O coração da Dinamarca

O Eriksen é apenas um coração, e a medicina é apenas uma de muitas profissões que tocam na vida das pessoas e mantêm corações a bater. Dia 20 de Junho assinala-se o Dia Mundial do Refugiado.

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LUSA/Friedemann Vogel / POOL

Parou ou não parou? Ficamos na dúvida. Eu diria que parou, mas espero que volte a bater. Mas já aqui volto, primeiro falemos de Eriksen. Gostava que as pessoas se conseguissem despir do enquadramento do caso que nos impressionou a todos. Retirem-lhe a televisão em directo, retirem a importância da fase final de um campeonato da Europa, e retirem a estrela de um clube milionário italiano e camisola 10 da selecção dinamarquesa. O que sobra é o mais importante, um homem de 29 anos, saudável que sofreu de uma arritmia cardíaca, em que por momentos o coração de Eriksen deixou de alimentar o seu cérebro e os seus músculos, o que o fez cair desamparado, e não fosse a pronta intervenção da equipa médica da Dinamarca e talvez o coração de Eriksen ficasse parado para sempre.

Não vejo qualquer heroísmo ou endeusamento na intervenção da equipa médica. Fizeram o que são treinados para fazer, fizeram o que tinham a fazer. Fizeram o que milhares de médicos fazem a toda a hora, mas sem holofotes. É uma profissão bonita? É. É uma profissão que toca na vida das pessoas. É um aglomerado de gestos e conhecimentos que permitem que um coração que estava quase a parar, continue a bater. Mas o Eriksen é apenas um coração, e a medicina é apenas uma de muitas profissões que tocam na vida das pessoas e mantêm corações a bater.

O mundo emocionou-se com a Dinamarca, mas o coração da Dinamarca parou. A Dinamarca é o primeiro país europeu que considera a Síria um país seguro para se viver, e com isso vê-se no direito de deportar centenas de famílias de volta ao campo de batalha mais mortífero dos últimos anos. Nem com as mortes no Mediterrâneo, os milhões de refugiados nos países vizinhos, Turquia, Líbano, Jordânia, e os milhares nas ilhas gregas, os corações dinamarqueses consideram o direito a asilo aos sírios que fogem das bombas do seu querido ditador e dos grupos radicais islâmicos.

O mundo olha atentamente para ver um coração voltar a bater e chama de heróis os que exerceram os seus saberes para o efeito, mas ao mesmo tempo, consegue fingir que não vê os dinamarqueses que também numa mistura de gestos e aplicação de conhecimentos atiram centenas de corações para a fogueira da guerra.

Eu sou super apaixonado por futebol, mas para mim um homem com 29 anos, é tudo isso e só isso, um homem, uma pessoa. E não consigo perceber como é que conseguimos glorificar uma vida, e desprezar os 82,4 milhões de refugiados que hoje “celebram” o seu dia, por guerras, pobreza extrema, alterações climáticas, insegurança alimentar e discriminação.

Pensem quantos Noahs continuam perdidos das suas casas neste momento...

E sim, todos nós sabemos e podemos pôr corações a bater novamente, porque o único heroísmo é o humanismo, e o seu exercício é de uma simplicidade sublime. Basta pensar que todos os corações são feitos do mesmo material que os faz bater... E por vezes parar.

Celebramos o direito a viver, sem a morte à espreita a cada esquina.

Parou ou não parou o coração da Dinamarca?

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