Um ano incomparável

O sistema ficou ainda menos coeso do que era. Por isso, esperemos que o contexto pandémico seja mesmo um período singular e não o início de um novo caminho que agrave ainda mais as desigualdades.

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Paulo Pimenta

O ano de 2020, assim como o de 2021, será incomparável a vários níveis na área da educação, na sequência do contexto de pandemia. Não é que seja justificação para tudo, mas a situação em que decorreu o 3.º período, apesar do apressado regresso do secundário às aulas presenciais a 18 de Maio, veio acentuar alguns dos traços do nosso sistema de ensino, não apenas entre a tradicional clivagem público/privado, mas de igual modo entre os vários ritmos da rede pública. Resta saber até que ponto isso teve reflexo nos rankings feitos com base nos resultados dos exames nacionais do ensino secundário.

Embora se tenha falado mais no acentuar das desigualdades que implicou o regime não presencial para os alunos do básico, o ensino secundário não ficou imune a essas circunstâncias anómalas e singulares. Por isso, é interessante ver até que ponto os efeitos da pandemia podem ter ajudado (ou não) a alguma reconfiguração da hierarquia dos resultados no ensino público e no privado, mais do que da relação entre os dois sectores. Num primeiro olhar, não se verificou uma transformação radical do panorama, apenas se constatando que alguns recém-chegados ganharam de imediato um papel de destaque no campeonato dos colégios privados, enquanto nas escolas públicas apenas se constata uma ligeira reorganização na seriação dos nomes do costume. Na base da tabela, também há muitos nomes a repetir-se, com ou sem pandemia.

Mas não foram só os efeitos do recurso ao regime não presencial que tornaram o ano de 2020 singular em relação a tudo o que antecedeu. A aplicação da lógica de “autonomia e flexibilidade” à gestão do currículo e dos conteúdos programáticos, tanto como as dificuldades da situação de emergência pandémica, levaram à necessidade de adaptar a estrutura dos exames, porque se tornava impossível garantir alguma equidade a alunos que podiam ter visto as suas aulas interrompidas em diferentes pontos dos programas.

As regras específicas que foram criadas (exames só para quem deles precisasse para o acesso ao ensino superior e um modo de classificação que permitia não serem contabilizadas várias questões em que os alunos tivessem mais baixa cotação) fizeram com que não tenha muito sentido comparar os resultados dos exames nacionais de 2020 com os dos anos anteriores. Foram feitos por menos alunos, quase exclusivamente pelos que tinham o objectivo de entrar na universidade, e muitas questões erradas ou feitas de forma menos correcta não contaram para a classificação final.

Isso traduziu-se numa elevação generalizada dos resultados, sem que se tivesse necessariamente verificado uma melhoria do desempenho dos alunos. Apenas se usou uma metodologia diferente na classificação que permitiu a mesma classificação a quem acertou todas as questões e a quem falhou 10% ou mesmo 20% das questões. Houve quem tivesse 20 valores em provas nas quais errou várias perguntas, pelo que a inflação de notas máximas foi uma evidência. É preciso ir além da 400.ª posição para se encontrar, no conjunto dos principais oito exames, uma escola em que a nota máxima não tenha ultrapassado os 19 valores. E em apenas 13 foi inferior a 18 valores.

Como se distribuíram os efeitos destas medidas pelo sistema de ensino é algo que está por apurar. Será que estas medidas permitiram resultados mais homogéneos, ao elevar os mais baixos e reduzindo o desfasamento entre o topo e a base? A lógica diz-nos que sim, mas é necessário fazer uma análise detalhada dos resultados. Usando os indicadores mais óbvios, numa aproximação aos dados disponíveis no momento em que escrevo, percebe-se que, em 2020, 35 escolas ultrapassaram o resultado médio (15,47 valores) da que ficou em primeiro lugar na seriação de 2019. A média mais elevada subiu mais de 3,5 valores.

Quanto aos resultados mais baixos, em 2019, 192 em 583 escolas (32,9%) tiveram uma média inferior a 10 valores, enquanto em 2020 foram apenas seis em 629 (1%). No entanto, a diferença entre a média mais elevada e a mais baixa passou de 8,24 para 9,48 valores. O “sucesso” aumentou, mas as desigualdades também. Ou seja, criou-se uma sensação positiva com o aumento das “médias”, mas as disparidades cresceram. Quem já tinha bons resultados ganhou mais com as novas regras do que os tradicionalmente desfavorecidos. O sistema ficou ainda menos coeso do que era. Por isso, esperemos que o contexto pandémico seja mesmo um período singular e não o início de um novo caminho que agrave ainda mais as desigualdades.

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