A demografia e o futuro de Portugal: uma posição da Associação Portuguesa de Demografia

A pior abordagem que podemos fazer à questão demográfica é subestimá-la e depois subalternizá-la (desqualificando a sua absoluta prioridade), reduzindo-a à retórica dos “desafios”, tão comum no discurso e na promessa política.

Dentro de dias os portugueses serão chamados a fazerem as suas opções políticas, das quais resultará uma nova composição da Assembleia da República e um futuro Governo nacional. Nestes momentos altos em qualquer sociedade democrática, nos quais se perspetiva o nosso futuro coletivo, renovado em cada novo ciclo legislativo, entendemos ser um dever cívico mobilizar os cidadãos, a começar pelos políticos, para o melindre da situação demográfica que vivemos. Consideramos que a questão da demografia em Portugal assenta em três transformações de grande impacto, embora diferenciado: o envelhecimento demográfico, o despovoamento territorial e a crescente existência de movimentos populacionais com incidência regional e resultantes de uma globalização para a qual não estamos preparados.

Estas transformações e as consequências colaterais que geram parecem-nos constituir a situação propulsora de muitas das questões sociais, económicas e políticas que enfrentamos. Uma sociedade que não se renova em termos populacionais não cresce e… envelhece. O definhamento e o envelhecimento já começaram há muito nos territórios mais desvitalizados (com o despovoamento de aldeias e vilas do interior), atingiram em cheio sistemas públicos como a educação (com menos alunos), a saúde (com mais utentes), a segurança social (com mais beneficiários), bateram à porta das empresas (menos mão-de-obra) e impactaram na economia (menos riqueza produzida pelo retraimento do PIB). Nas cidades, o envelhecimento populacional dos centros históricos põe em risco a sua sustentabilidade (que não se assegurará pelo alojamento local) e as necessidades de mão-de-obra nas zonas mais industriais e em muitos setores produtivos (agricultura, turismo) são gritantemente crescentes, mas a sua superação parece desordenada e, até, desumanizada.

A pior abordagem que podemos fazer à questão demográfica é subestimá-la e depois subalternizá-la (desqualificando a sua absoluta prioridade), reduzindo-a à retórica dos “desafios”, tão comum no discurso e na promessa política. Consideramos que não serão suficientes as medidas para uma transformação sustentável dos atuais níveis de reprodução (fecundidade), ou de mobilidade virada para o exterior (emigração), acenando com apoios na despesa da farmácia, cheques-educação, reduções de IMI ou outros paliativos. A questão demográfica tem uma natureza sistémica, que envolve condições de vida e outras dimensões subjetivas muito relevantes, e não deixou de ser também do foro cultural, ou seja, do modo como nos pensamos enquanto comunidade politicamente soberana e com um projeto de futuro.

Concretizemos. Os números disponibilizados pelo último Censo realçam de novo os saldos fisiológicos negativos resultantes de um maior número de óbitos e uma redução de nados vivos. O país pareceu surpreendido com uma redução de aproximadamente 200 mil pessoas em dez anos, com o aumento dos padrões de litoralização e de concentração urbana, com a redução da população jovem e ativa, com o aumento do número de idosos. Estas informações vêm na continuidade da tendência estrutural da população portuguesa. Em demografia falamos de “implosão demográfica”, que a manter-se a longo prazo determinará o seu definhamento, empobrecimento e questionará a nossa soberania.

É certo que não somos o único país onde o crescimento populacional tem vindo a ser consistentemente negativo e o envelhecimento progressivo. Registámos crescimento positivo em 2019 depois de uns anos de recessão, ao contrário de países como a Hungria, Roménia, Sérvia Bulgária, Grécia e até mesmo a Itália, entre outros (Eurostat). Mas esse crescimento de 2019 foi um epifenómeno, e acima de tudo não escondeu que em Portugal não há renovação geracional desde o início da década de 80 do século passado. Este é, porventura, o nosso maior défice que nenhum banco central pode cobrir. O crescimento resulta da diferença entre entradas e saídas populacionais, quer sejam nascimentos e óbitos, quer sejam emigrantes e imigrantes. No centro, a condicionar os movimentos populacionais, está a economia. E é aqui que gostaríamos de fazer este breve apontamento sobre a população portuguesa e as medidas políticas para os próximos anos.

No documento de enquadramento estratégico Portugal 2030, proposto pelo Governo em cessação de funções, na sua Agenda Temática em 4 eixos, fala-se da Sustentabilidade Demográfica (3.1.1.) em que é proposto “atenuar o declínio populacional e os efeitos do envelhecimento da população, promovendo a recuperação da natalidade e o aumento do saldo migratório”. Define ainda as medidas que considera necessárias para a sustentabilidade demográfica: melhoria das condições para o exercício da parentalidade, a conciliação da vida profissional e familiar, a promoção da empregabilidade e a qualidade do emprego dos jovens e dessa forma contribuir para a promoção da natalidade. Por fim, é referido “promover uma gestão ativa dos fluxos migratórios e promover a integração de imigrantes, de modo a contribuir para a sustentabilidade demográfica e territorial”.

Colocada a intenção desta forma, parece-nos que é adequada à dimensão problemática da demografia portuguesa, ou seja, à questão demográfica como a entendemos. Com efeito, é pela alteração da tendência de envelhecimento na base, aumentando a natalidade e a promoção de entrada de migrantes trabalhadores e a sua integração que se poderá afetar e reverter a tendência iniciada há muito. Consideramos que estes temas e ideias deveriam ser mais discutidos no debate público.

Do ponto de vista político, estamos perante dois objetivos cuja resolução não acontece por decreto. A promoção da natalidade é um objetivo difícil de atingir, uma vez que diz respeito à vida privada e ao livre arbítrio de cada um e exige investimento público e injeção de capital de esperança nas gerações em idade de procriar. A abertura à entrada de migrantes e à sua integração requer, por outro lado, orientações conjugadas e condições favoráveis da economia… e das mentalidades.

A questão da escassez populacional tem sido um dilema europeu ao longo dos tempos. Em França decorreram grandes debates sobre as políticas de promoção da natalidade em confronto com políticas de entrada e integração de migrantes. Hervé Le Bras, publicou Marianne et les lapins. L’obsession demographique, em que confronta as medidas adoptadas que privilegiam a promoção da natalidade. Marianne representa o Estado francês e os coelhos simbolizavam a reprodução rápida e intensa. O argumento centra-se na defesa de uma política promotora da imigração em detrimento da natalidade. O debate estendeu-se e foi aceso ao ponto de se associar o pró-natalismo das políticas à emergência dos movimentos nacionalistas e xenófobos que surgiram na política na década de 90. Relativamente à promoção da natalidade chegou-se a um consenso sobre a eficácia das medidas que poderão proporcionar às famílias um enquadramento mais adequado para a decisão de ter um filho ou mais um filho: o apoio maternal necessário nos primeiros anos de vida da criança. Mas aqui reside também uma dificuldade: Como intervir? Tornando as creches gratuitas? E que creches? Onde se localizam? Que garantias poderão ter as famílias da qualidade dos cuidados?

Várias outras iniciativas foram levadas a cabo, e, entre elas, também de forma eficaz, a proporcionalidade do abono de família. E chegamos a um outro dos aspectos centrais neste debate. A quem atribuir o abono de família? Será esta medida apenas corretiva das desigualdades sociais ou, por outro lado, representa um incentivo à natalidade? Em países com muito menos desigualdades sociais, como a Noruega ou a Suécia, que são também países com muitos recursos, esta poderá ser uma medida de promoção da natalidade. Porém, em Portugal, um país com grandes desigualdades, não podemos tratar por igual o que é diferente. Os abonos deverão ser atribuídos para minimizar as desigualdades sociais. Esta é uma questão que exige algum debate público.

Em Espanha, as Directrices Generales da Estrategia Nacional Frente ao Reto Demográfico, constituem um documento de 100 páginas, um verdadeiro programa de desenvolvimento económico-social e territorial que não dispensou um estudo (absolutamente crítico) sobre as perceções dos cidadãos relativas às questões demográficas. Um bom exemplo a seguir.

Em Portugal, a ausência de discussão pública sobre a questão demográfica motivou esta tomada de posição por parte da APD. O que continuamos a ver nos programas eleitorais dos nove partidos com representação parlamentar, e nos outros 12 que buscam esse estatuto, é uma escassez, ou mesmo vacuidade, de ideias mobilizadoras, de entendimento sobre a superação do “desafio” com mecanismos essencialmente monetários subsidiaristas (e isto nos partidos que se dedicam à questão demográfica, porque alguns nem a ela se referem).

Olhando para as projeções demográficas oficiais para os horizontes próximos, não enxergamos como poderemos vir a contrariar cenários de perda na ordem de 440 mil, 870 mil e quase um milhão e meio, respetivamente em 2030, 2040 e 2050. Mesmo considerando os movimentos migratórios, as perdas serão sempre volumosas, irreversíveis e insustentáveis em termos societais. Consideramos também que a chave imigratória para superar as nossas debilidades demográficas enfrenta outros problemas de grande amplitude e gravidade, que algumas ideologias não deixarão escapar.

Apelamos à consciência de políticos-decisores e cidadãos-eleitores: o que for feito hoje vai-se projetar no futuro. Discutir a nossa demografia é, acima de tudo, o passo necessário para o sobressalto cívico que a questão demográfica nos coloca. Paulo Machado Ana Fernandes Membros da Direção da Associação Portuguesa de Demografia

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