“O Senhor Doutor é que sabe!”

Vimos de um modelo de consulta médica paternalista, em que se verificava uma franca assimetria de informação. Essa assimetria de informação tornava o paciente vulnerável e muito mais dependente do médico no processo de decisão. Contudo, é desejável que o modelo paternalista seja substituído por um modelo de consulta centrada na pessoa e em que o processo de decisão seja o da decisão médica partilhada.

Diz o provérbio popular que “da discussão nasce a luz”. Têm sido muitas as discussões que o período pandémico nos tem proporcionado. Quase sempre, nessas discussões, o que esteve em causa foi a procura da melhor forma de implementar em sociedade as recomendações emanadas da evidência científica disponível e que apontavam ser o melhor para a saúde dos cidadãos e da comunidade.

A verdade é que, quase sempre, foi possível mais do que um caminho. Podíamos usar máscara ou não usar. Podíamos usar máscara só no interior ou também no exterior. Podíamos confinar ou não confinar. Podíamos isolar os contactos de risco por 14, sete ou até cinco dias. Podíamos vacinar ou não vacinar. Vacinar todos ou apenas os grupos de risco. E por aí fora.

Um dos fatores que contribuiu para a dificuldade das decisões reside no facto de quase sempre cada um dos possíveis caminhos apresentar vantagens e apresentar desvantagens. A decisão seria muito fácil perante dois possíveis caminhos, se um apresentasse só vantagens e o outro apresentasse só desvantagens. Aí, seria fácil optar pelo caminho apenas vantajoso.

Neste contexto, é de saudar o envolvimento de muitos na procura de informação. É verdade que, em determinadas etapas do percurso, isso gerou ruído que pareceu ser contraproducente e que até contribuiu para decisões erradas como as do Natal de 2020. Contudo, nesse processo, existiram alguns obstáculos como, por exemplo, a escassez de conhecimentos e treino sobre o método científico, a iliteracia em metodologias de investigação ou a iliteracia de risco e do uso de probabilidades tão necessário à prática médica contemporânea. A ausência destas aptidões tornou-nos mais vulneráveis no processo de decisão e claramente mais dependentes de terceiros.

O que se passou no contexto da crise pandémica ao nível de toda a sociedade pode também ocorrer no processo de decisões médicas cada vez que se dá um encontro entre uma pessoa e o seu médico. Na consulta médica, também o paciente pode e dever ser envolvido no processo de decisão, de forma que a decisão médica seja partilhada. Podemos não ter consciência disso, mas o modelo de consulta médica atravessa um profundo processo de evolução e transformação. Vimos de um modelo de consulta médica paternalista, em que se verificava uma franca assimetria de informação. Essa assimetria de informação tornava o paciente vulnerável e muito mais dependente do médico no processo de decisão. Contudo, é desejável que o modelo paternalista seja substituído por um modelo de consulta centrada na pessoa e em que o processo de decisão seja o da decisão médica partilhada.

Hoje em dia, os estudantes de medicina já são treinados nas faculdades para implementarem na sua prática clínica o modelo de decisão médica partilhada. E se do lado médico também existem obstáculos a este processo de transformação, como, por exemplo, a escassez de tempo na consulta e a pressão assistencial, também interessa saber até que ponto estão os nossos cidadãos interessados em ser envolvidos no processo de decisão sobre a sua própria saúde.

Neste contexto, ao contrário do que poderia transparecer do ocorrido com as decisões relacionadas com a pandemia, fomos surpreendidos enquanto clínicos e investigadores com os resultados de um estudo científico recentemente publicado e que revela o reduzido entusiasmo dos portugueses para serem envolvidos no processo de decisão médica. Neste estudo, a grande maioria dos portugueses prefere que o médico assuma o controlo da decisão médica, quer em matérias de qualidade de vida, quer em doenças ou situações clínicas de ameaça de vida. Os doentes portugueses preferem um papel passivo e querem que seja o médico a decidir.

O porquê deste resultado surpreendente merece estudo e reflexão adicional, mas certamente que a baixa literacia em saúde pode desempenhar um papel e talvez também a inércia de uma tradição enraizada na população e que é tão bem transmitida pela ideia de que “o Senhor Doutor é que sabe”.

A decisão médica partilhada não consiste no simples ato de um médico, empaticamente, partilhar a sua decisão com o paciente. A decisão médica partilhada envolve muito mais do que isso, implica a capacitação do paciente, de forma que ele perceba os benefícios e os riscos da opção A e também os benefícios e os riscos da opção B. Só assim o paciente estará capacitado para decidir em consonância com os seus valores pessoais e em conjunto com o seu médico, decidir a opção a adotar. Este processo implicará certamente que o médico capacite adequadamente o paciente. Para tal, será necessário um esforço ao nível da comunicação clínica e translação daquilo que a ciência consegue demonstrar em termos de benefícios e riscos para cada uma das opções. E isto implicará até um ajuste de linguagem ao nível da perceção, para que cada pessoa consiga compreender o que está em causa em cada decisão médica.

Eis alguns exemplos concretos. Existem vantagens e desvantagens para a mulher que se submete ao rastreio de cancro da mama, assim como existem vantagens e desvantagens caso a mulher opte por não se submeter a esse rastreio. Nalgumas situações clínicas, é possível optar por tratamento cirúrgico ou optar por tratamento médico conservador. É possível a pessoa submeter-se a determinado tratamento com um certo fármaco para a dislipidemia ou optar por um fármaco alternativo, ou até pela mudança do estilo de vida. A escolha do método de contraceção é outro exemplo. Existem múltiplas opções. Para a mulher escolher aquele que prefere, é importante que seja capacitada, que compreenda bem as vantagens e desvantagens de cada método, para depois poder tomar a decisão, em conjunto com o seu médico.

À semelhança do que ocorreu ao nível da nossa sociedade, uma sociedade de informação aberta, com um elevado empenho e interesse de participação nas decisões sobre a pandemia, será positivo que os cidadãos despertem para o facto de que, também ao nível individual, a decisão médica partilhada é um direito do qual não devem prescindir.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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