Cecília Meireles sobre o Novo Banco: “Foi tudo feito debaixo do pano”

A deputada do CDS está convencida de que o processo do Novo Banco foi “feito para ser opaco”. E culpa também a Comissão Europeia, cuja posição, critica, não defende o “erário e os contribuintes” portugueses.

Cecília Meireles diz que o CDS se vai opor a nova injecção de capital no Novo Banco enquanto os “incumprimentos contratuais” que a auditoria do Tribunal de Contas identificou não forem sanados. A entrevista pode ser ouvida às 23h na Renascença.

Parece ter assustado Luís Filipe Vieira quando lhe disse que ele era o segundo maior devedor do Novo Banco. Surpreendeu-a a reacção?
Surpreendeu-me, no sentido em que me pareceu inusitado. Habituei-me, nas comissões de inquérito, a lidar com o inusitado e com as reacções mais inacreditáveis. À pergunta tão simples ‘quanto é que deve ao Novo Banco?’ vemos que, muitas vezes, os devedores não conseguem responder. Não sabem a ordem de grandeza da dívida. 

É tão grande, tão grande que...
Não há um sentimento de responsabilidade. Acho normal que, quando se vai para uma comissão de inquérito, se levem as coisas a sério. Eu nem dei uma informação que fosse uma novidade com os dados que são públicos. A absoluta leveza com que se fala de centenas de milhões de euros, como se não fossem responsabilidade de ninguém, é surpreendente, no mau sentido. Mais do que surpreendente, diria que é chocante. É de uma absoluta leviandade falar de dívidas de centenas de milhões que contribuíram para a ruína de vários bancos.

Já na Caixa Geral de Depósitos vimos isto... Desde as faltas de memória até aos desconhecimentos, até às pessoas que não têm património – o que não foi o caso de Luís Filipe Vieira, mas já foi o caso em outros momentos. É sempre chocante.

O mesmo Luís Filipe Vieira disse que quem assinou o contrato de venda do Novo Banco devia ser “enforcado”. Suponho que não partilha desta opinião, mas, do que se vai sabendo, como fica a imagem do actual governador do Banco de Portugal, ex-ministro das Finanças?
Há várias responsabilidades. Não me parece que quem está na posição de grande devedor deva tecer críticas, muito menos nesses moldes, que não me parecem adequados a ninguém. Isto dito, a situação do governador do Banco de Portugal é extraordinariamente frágil. Isto era um acidente à espera de acontecer.

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José Fernandes

Quando Mário Centeno é nomeado governador do Banco de Portugal, já se sabia que ele era o principal responsável pela venda do Novo Banco. Aquilo que foi dito na altura pelo primeiro-ministro, de que não haveria qualquer impacto directo ou indirecto no erário, era flagrantemente falso. E quando se põe a mesma pessoa por um lado a ser supervisor e por outro defensor de uma decisão política que tomou num passado recente e tem impacto na supervisão... Vamos ser francos: o Tribunal de Contas (TdC) dizia isto... Não tem a ver com as pessoas estarem a defender interesses contraditórios, tem a ver com o facto de estarem numa situação de incompatibilidade.

O interesse do Governo de Portugal, como é óbvio, é que a estabilidade do sistema financeiro seja obtida com o mínimo recurso ao erário. Ou seja, é gastar o mínimo dinheiro possível para que o banco sobreviva. O interesse do supervisor é que o banco esteja o mais capitalizado possível. São dois interesses contraditórios! E a mesma pessoa, ao pôr-se numa posição e noutra – ao ter que, enquanto governador, defender o seu passado como ministro das Finanças – coloca-se numa situação difícil. Perante uma auditoria do TdC que diz coisas muito graves – que o financiamento, é óbvio, é público; o funcionamento desequilibrado do que foi contratado no mecanismo de capital contingente; que há incumprimentos contratuais; que o Fundo de Resolução não está a verificar aquilo que deveria verificar –, o que o governador do Banco de Portugal tem para dizer é que foi salvaguardada a estabilidade do sistema financeiro. Não dá sequer uma resposta material. Ainda está com o “chip” de ministro, que é: ‘Qual é a narrativa? É preciso controlar a narrativa’. Não é preciso controlar a narrativa, é preciso é dar explicações! 

Aquilo a que assistimos foi Centeno-governador a defender Centeno-ministro?
Claro. E isto era previsível que fosse acontecer. Acho que foi Centeno-governador a defender Centeno-ministro e Centeno-governador a defender António Costa-primeiro-ministro. O decisor último foi o primeiro-ministro. A frase mais clamorosa deste processo todo é do primeiro-ministro, a de que não iria haver impacto directo ou indirecto nos contribuintes. O TdC vem dizê-lo, mas isso nós já sabíamos.

Claro que se todos os anos há uma injecção do Fundo de Resolução e o Fundo de Resolução vive de empréstimos que o Estado lhe dá, é evidente que há financiamento público. Agora, o “mecanismo de capital contingente” – é um “palavrão” usado para designar o mecanismo através do qual o Fundo de Resolução tem que pôr dinheiro no Novo Banco – é, em si, desequilibrado. E isso o TdC vem dizer e merecia uma explicação, porque o Governo aceitou e negociou esta venda. 

Acha que a auditoria valida uma nova injecção no Novo Banco ou não?
Não. A auditoria identifica incumprimentos contratuais. O primeiro-ministro tem de vir dar explicações. Tem de dar explicações acerca das garantias de que não haveria financiamento público e tem de dar outro tipo de explicações. O primeiro-ministro, aquando da aprovação do Orçamento, disse que os contratos são para cumprir. E agora vem o TdC e explica que o Fundo de Resolução não está a fiscalizar como devia se o Novo Banco está a cumprir ou não. Não é só do lado do Estado que os contratos são para cumprir, é também do lado do Novo Banco. Como também tem de explicar algumas coisas sobre este “mecanismo de capital contingente”.

Eu já nem vou ao facto de o contrato que o Estado português tem de cumprir só estar redigido em inglês. Acho que o mínimo que se pode pedir é que, quando se vincula o Estado a um contrato, este esteja em língua portuguesa. 

Explique-nos o que é o “mecanismo de capital contingente”...
O “mecanismo de capital contingente” é um mecanismo que diz que, se o capital do Novo Banco descer abaixo de um determinado limite e houver perdas num conjunto de activos, então o Estado tem de repor o capital, tem de fazer uma entrada de dinheiro. Este mecanismo sempre foi suposto funcionar com o Estado a meter dinheiro no Novo Banco. É evidente que, se o Estado diz ao Novo Banco ‘meus senhores, se perderem dinheiro em determinados activos nos próximos anos e o vosso rácio de capital descer abaixo de determinados limites, nós aqui estamos, nós pomos o dinheiro... Se isso acontecer, daqui a dez anos, daqui a 15 anos, se os senhores quiserem correr o risco de recuperar esses activos, o risco corre por vossa conta, porque nós nessa altura já não vamos meter dinheiro”..., é evidente que os incentivos estão todos lá para que isto seja utilizado ao máximo.

O incentivo está lá para que o Novo Banco queira resolver o máximo possível de crédito malparado neste momento. E como se resolve rapidamente um problema de crédito malparado? Vende-se ao preço que alguém estiver disponível para pagar. A própria Comissão Europeia, não tenho dúvidas, pressionou para que isto acontecesse, porque quer tirar o crédito malparado dos bancos portugueses. O que eu não percebo é porque é que não foi dito com transparência aos portugueses “este banco vai custar mais 4 mil milhões de euros”. Ou pagávamos agora ou nos próximos cinco anos. Escolhemos pagar nos próximos cinco anos. 

O CDS vai-se opor a nova injecção?
Enquanto o TdC não acautelar que está a haver cumprimento, nós evidentemente não podemos aceitar a lógica de cumprir contratos. Se os incumprimentos que o TdC invoca forem sanados, obviamente temos que também tirar daí consequências. 

Mas o Banco de Portugal disse que foram sanados...
O Banco de Portugal é parte, o TdC é um tribunal... Que eu saiba, o Banco de Portugal ainda não é um tribunal. Sendo justa, eu acho que incumprimentos são sanáveis. Mas enquanto houver dúvidas e sobretudo enquanto não houver explicações, acho difícil [aceitar nova injecção]. Mas eu também não acho aceitável que o primeiro-ministro ao mesmo tempo diga “está aqui um mecanismo mas não vai ser utilizado” e que depois venha dizer que se tem de aprovar injecções porque os contratos são para cumprir. Nós não podemos entrar numa lógica de discursos políticos em que o que importa é a narrativa, mesmo que ela não tenha nenhuma adesão à realidade. Isto não pode continuar, porque mina a confiança nas instituições.

Há aqui duas coisas que o Governo vai também ter de esclarecer, que é o chamado mecanismo de capital backstop. Traduzindo: se tudo correr mal, se depois de lá pormos 3890 milhões de euros, ainda assim o banco tiver dificuldades, o Estado português comprometeu-se com a Comissão Europeia a meter lá mais 1600 milhões de euros. E esta conta ainda não estava feita e também vem na auditoria. Todos compreenderão que isto foi tudo menos assumido. Foi tudo feito por baixo do pano.

E outra questão que a auditoria levanta é, se na altura em que isto foi negociado, teria sido ou não possível apresentar [o projecto de venda] a outros concorrentes que estivessem interessados em apresentar condições melhores. O TdC diz que não encontra vestígios de isto ter acontecido. Eu acho que é uma dúvida que não pode ficar a pairar. Isto é fundamental! Havia alguém disponível para comprar o banco em melhores condições ou não? É a pergunta-chave. O mínimo que se pode pedir é que o ministro das Finanças da altura diga se fez ou não fez [negociações para encontrar melhor comprador].

Quando o Tribunal de Contas fala em “risco moral”, a que é que se refere?
A muita coisa. Mas acho sobretudo que tem a ver com o “mecanismo de capital contingente”, que é desequilibrado. E é desenhado para que estas injecções aconteçam. O TdC faz aqui uma análise jurídica impressionante. É evidente que este mecanismo era para ser utilizado. 

Uma das recomendações que o Tribunal faz é que haja maior clareza entre separação de funções entre Governo, Banco de Portugal, Fundo de Resolução, consultores... Já falámos aqui de o ex-ministro das Finanças ser governador do Banco de Portugal. Onde mais não houve separação de funções?
O Fundo de Resolução, enquanto accionista do banco, é evidente que quer contribuir com o mínimo possível. O Banco de Portugal está preocupado com que o banco seja estável. Quantos mais altos forem os rácios, melhor. Mas há muitas outras coisas, desde a auditora que audita várias entidades que têm interesses objectivamente contraditórios até àquilo que se descobriu ontem, de que até o próprio assessor financeiro do Banco de Portugal na venda do Novo Banco é hoje em dia presidente do conselho de administração da dona do Novo Banco! É impossível não ficar com a sensação de que tudo isto é feito para ser opaco. Se não fosse feito para ser opaco, não havia necessidade nenhuma de todas estas construções. É evidente que não é normal que quem está a fazer a análise da proposta de capital contingente, e de quanto é suposto o Estado gastar ou não, apareça, três anos depois, a ser presidente do conselho de administração do comprador!

Tudo isto cria uma degradação da percepção da opinião pública que é muito grave. É que não é só uma percepção. Eu não sou dada a teorias conspirativas, mas, por mais que se queira acreditar na boa-fé de tudo isto, torna-se muito difícil. 

Defendeu que Mário Centeno deveria ter acautelado no contrato que não haveria prémios para os gestores enquanto houvesse prejuízos. Acha que agora, quando o PS e o Governo se vêm lamentar, são lágrimas de crocodilo?
Há uma enorme hipocrisia política na questão dos prémios. Se a questão era essencial, então tinha de ficar acautelada no contrato. Estar agora a entidade que negoceia o contrato muito indignada por haver prémios... Podia ter acautelado. Mas mais importante dos que os prémios é saber porque é que eles são atribuídos. E até que ponto a atribuição dos prémios tem a ver com a limpeza rápida deste tipo de activos. Porque se tem, isso quer dizer que, mesmo quando o banco dá prejuízos, desde que esteja a limpar activos, é um bocado indiferente para a Lone Star se dá prejuízos ou não, porque depois os prejuízos vão ser cobertos pelo tal “mecanismo de capital contingente”. É importante perceber qual é a lógica da atribuição destes prémios. Se tiver a ver com a velocidade a que os activos estão a ser vendidos, então isto significa que há uma relação entre os prémios e o dinheiro que nós pomos no Novo Banco. E isso é particularmente perturbador. Quer dizer, quanto mais depressa forem pedidas mais injecções de capital, tendencialmente maiores serão os prémios. 

Estamos a pagar duplamente?
Estamos a pagar duplamente e estamos a pagar o facto de não ter havido a transparência de dizer que foi criado um mecanismo para isto acontecer. O “mecanismo de capital contingente” é criado para ser utilizado. Aliás, o TdC dizia uma frase que acho que foi a mais basilar: “Nós achávamos que 3890 milhões de euros era o máximo e, afinal, quando analisámos isto, percebemos que é o mínimo”. E é verdade. 

Era preferível ser o Estado a fazer isto do que estar a pagar à Lone Star para o fazer?
Do ponto de vista da capacidade do Estado, sim, era. Resta saber se o faria de uma forma mais barata ou mais cara. Eu não tenho certeza absoluta de que o Estado o faria de forma mais barata. A segunda questão é se seria possível. Uma das coisas que se notam aqui é também a visão da Comissão Europeia. A Comissão acha que os bancos devem ser limpos rapidamente e devem sair da esfera do Estado. A Comissão Europeia também tem aqui um papel que, do ponto de vista português, não é de salvaguarda do erário e dos contribuintes. É preciso termos essa consciência. Eu estou até convencida de que a visão da Comissão é muito céptica em relação à existência de bancos portugueses. Tendencialmente tenderá a defender a concentração dos bancos, pelo menos na Península Ibérica. É preciso percebermos que isto é um problema e como é que nos defendemos desta visão europeia. Acho que temos interesse estratégico em ter bancos portugueses. 

Ainda sobre a questão de separação de funções que o tribunal recomenda entre Banco de Portugal, Fundo de Resolução... É uma questão de legislação ou bom senso?
Acho que estas questões são, acima de tudo, de bom senso, que é um bem muito mais escasso do que a legislação e a regulação, infelizmente. 

Acha que o Parlamento vai ter de legislar, depois de esta comissão terminar os seus trabalhos?
Em alguns acertos. Mas acho que nos enganamos todos se imaginarmos que com legislação resolvemos a parte essencial dos problemas.

Qual foi, até agora, a maior revelação na comissão de inquérito?
Há dois grandes momentos. O relatório Costa Pinto e o papel do Banco de Portugal. Foi bom ter visto lá escrito muitas das críticas que o CDS tinha feito ao longo dos anos. Não foi uma revelação, mas foi pesado. E agora esta análise do “mecanismo do capital contingente” do TdC, não sendo uma revelação, dá-me factos que sustentam aquilo de que instintivamente já suspeitava. A comissão de inquérito permitiu saber quem eram os grandes devedores, saber como é que os activos andam a ser vendidos. 

O presidente do PSD anunciou que vai fazer uma queixa ao Ministério Público sobre a venda do Novo Banco. Acha que deve ser feita?
Eu esperava pelo fim da comissão. O caso do BES está ainda a ser investigado. Podemos mandar tudo para o Ministério Público, mas, se depois os processos nunca mais acabam, isso tem pouca eficácia. Neste caso, o que me parecia fundamental era que pelo menos a parte que diz respeito ao BES pudesse chegar a julgamento. Talvez isso restaurasse alguma confiança na justiça. O que foi apurado na última comissão de inquérito [ao BES] já dá um julgamento com condenações.

Nestas comissões de inquérito, como a do BES, a política tem andado mais rapidamente do que a justiça e tem ajudado a justiça?
Acho que tem ajudado a justiça. Tem andado mais rapidamente e é normal que ande mais rapidamente. O processo penal tem exigências de prova que não existem numa comissão de inquérito. 

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