Em busca da fraternidade perdida

As elites, políticas em particular, têm de recuperar o sentido do interesse geral e lutar contra o desaparecimento da perceção de um destino comum.

As sociedades contemporâneas menosprezam o nosso mundo comum — o planeta Terra — e os seus habitantes refugiam-se em si mesmos, disse Hannah Arendt há setenta anos. O que diria ela hoje, face ao estado de progressiva degradação do planeta e às sociedades self-service — em que cada um está concentrado no serviço de si próprio? Vou aqui comentar a medida em que o Direito, sob influência da teoria económica dominante, contribui para a deserção do mundo comum denunciada pela filósofa alemã.

Um direito do trabalho sem fraternidade

Revisitando o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, a fraternidade, salienta o jurista Alain Supiot, tem como objeto a comunidade e não os indivíduos, contrariamente aos outros dois princípios. Ora, ela está ausente do direito social e do direito do trabalho, os quais são precisamente supostos zelar pelos laços sociais. De facto, a fraternidade caracteriza-se por ser baseada num sentimento de pertença a uma comunidade, na partilha de valores comuns; é essa lei comum que cimenta a comunidade. Os valores partilhados unem os seres humanos porque os obrigam a respeitarem-se uns aos outros e facultam-lhes a perceção de um destino comum.

A fraternidade é assim de natureza afetiva; não está fundada na razão nem na existência de interesses racionais. A fraternidade consiste numa abertura ao outro enquanto os interesses racionais envolvem calcular o que é melhor para si. Ora, as sociedades modernas tendem inexoravelmente a alicerçar o direito em considerações racionais, despojando-o de qualquer conteúdo afetivo. Deste modo, a única comunidade reconhecida pelo direito do trabalho é a comunidade de interesses, sendo os interesses (salários, horários, estatuto, etc.) considerados como o que liga e aproxima os indivíduos. Fala-se, por exemplo, de “comunidades profissionais”. Aliás e importantemente, essas comunidades podem ser tanto de fraternidade de afeto e conciliação como de fraternidade de combate e exclusão, caso das lutas sindicais.

Mas, se não há grupo para além de grupos de interesses, como salvar o princípio de fraternidade e fundar uma comunidade social e política baseada em valores partilhados que permitam construir coletivamente um futuro? Supiot descreve como a noção de fraternidade, em direito nacional e supranacional, foi progressivamente substituída pela noção de solidariedade, assente na interdependência que de facto existe entre os membros de uma sociedade, e mais recentemente ainda, passou-se de solidariedade para coesão social, noção essa desprovida de qualquer tonalidade afetiva.

Outras fraternidades destruídas

Nas suas aulas no Collège de France, Supiot mostra que o direito está a ser posto ao serviço dos interesses individuais, está a tornar-se um instrumento do “Mercado Total”. Contaminadas pela teoria económica dominante, as instâncias de produção de leis substituíram a ideia de fraternidade pela lei da natureza, que dá precedência ao mais forte sobre o mais fraco, ignorando o seu potencial mortífero. Os países competem hoje entre si para atrair investimento através de leis fiscais favoráveis, leis do trabalho cómodas e (des)regulações várias, instituindo um mercado mundial de normas em que as leis competem entre si, em vez de estarem ao serviço do interesse geral.

O exemplo talvez mais escandaloso deste desvirtuar do direito são os tribunais arbitrais internacionais, um sistema através do qual os investidores (empresas multinacionais) podem processar estados nacionais, perante tribunais privados, por considerar os seus direitos económicos violados. Atualmente, a proteção legal de investimento direto estrangeiro é garantida por uma rede de mais de 2750 tratados bilaterais de investimento (no quadro da OMC, do CETA, etc.), tratados que estabelecem direitos para as empresas (investimentos em atividades económicas lucrativas) quase sem contrapartida em termos de obrigações.

Vários escritórios internacionais de advocacia estão neste momento a considerar processar, com base nesses tratados, vários estados pelas perdas sofridas por causa das medidas sanitárias relacionadas com a covid-19. Ao ponto de alguns economistas (Jeffrey Sachs) terem lançado uma moratória que impeça ações judiciárias relacionadas com o coronavírus e que garanta que os governos tenham efetivamente soberania para proteger os cidadãos e combater a pandemia.

Concluindo

A atual crise pandémica deveria levar-nos a questionar profundamente a legitimidade de sistemas legais, ou de sistemas paralelos em que protagonistas privados têm mais poder do que os estados-nação, que favorecem as entidades mais poderosas. Os cidadãos sentem uma tal carência de proteção que muitos grupos desprivilegiados anseiam por regimes e líderes fortes. O facto de as nossas sociedades não terem estado à altura dos valores que supostamente promovem, nomeadamente a fraternidade, pode explicar os movimentos populistas que lutam contra o dever de proteger os outros (luta contra o Obamacare nos Estados-Unidos, contra certos direitos das mulheres nalguns países europeus, etc.). Os valores humanistas nunca foram tão desacreditados.

O direito deve permanecer um instrumento, sob controlo dos estados-nação e de entidades multilaterais (dada a inevitabilidade da regulação multilateral para garantir a dignidade no trabalho, a proteção do ambiente. etc.), que esteja acima dos interesses individuais. As elites, políticas em particular, têm de recuperar o sentido do interesse geral e lutar contra o desaparecimento da perceção de um destino comum.

Os seres humanos definem-se e amadurecem relacionando-se uns com os outros, estabelecendo relações sempre afetivamente conotadas, nunca em total autonomia. Somos o resultado do exercício da nossa razão tanto como da experiência das nossas paixões. José Tolentino Mendonça afirma: “Uma das crises mais graves da nossa época é a separação entre conhecimento e amor.” Entrelaçar conhecimento com fraternidade seria, sim, civilização.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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