PS e PSD: o passado e o presente

Se Costa e Rio tiverem de negociar a viabilização do Governo de um ou de outro, estarão apenas a voltar, em parte, ao “caminho difícil” percorrido por Soares e Mota Pinto em 1983.

1. Águas passadas

PS e PSD reclamam, respectivamente, a herança da esquerda e da direita da social-democracia. Isso explica que, quando precisou de se coligar, o PSD o tenha “naturalmente” feito com outros partidos de direita. Mas quando, em 2015, o PS obteve o apoio parlamentar de partidos à sua esquerda para governar, toda a direita o acusou de atraiçoar o seu passado e de promover alianças “antinatura”. De facto, o PS já tinha governado em coligação com o CDS (em 1978), e com o PSD (no célebre “bloco central” Soares-Mota Pinto, de 1983-85), mas nunca com o apoio formal dos comunistas. Apesar da sua amizade com Mitterrand, que governou a França com o PCF, Mário Soares não o imitou em matéria de alianças. Por isso os socialistas-soaristas tanto criticaram, em 2015, a formação da “geringonça”.

O “anticomunismo” do PS (e vice-versa: o “anti-socialismo” do PCP) tinham-se extremado no PREC: os socialistas de Mário Soares aliaram-se, em 1975, a toda a direita, contra o heteróclito frentismo de esquerda hegemonizado pelo PCP de Álvaro Cunhal. Esse frentismo só se extinguiu a 25 de Novembro desse ano, com um segundo pronunciamento militar favorável à democracia representativa, ano e meio depois do de 25 de Abril de 1974. Desde então e até 2015, os dois partidos mantiveram-se em campos antagónicos.

2. Águas presentes

Estamos agora à beira das legislativas de Janeiro de 2022 e dir-me-ão que “o que lá vai, lá vai”, e que não é o momento de lembrar a História, quarenta e tantos anos depois da instauração da democracia, porque os contextos de então não se repetirão. No entanto, se, ao fim de seis anos de geringonça, o PS de Costa e o PSD de Rio tiverem de negociar a viabilização do governo minoritário de um ou de outro, estarão apenas a refazer um troço do “caminho difícil” percorrido em 1983 por Soares e Mota Pinto.

O acordo PS-PCP-BE de 2015 virou uma página da história política do Portugal democrático, abrindo o espaço da governação ao conjunto da esquerda parlamentar. Essa experiência redesenhou o “arco da governabilidade”, até então limitado a PS, PSD e CDS, e correu bem nos primeiros quatro anos, mas naufragou ao fim de mais dois. É possível que parte do actual PS se tenha cansado de ser refém dos seus parceiros minoritários e prefira voltar ao “centro” político.

Mas tudo indica, sejam quais forem os resultados de 30 de Janeiro, que terá de partilhar esse “centro” com o PSD, e nesse caso a herança histórica voltará a pesar: o PS dirá que é seu o “centro-esquerda”, o PSD que é seu o “centro-direita”. E novos lances baralham o jogo: Rio quer momentaneamente fazer crer que a amplitude do seu partido inclui o “centro-esquerda”, designação que Mota Pinto tentou evitar a todo o custo em 1983: queria que o governo que montou com Soares se chamasse apenas “de coligação”; mas “de centro-esquerda”, insistiu Soares. E assim ficou.

3. Águas futuras

A acreditar em Costa e em Rio, o “bloco central” não se repetirá. Mas os resultados eleitorais poderão impor um entendimento entre ambos que garanta a sobrevivência parlamentar do governo do mais votado. Se tal vier a acontecer – não exprimo aqui um desejo, mas sim uma probabilidade – é bom que os eleitores tenham entendido o que separa e aproxima os dois partidos, em vez de aceitarem uma campanha eleitoral ditada pelo marketing comunicacional, onde as “cassettes” de cada um repitam até à exaustão mensagens simplistas que distorcem as realidades do país:

A economia portuguesa está estagnada há vinte anos; a desigualdade litoral/interior acentuou-se; os salários médios estão cada vez mais perto dos mínimos; a pobreza encapotada galopa; o emprego jovem e qualificado continua a retrair-se; os efeitos (a curto prazo) da pandemia e o suicídio demográfico (a mais longo prazo) são incontornáveis; e a necessária reindustrialização do país não é comandada por projectos verdes suficientemente motores da economia nacional.

O que deve estar em discussão na campanha é o que fazer com os financiamentos a fundo perdido, ou resolúveis a longo prazo, que a UE criou para apoiar as economias nacionais em anos pós-pandémicos (oxalá!) -- ou seja, na próxima legislatura. Se for o PS a geri-los, será o Estado, motor da economia, o seu principal beneficiário, a par da relativa continuidade da política distributiva que sustentou os anos da geringonça. Se for o PSD, o apoio às empresas e à iniciativa privada tenderá a sobrepor-se ao “despesismo” estatal, tido por incapaz de produzir mais riqueza para o país. Boa parte do PSD partilha com os liberais a bandeira (reaganista e thatcheriana) “menos Estado, melhor Estado”, que o PS sempre rejeitou. Mas nem PS nem PSD têm avançado com programas que definam com clareza os seus caminhos. E, para o bem e para o mal, Portugal nunca experimentou a “terceira via” trabalhista de Tony Blair. O que preferirão os eleitores?

4. Por fim

Vai haver mais dinheiro para gastar. Mas em quê, com que prioridades, porquê e para quê? O “Plano de Recuperação e Resiliência” que Costa encomendou a um independente e depois adaptou, apontava tantas e tão diversas prioridades, que era mais um catálogo de ideias multimilionárias do que a definição de uma política. As recomendações da SEDES no seu 50.º aniversário poderiam ter oferecido a Rio as fundações do seu programa, mas limitaram-se a repetir generalidades que contrariam demasiados interesses instalados.

Costa garante a continuidade da prudente redistribuição de rendimentos, mas não desbrava caminhos que assegurem a produção de mais riqueza nacional. Rio promete uma baixa generalizada de impostos, mas adverte que ela será condicionada pelo crescimento da economia, sem o quantificar: quanto terá ela de crescer ao ano? 5%, 7%? E como?

Num caso como no outro, o eleitor desconhece as metas concretas que cada um visa atingir no próximo quadriénio. Ora, quanto menos disserem sobre o que pretendem alcançar e como, mais PS e PSD tornarão obscura a imagem do futuro. E a sociedade civil pouco contribui para apontar futuros, ao salmodiar ladainhas reivindicativos e queixas ressentidas.

Antes da pandemia os ter imposto, os financiamentos europeus já apontavam para uma massiva “reindustrialização verde”, indispensável para descarbonizar as economias e travar as alterações climáticas: foi essa a tónica do primeiro discurso de Ursula von der Leyen como presidente da Comissão Europeia, em Dezembro de 2019 - estava ainda a covid-19 a desencasular-se em Wuhan. Dois anos depois, os eleitores alemães sabem o que vai fazer a nova coligação no poder para garantir esse novo “desenvolvimentismo ecologista”. Em Portugal, bom seria ver eleito quem explique como alcançar tal objectivo, principal motor do “crescimento sustentável”. O país precisa de mais do que as euforias nascidas das últimas autárquicas ou o mero reconhecimento do trabalho feito no poder.

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