário final o antigo primeiro-ministro.

Apesar de estas transferências, no entender de Ivo Rosa, terem “contornos obscuros”, “estas suspeitas e a ausência de justificação lógica para os fluxos financeiros verificados são insuficientes para que se possa concluir, de forma suficiente, que os 12 milhões de euros se destinavam a retribuir o arguido José Sócrates pela sua intervenção, enquanto primeiro-ministro, em favor do BES no âmbito dos negócios da Portugal Telecom”. E, mesmo que isso tivesse acontecido, o crime de corrupção já está prescrito, sustentou o juiz.

De acordo com os factos descritos na acusação, o pagamento dos alegados subornos a José Sócrates feitos por Ricardo Salgado, no montante global de 29 milhões de euros, consumou-se em 2010, “com a transferência realizada pelo arguido Hélder Bataglia em nome da sociedade Eninvest Investimentos Imobiliários SA para a conta CGD, titulada pela sociedade arguida Lena Engenharia e Construção SGPS, ou seja, para a esfera do arguido José Sócrates”, lê-se na decisão instrutória, que sublinha que, “em termos formais, o alegado crime de corrupção passiva (de Sócrates) consumou-se pelo menos até ao dia 30 de Junho de 2010”.

Nessa altura, o crime de corrupção passiva de titular de cargo político era punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias, e com um prazo de prescrição estabelecido em cinco anos. Portanto, concluiu Ivo Rosa, este crime de corrupção prescreveu em 2015.

Falta de provas

Relativamente aos outros dois crimes de corrupção que o MP imputou a Ricardo Salgado, o juiz Ivo Rosa também não o pronunciou por falta de provas e aceitou as explicações dadas pelos arguidos Zeinal Bava e Henrique Granadeiro.

Segundo a acusação do MP, Zeinal Bava terá recebido cerca de 25,2 milhões de euros, entre 2007 e 2011, através da Espírito Santo Enterprises (o alegado saco azul do GES). Tratou-se, segundo o MP, de subornos pagos por Ricardo Salgado, para que o gestor beneficiasse os interesses do Grupo Espírito Santo, que era o accionista de referência da PT.

No caso de Granadeiro, que acumulava a presidência executiva e a presidência da administração da PT, o MP sustentou que recebeu da Espírito Santo Enterprises um total de 24 milhões de euros para defender os interesses do GES. Na análise que o juiz faz às declarações dos arguidos Ricardo Salgado e Henrique Granadeiro, segundo o que vem descrito na decisão instrutória, constata-se que, “no que concerne às explicações para as transferências bancárias, são coincidentes, o que, à partida e na ausência de outros elementos de prova que as contrariem, indicia que serão verdadeiras”. O valor transferido para Granadeiro foi para pagar alegados trabalhos prestados ao Grupo Espírito Santo.

Já quanto a Zeinal Bava, o valor que lhe foi transferido seria para financiar a aquisição de acções da PT, o que não veio a concretizar-se, e o ex-gestor acabou por devolver uma parte do dinheiro a Ricardo Salgado.

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