O valor do trabalho e do capital – O que escondem os números

Alguém acredita que o salário dos trabalhadores reflete o valor e o contributo que fornecem à sociedade? E, como nos mostra a Irlanda, é possível acreditar que o PIB reflete as condições de vida da população?

Os economistas assumem que o salário que recebemos retrata o nosso contributo produtivo e, portanto, indiretamente, o nosso valor. Assim, 25% dos portugueses “valem” o salário mínimo, 665 euros por mês, enquanto 1% “valem” 13.000 euros mensais. Alguém acredita que o salário dos trabalhadores reflete o valor e o contributo que fornecem à sociedade? A Irlanda foi o único país da UE cujo PIB cresceu em 2020 (aumentou 2,2%, enquanto o PIB dos países da UE regredia em média 10%) quando o consumo dos irlandeses diminuiu 9% e o desemprego aumentou. O PIB irlandês cresceu porque 45% dele se deve aos lucros gerados pelas empresas multinacionais, entre as quais as GAFAM e as grandes farmacêuticas, que operam na Irlanda para beneficiar da taxa de 12,5% de imposto, cerca de metade da dos outros países. É possível acreditar que o PIB reflete as condições de vida da população?

Como se fixa o preço do trabalho e como medir o seu valor

O salário de um trabalhador depende, dizem os manuais de economia, da sua produtividade, ou seja, da sua contribuição produtiva, que supostamente aumenta com o nível de educação e de experiência. O salário também é determinado pelos mecanismos do mercado de trabalho, ou seja, pelo facto de haver muita ou pouca oferta face à procura. O verdadeiro critério de seleção dos alunos que se formam nas profissões com os salários mais elevados é a matemática. Simplificando, pode-se dizer que o salário recompensa o mérito, e considera-se que quem tem mais mérito é sobretudo quem sabe de matemática.

Os trabalhadores essenciais, que têm assegurado o funcionamento das sociedades e a satisfação das nossas necessidades vitais – saúde, limpeza dos hospitais, remoção do lixo, supermercados, lares de idosos –, têm muito poucas competências escolares, e há muitas pessoas nestas condições. Apesar de o trabalho que fazem nos permitir, literalmente, estarmos vivos, o seu salário é então baixo. Aliás, os mecanismos de mercado não são de confiar: não há portugueses que queiram trabalhar na apanha da cereja, maçã, uva e azeitona, mas essas profissões também são muito mal pagas.

“Tenho de pagar quanto?”, perguntou um trabalhador indiano ao seu empregador (notícia do PÚBLICO). O que comemos é em boa parte produzido por mão-de-obra estrangeira, a qual é explorada e sujeita a máfias, como foi revelado nas últimas semanas. Há pessoas hoje que devem pagar para, durante uns meses, receber umas centenas de euros a produzir a nossa alimentação. Há outras pessoas que ganham 15.000 euros por mês porque sabem lidar com big data.

Baseando-se num método singular, a New Economic Foundation analisou o valor social e ambiental de seis profissões, três bem pagas e três mal pagas. O método é estranho, mas o exercício e os resultados são interessantes: um bancário da City de Londres destrói sete euros de valor social por cada euro que ganha; uma educadora de infância e uma empregada de limpeza num hospital geram entre oito e dez  euros por cada euro ganho; um perito fiscal destrói 47 euros de valor social por cada euro ganho – porque a sua principal função é a de ajudar a não pagar impostos.

Há uma frase célebre de Kant: “O que tem valor não tem preço.” Ok. Mas deixemos lá estas máximas morais típicas do patriarcado, diriam as filósofas feministas, e cuidemos das pessoas: o contributo vital da maioria dos trabalhadores que são mal pagos merece obviamente ser reconhecido e recompensado. Os salários deveriam estar de alguma forma relacionados com o valor social e ambiental que os trabalhadores fornecem.

No limite da farsa estatística

A Irlanda é um caso exemplar de algumas das incongruências que caracterizam o capitalismo contemporâneo: o indicador do PIB está a deixar de ter sentido económico (para além de não contabilizar as degradações sociais e ambientais); as multinacionais tecnológicas estão a dominar o mundo económico; essas multinacionais não têm qualquer efeito significativo de arrastamento da atividade económica, contrariamente às empresas da era do petróleo; a desconexão entre a esfera financeira e a economia real está a ficar alarmante (veja-se a evolução das cotações das Bolsas). Os números da economia estão a ficar vazios.

O jurista Alain Supiot denunciou os efeitos desastrosos do “governo pelos números”, que leva o Direito – as leis – a ser posto ao serviço de interesses económicos. Os países competem entre si através de leis fiscais, leis do trabalho, (des)regulações várias para atrair investimento, como faz a Irlanda. Neste contexto, o plano de Biden para fixar um imposto mínimo de 21% sobre as empresas é profundamente pertinente. Os países têm de ser desincentivados de usarem as leis para competirem entre si, e as leis têm de voltar a cumprir a função para que foram concebidas: zelar por valores humanos e pelo bem comum.

Gael Giraud, um economista que muito aprecio, disse que, melhor do que dizer mal do capitalismo é combatê-lo no terreno do desejo. Ora, qual é a alternativa desejável, estimulante, entusiasmante, que se propõe? Já aqui expus a minha opinião: uma alternativa que intensifique os laços sociais em vez de os desmantelar, e que promova o restabelecimento da nossa relação com a natureza. Isso requer passar de uma moral do mérito para uma ética contributiva. Não sei como se faz, mas vou procurar.

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