Consenso científico pode ser “não sabemos” e a política não gosta disso

António Costa pediu “um esforço de consensualização científica” para decidir as medidas que devem ser adoptadas nos próximos tempos. No entanto, todos sabem que a incerteza faz parte da gestão do risco que a pandemia exige.

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TIAGO PETINGA/LUSA

O primeiro-ministro pediu esta quinta-feira “um esforço de consensualização científica sobre aquilo que devem ser os níveis relativamente aos quais as medidas devem ser adoptadas”. Ou seja, António Costa pediu ajuda aos cientistas para decidir os próximos passos a tomar para controlar a pandemia. Nada de errado nisso, embora se saiba que a gestão do risco se faz sempre com a incerteza. Mas há quem denuncie a incoerência do discurso lembrando que o chefe do Governo já assumiu várias “decisões políticas” que não tiveram como fundamento um sólido consenso científico.

“O apelo foi, no mínimo, desadequado”, reage o pneumologista Filipe Froes, que lamenta: “Não se percebe por que é que passado um ano de pandemia não tenha sido constituída uma comissão científica permanente para monitorizar em tempo real e tempo útil as decisões tomadas, a sua monitorização no terreno e a sua correcção se necessário.” O especialista constata assim que umas das decisões políticas que o primeiro-ministro tomou, desconhecendo-se qual o fundamento científico para isso, foi especificamente essa: a de não criar uma comissão científica. “Nós não podemos querer a ciência quando nos dá jeito e desprezar a ciência quando não nos dá jeito”, resume, defendendo que as reuniões de especialistas que vão decorrendo no Infarmed não substituem o trabalho de um conselho científico com especialistas de várias áreas, como existe noutros países.

Perante a incerteza, os governos têm hesitado. Há pouco tempo, o primeiro-ministro António Costa, tomou assumidamente a “decisão política” de manter as escolas abertas sem que existisse um consenso científico sobre essa matéria. Nessa altura, havia estudos e especialistas que falavam na importância de fechar as escolas e outros que concluíam que estes locais não eram especialmente perigosos (o que, aliás, nem sequer é tão contraditório como pode parecer à primeira vista).

Filipe Froes, coordenador do gabinete de crise para a covid-19 da Ordem dos Médicos, lembra que a decisão do primeiro-ministro foi tomada com um dado concreto em cima da mesa: o facto de se ter já concluído que se desconhecia a origem de 87% dos contágios. Se apenas só conseguíamos contar a história de 13% dos casos, então como é que se podia afirmar que as escolas não eram um problema, questiona o especialista. “Falar agora no apelo de consensualização aos cientistas é tentar desresponsabilizar-se por decisões que deviam ter tido um nível diferente de fundamentação”, diz o especialista, que conclui: “Pandemia significa decidir e liderar na incerteza.” Para ter mais hipóteses de sucesso nessa difícil tarefa é preciso ter “capacidade de monitorização das decisões que tomámos em tempo útil” e “capacidade de corrigir as decisões de uma forma activa”. Algo que, defende, claramente não tem existido.

“O luxo de esperar por certezas”

O apelo de António Costa foi feito depois de os especialistas apresentarem em algumas “metas” que é preciso alcançar antes de pensar em desconfinar. No encontro desta terça-feira, o epidemiologista Manuel Carmo Gomes defendeu que “a testagem é a arma principal que devemos usar, e não o confinamento” e definiu três “linhas vermelhas” para tomar medidas severas caso sejam ultrapassadas: “Não podemos ter um R [índice de transmissibilidade] a chegar a 1,1 durante muitos dias”; “temos de ter uma percentagem de testes positivos que não deve chegar aos 10%”; e “uma incidência que não ultrapasse os 2000 novos casos por dia”. Estes últimos valores corresponderiam a 1500 pessoas hospitalizadas, 200 delas em unidades de cuidados intensivos. “São [dados] muito objectivos, claros e, se forem comunicados com antecedência, as pessoas sabem quando nos vamos poder desconfinar”, afirmou o especialista.

A covid-19 expôs de uma forma exuberante a dificuldade da gestão do risco baseada na incerteza. Mas, esta está longe de ser uma situação inédita. As alterações climáticas, por exemplo, já colocaram muitas vezes o mesmo desafio implicando decisões sobre um futuro que se desconhece e que só é possível prever com limitações e margens de erro.

 “A outra coisa que está muito exposta com a covid-19 é que na incerteza, infelizmente, o poder político não pode estar à espera de ter toda a informação para tomar decisões. Enquanto o conhecimento e a confiança levam décadas a construir e são muito frágeis, o poder político não tem esse luxo, esse privilégio de ter tempo para decidir, e tem de tomar decisões sem a informação toda”, lembrava o investigador e deputado do PS, Alexandre Quintanilha, em declarações ao PÚBLICO ainda em Junho de 2020.

A verdade é que uma das questões que deverá reunir mais consenso entre os cientistas (e o resto do mundo, já agora) será precisamente a conclusão de que tomar decisões (políticas ou outras) no meio da incerteza não é fácil. No entanto, os decisores políticos não podem mesmo fugir a essa responsabilidade, são eles que têm de fazer a gestão do risco com incerteza. E, muitas vezes, o consenso científico pode ser um “não sabemos”. E se a ciência é feita da procura de respostas e faz-se com e por causa do que não sabemos, questionando e perguntando, a política não gosta do “não sei”.

O consenso muda

Nesta pandemia com o conhecimento a andar a um ritmo alucinante, o “consenso científico” é, além de tudo mais, provisório. O “consenso” científico muda à medida que surgem novos dados, o que é um desafio para os decisores políticos que tentam elaborar medidas de saúde pública e fornecer orientações claras e consistentes aos cidadãos.

Num artigo publicado no grupo da revista Nature em Outubro lê-se a dada altura: “Grande parte da atenção tem incidido sobre se o Governo chegou demasiado tarde a implementar a sua política de confinamento, resultando em milhares de mortes desnecessárias.” Dito assim parece que o autor podia até estar a falar de Portugal, mas não está. O comentário é sobre o que processo de decisão e aconselhamento científico no Reino Unido, mas o facto de encontrarmos aqui semelhanças com o que se passa no nosso país não será coincidência. “A pandemia de Covid-19 em 2020 forçou as instituições e os processos científicos a desempenhar um papel invulgarmente proeminente, e colocou as suas decisões sob intenso escrutínio público, político e mediático”, confirma o texto.

Num estudo do Instituto Max Planck, publicado em Dezembro, os investigadores analisaram precisamente a receptividade das pessoas à incerteza na ciência e concluíram que a maioria dos participantes (alemães) queria ser informada sobre as dúvidas e o desconhecido. “Para melhor se envolverem com as pessoas que estão actualmente cépticas sobre as medidas do Governo relativas ao coronavírus, o Governo e os media devem ter a coragem de comunicar as incertezas de forma mais aberta”, recomendou Gert G. Wagner, co-autor do estudo, num comunicado de imprensa do instituto sobre este trabalho.

Odette Wegwarth, outras das autoras do mesmo estudo, completa: “Políticos e peritos de saúde por vezes afastam-se de comunicar a incerteza científica, temendo que isso gere desconfiança. Mas apresentar aspectos incertos da pandemia como certos pode também ter efeitos negativos na confiança dos cidadãos se esses dados se revelarem incorrectos mais tarde.”

Politização e media

Num outro artigo publicado em Outubro na revista Science Advances com o título “Incerteza dos modelos, contestação política e confiança pública na ciência: Provas da pandemia da covid-19” constata-se que “a incerteza científica convida sempre ao risco de politização”, mas que esse risco é ampliado com esta pandemia. “Uma comunicação científica cuidadosa é fundamental para manter o apoio público às políticas baseadas na ciência à medida que o consenso científico se altera com o tempo”, escrevem os autores, que admitem que “os dados limitados e os prazos acelerados da investigação significam que alguns modelos ou descobertas serão inevitavelmente anulados ou corrigidos”. O artigo também deixa claro que “os incentivos à politização pelas elites políticas também podem ser ainda mais elevados hoje em dia, dadas as consequências políticas altamente perturbadoras das intervenções da covid-19, tais como lockdowns”.

Os autores do artigo na Science Advances juntam ainda mais um importante “actor” e falam do papel dos media. “A grande incerteza combinada com a considerável urgência de comunicar resultados cria novas ambiguidades sobre a forma de comunicar a complexidade ao público”, argumentam os autores do artigo que defendem que a cobertura mediática vai fazendo escolhas. Assim, tanto pode “reconhecer explicitamente as incógnitas nas projecções dos modelos e a ciência da covid-19 em geral” como pode “ignorar esta incerteza e pintar um retrato irrealisticamente determinista das previsões dos modelos e do consenso científico num dado momento” ou, por fim, “pode ir mais longe e ‘catastrofizar’ as consequências de não prestar atenção à ciência”.

No entanto, mesmo com todos os problemas e dificuldades, a verdade é que parece ser consensual que a relação entre cientistas e políticos nunca foi tão próxima como agora com a covid-19. Continua complexa, mas mais próxima. Ainda assim, enquanto na política admitir um erro pode ser visto como uma fraqueza, na ciência errar e substituir velhas teorias e hipóteses por outras novas e mais precisas faz parte do processo de conhecimento. Mudar de abordagem (com mais e melhor informação) pode ser uma fraqueza na política, mas é a força do método científico.

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