Trump pediu ao Departamento de Justiça que mentisse sobre vitória de Biden

Ex-Presidente dos EUA pressionou os líderes do departamento para dizerem que a eleição presidencial foi viciada, mesmo depois de o procurador-geral ter anunciado que não havia provas de fraude.

Foto
Donald Trump a discursar para os seus apoiantes no dia da invasão do Capitólio Reuters/JIM BOURG

No final de Dezembro de 2020, numa altura em que os tribunais dos EUA já tinham desmontado as queixas de fraude lançadas por Donald Trump, e a poucos dias de o Congresso carimbar a vitória de Joe Biden na eleição presidencial, o então Presidente norte-americano telefonou aos responsáveis máximos do Departamento de Justiça para fazer um pedido: “Basta declararem que a eleição foi viciada e deixem o resto comigo”, disse Trump, de acordo com as notas do procurador-geral-adjunto da altura, Richard Donoghue, reveladas esta sexta-feira pelo New York Times.

Na altura do telefonema, a 27 de Dezembro de 2020, Donoghue estava há poucos dias no cargo de n.º 2 do Departamento de Justiça, e tanto ele como o seu superior directo, Jeffrey Rosen, tinham sido promovidos interinamente.

Duas semanas antes, a 14 de Dezembro, na noite em que o Colégio Eleitoral confirmou a vitória de Joe Biden na eleição presidencial, Trump anunciou no Twitter que o procurador-geral William Barr estava de saída. Barr, que ainda ficaria na liderança do Departamento de Justiça até 23 de Dezembro, tinha revelado, numa entrevista à Associated Press, que a sua equipa não encontrara nenhuma prova de manipulação eleitoral a favor de Joe Biden.

Mesmo depois das garantias dadas por Barr — um procurador-geral que tinha sido acusado pelos seus críticos, durante quase dois anos, de usar o Departamento de Justiça dos EUA para favorecer a Casa Branca —, Trump continuou a insistir nas acusações de fraude e telefonou aos novos responsáveis no dia 27 de Dezembro.

"Informação falsa"

Os pormenores dessa conversa telefónica surgem nos apontamentos que Richard Donoghue enviou, por ordem da actual liderança do Departamento de Justiça, à Comissão de Supervisão e Reformas da Câmara dos Representantes, que está a investigar os esforços de Trump para reverter o resultado da eleição presidencial de Novembro de 2020.

Nos apontamentos dessa reunião, o então procurador-geral-adjunto deixou registado que se opôs à pressão do Presidente Trump para que o Departamento de Justiça fizesse um anúncio que não correspondia à verdade — ou seja, que ele, ou o seu superior directo, declarassem publicamente que a eleição tinha sido viciada.

“Muita da informação que lhe fazem chegar é falsa”, disse Donoghue a Trump, segundo as notas reveladas pelo New York Times. “O Departamento [de Justiça] fez dezenas de investigações e falou com centenas de pessoas”, disse o responsável. “Investigámos as alegações e não encontrámos nada.”

Perante a insistência de Trump, os responsáveis disseram que o Departamento de Justiça não tinha condições para apoiar uma queixa em tribunal contra o resultado das eleições. “Não temos provas. Só podemos agir com provas”, disse Donoghue. 

Como Presidente dos EUA, Trump era o responsável máximo do Departamento de Justiça e, em teoria, podia dar instruções para o caminho a seguir nas investigações. Mas o Departamento de Justiça é visto como um órgão muito mais independente da Casa Branca do que outros departamentos na estrutura do governo norte-americano, como a Saúde ou a Segurança Interna.

A tradição de independência, principalmente na forma como as investigações criminais são decididas e conduzidas pelo Departamento de Justiça, remonta ao período do escândalo de Watergate, na década de 1970.

A 20 de Outubro de 1973, num episódio que ficou conhecido como Saturday Night Massacre (o massacre de sábado à noite), Nixon ordenou ao procurador-geral, Elliot Richardson, e depois ao seu n.º 2, William Ruckelshaus, que despedissem o procurador especial do escândalo de Watergate, Archibald Cox. Os dois responsáveis recusaram-se a cumprir a ordem de Nixon e demitiram-se na mesma noite.

Em Dezembro de 2020, mesmo que o Departamento de Justiça tivesse declarado que a eleição presidencial tinha sido viciada, o processo de certificação da vitória de Joe Biden não sofreria alterações, ainda que o anúncio pudesse ser usado para alimentar ainda mais a fúria dos apoiantes de Donald Trump.

Nas semanas anteriores ao telefonema, os 50 estados norte-americanos tinham certificado os respectivos resultados; o Colégio Eleitoral tinha votado e confirmado os resultados de cada estado; e o Supremo Tribunal dos EUA tinha rejeitado uma derradeira tentativa de apoiantes de Trump para impedir a confirmação da vitória de Biden.

Faltava apenas a cerimónia de certificação de todo o processo, marcada para 6 de Janeiro de 2021.

Nesse dia, centenas de apoiantes de Trump invadiram o edifício onde funcionam as duas câmaras do Congresso, em Washington D.C., depois de uma manifestação em que o ex-Presidente dos EUA lhes pediu para marcharem até ao Capitólio. O objectivo do protesto violento era impedir que as duas câmaras do Congresso dos EUA pusessem o carimbo final na vitória de Biden.

Sugerir correcção
Ler 9 comentários