Se eu mandasse...
Quando eras pequena dizias que querias mandar. Quando te disse que podias mandar no teu quarto, bateste o pé e gritaste: “Mas eu quero mandar muito!”
Querida Mãe,
Hoje acordei chateada por não ser eu a mandar no universo...
Aqui ficam dez coisas que seriam assim se fosse eu a decidir!
- Ninguém se atrevia a dizer que o Pai Natal não existe.
- Não havia Trabalhos de Casa.
- Os fins-de-semana tinham três dias.
- As películas aderentes nunca ficavam semirasgadas e impossíveis de recuperar.
- A água do duche nunca, jamais, em tempo algum, ficaria fria a meio do banho.
- O açúcar fazia bem à saúde.
- Os dentes humanos eram como os dos coelhos, e cresciam sempre que fosse preciso.
- As caixas plásticas tinham todas medidas e formatos padrão e as tampas cabiam sempre.
- Era considerado absurdo andar com roupa engomada e com meias iguais.
- Seria impensável um professor não deixar os miúdos irem à casa de banho em aulas de 90 minutos... Melhor dizendo, não existiam aulas de 90 minutos.
E obviamente que não havia covid.
E a mãe? O que proibia?
Beijinhos
Ana,
Quando eras pequena dizias que querias mandar. Quando te disse que podias mandar no teu quarto, bateste o pé e gritaste: “Mas eu quero mandar muito!” Daí não ficar admirada com a carta que me escreveste. E aproveitando a boleia do teu surto de autoridade, além de subscrever as tuas interdições, proibia:
- O fecho das fronteiras. Quero que os teus irmãos celebrem connosco o Natal, e todos os emigrantes possam fazer o mesmo.
- Que as dobragens dos desenhos animados das crianças sejam feitas com aquelas vozes estridentes e artificiais. Tenho a certeza de que os soundbites destroem os miolos dos miúdos e dos adultos nas redondezas.
- Que os miúdos continuem a usar máscara ao ar livre na escola e fora dela. Sim, já sei das variantes, mas bolas, vacinaram-se eles, vacinámo-nos nós, e que pelo menos ao ar livre possam ver a cara uns dos outros.
- Que se diga a uma criança ou adolescente que tem de ter mil cuidados com a desinfecção das mãos, as máscaras, as companhias, porque senão pode “matar” o avô ou a avó.
- Que alguém entregue um presente, acrescentando: “Não sabia o que te havia de oferecer porque tens tudo!”
- Que se continue a contar que é o Menino Jesus que deixa os presentes no sapatinho — para isso é que serve o Pai Natal, porque o Menino Jesus não pode discriminar crianças ricas de crianças pobres.
- Festas de Natal das escolas em que são as educadoras/professoras que fazem tudo, tal o medo de que os meninos as deixem ficar mal se não forem perfeitos.
- TPCs para as férias. Perderam aprendizagens com a pandemia? Certo, mas eles precisam mesmo de descansar a cabeça, senão é que não aprendem nada.
- Os pais (e os avós) de entrarem em parafuso tal o medo de não ter o presente certo — ou suficientes! — para os seus meninos. Proibia-os também de dizerem aos filhos (e netos) que não querem que lhes ofereçam nada, ou de se contentarem com um desenho feito à pressa e sem empenho e cuidado.
- Os pais de terem medo de dar aos filhos tesouras, canivetes, martelos e “coisas perigosas”, como se os miúdos não fossem capazes de aprender a usá-los. Ah, e proibia ainda, de condicionarem os presentes dos avós — ia preso quem refilasse contra as filhoses cheias de açúcar ou contra o avô que oferece ao neto adolescente o seu berbequim favorito. Já para os pais que sugerem que os avós devem dar dinheiro aos netos, pedia a pena máxima.
Está bem assim? É que posso continuar até aos Vinte Mandamentos se quiseres?
Beijos
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.