As memórias das férias de Verão na terra: momentos irrepetíveis que se repetem ano após ano

Todos conhecemos o valor das memórias do Verão que, numa aldeia, ano após ano, é sempre igual e sempre diferente. Daí o prazer que dá ver os mais novos a criá-las, quando deambulam por terra quente, água fria. É que eles ainda não o sabem, mas mesmo que a vida mude, a estranha fraternidade que os passou a unir nestes dias resistirá ao tempo.

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São nove da noite e tenho a casa invadida de miúdos, dos 7 aos 17. São todos primos num grau que possivelmente já nem conta — o trisavô de uns era irmão do tetravô, trisavô e bisavô de outros (uma confusão…). Mas só o descobriram há um par de dias, muitas horas depois de já terem partilhado mergulhos, gelados e jogos.

Enchem a mesa — 1, 2, 3, 4… 10! — e o ar de gargalhadas. Excepto quando chega a comida e o silêncio torna-se quase sepulcral, não fruto de qualquer regra ou do sabor aprimorado da confecção, mas da necessidade de repor os estômagos. E, depois de tudo alimentado e da mesa arrumada, saem como uma espécie de tropa, a saborear cada momento como se fosse irrepetível, sem prestarem atenção a ecrãs ou a inseguranças e a guiarem-se pelas badaladas do relógio da torre da igreja para saberem as horas a que têm de marcar ponto junto dos pais ou dos avós.

Pelas ruas alcatroadas, outrora pavimentadas com pedras do rio trazidas pela força de gente que sonhava com melhores condições, o bando de primos recém-criado cruza-se com outras tropas e vão-se todos mesclando num mar de crianças e jovens que fazem desta pequena aldeia beirã, num planalto e sem segunda saída, caso raro no meio de um Interior desertificado: entre os muitos que habitam a aldeia e os que estão de visita “são mais que as mães”, constatamos. E mesmo os que já têm idade para escolher outros destinos continuam a guardar os últimos dias de Agosto para ficar por aqui, num calor que torna quase impossível sair à rua depois das 10 da manhã, a não ser para rumar aos vales, refrescados por ribeiras de água translúcida, a pedirem mergulhos, mas também passeios.

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Pé ante pé e com um pau a servir de apoio, lá vamos apalpando o caminho aquático para redescobrirmos recantos mágicos, mesmo com algumas aparatosas quedas à mistura, enquanto os cães que nos acompanham descobrem cheiros nunca antes sentidos e treinam as habilidades de natação, com mais ou menos sucesso (a minha pastora-alemã, que de água gosta muito pouco, teve de ir quase ao colo…).

O tal calor que nos impele a sair da aldeia durante o dia torna-se o nosso maior aliado à noite, que vamos vivendo com tantas risadas quanto os mais pequenos (acho mesmo que regressei com os abdominais mais firmes…). Curiosamente, com poucos saudosismos. Há histórias que se recordam, mas a cada noite que passa são criadas novas narrativas que não serão esquecidas, ao mesmo tempo que se ruma à panificadora, com fornadas de pães e bolos a sair, e alguém abre a casa para se assar uma chouriça ou para cortar um queijo. E nem a ausência das festas, determinada por conta da pandemia, esmorece o espírito, que se vai alimentando de boa disposição e voltando quase ao ritmo biológico, num imenso respeito pelo tempo. Aqui percebemos, ano após ano: não vale a pena ter pressas.

Os mais novos ainda não o sabem, mas mesmo que não voltem a viver as experiências que tanto prazer lhes deu este ano, a estranha fraternidade que os passou a unir resistirá aos anos de crescimento – e ainda os aguarda muitos outros momentos tão irrepetíveis quanto os primeiros. Inclusivamente quando com esta felicidade genuína vem algum sofrimento: o fim das férias “na terra” (confesso que por muitos anos achava que a aldeia se chamava “a terra” — não censurem: ainda não sabia ler!) é marcado por semblantes carregados e algumas lágrimas (baba e ranho, foi o que foi!), com os primeiros dias de regresso a casa a saberem a pouco depois de um tanto que só se repetirá daqui a um longo e cansativo ano.

Daqui a um ano, os relógios voltarão a parar, os telemóveis a silenciar (a verdade é que a maioria das vezes não há sequer rede móvel e qualquer avaria, que nos grandes centros urbanos demoraria horas a resolver, aqui leva dias), as notícias deixarão de existir (se tudo correr bem em termos de incêndios para aqueles lados, fustigados em 2017) e os nossos corpos voltarão a ganhar raízes numa aldeia que mesmo já não sendo nossa de nascimento continua a ser aquela a que chamamos de “a terra”.

Que terra é a minha? Nem é relevante para o caso. É Portugal, para além das cidades e da costa turística, esse Portugal que por vezes parece esquecido, que por vezes só parece ser lembrado neste nosso querido mês de Agosto. Uma terra que é apenas um pequeno retalho de uma composta e extraordinária manta.

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