Para os ex-moradores do antigo bairro de São Vicente de Paulo, “os pobres também têm direito a olhar o rio”

Na manhã deste sábado, dezenas de moradores reuniram-se no desaparecido bairro de Campanhã para contestar o projecto que a Câmara do Porto aprovou para aqueles terrenos. Forçados a sair entre 2005 e 2008, guardam uma “tristeza muito grande” e exigem “ter prioridade” no regresso às casas onde criaram raízes e memórias.

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Manuel Roberto/ARQUIVO

A princípio, Maria de Fátima hesita em pôr em palavras o que lhe vai na alma. Não porque lhe falte o que dizer, mas porque sabe que fazê-lo é meio caminho andado para que a tristeza lhe escorra pelos olhos. Viveu 58 anos numa das casas baixas do São Vicente de Paulo, bairro operário construído em 1947 a sul da Praça da Corujeira, em Campanhã, e extinto entre 2005 e 2008, durante o segundo mandato de Rui Rio, e aqui criou oito filhos. Foi uma de cerca de 220 pessoas que tiveram de sair aquando da demolição do bairro, mas o seu coração nunca arredou pé desta encosta com vista para o rio. “Já disse que quero vir aqui morrer, quero passar ali na rua da Bonjóia”, desabafa, por fim. 

À semelhança dos restantes moradores, foi deslocalizada para outra parte da cidade e vive, desde então, no Bairro Eng.º Machado de Vaz, a dois passos da estação de metro de Contumil. “Não estou mal, atenção, mas não é a mesma coisa”, confessa ao PÚBLICO. A partida forçada do lugar onde criou raízes é uma ferida que nunca cicatrizou. Por isso, não podia deixar de comparecer, na manhã deste sábado, junto ao miradouro do bairro, onde dezenas de antigos moradores contestaram o projecto da Câmara Municipal do Porto (CMP) para a área de mais de 23 mil metros correspondente ao antigo bairro, no Monte da Bela, e exigiram ser considerados para regressar às suas antigas casas.

Casas para famílias pobres

A proposta da maioria municipal, cujo concurso público foi aprovado na reunião camarária de 22 de Março, com votos contra do PS e da CDU, prevê a contratação de privados, por um valor que ascende aos 16 milhões de euros, para construção de 232 fogos, 116 para arrendamento acessível e outros 116 para arrendamento privado. Como contrapartida, o município propõe-se ceder ao vencedor metade do terreno do Monte da Bela e alguns lotes do Plano do Pormenor das Antas (PPA). A empreitada já mereceu algumas críticas por parte da oposição, que considera que os planos para os terrenos em causa não suprem as crescentes carências habitacionais da cidade, principalmente dos que têm menos rendimentos.

A voz de Maria José Santos é firme quando sobe as escadas do miradouro para expressar a indignação de quem viu as suas raízes arrancadas à força e, sobretudo, a vontade de voltar ao sítio que a viu nascer e crescer. “Se vão ser feitas casas novamente, nós temos que ter prioridade para vir”, defendeu, lembrando que o regime de arrendamento acessível para ali previsto é incompatível com as possibilidades dos ex-moradores. “Eles querem meter aqui rendas acessíveis, mas nós não temos ordenados acessíveis”, lamentou. 

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O bairro de São Vicente de Paulo em construção, em 1946 Arquivo Municipal do Porto

Também Mário Couto, um dos últimos moradores a sair do bairro, assume a revolta face aos planos para aqueles terrenos, que segundo relatos de vários moradores, terão sido doados por D. Antónia Ferreira, mais conhecida por Ferreirinha, à Câmara do Porto, com a condição de serem entregues às camadas mais pobres. Esta intenção é, aliás, corroborada por um documento de 1946 do Arquivo Municipal do Porto que refere um “aglomerado de casas para famílias pobres a sul da Praça da Corujeira”, entre as artérias da Bonjóia, do Monte da Bela e Dr. Maurício Esteves Pereira Pinto. “Se estes terrenos foram dados para bairros sociais, não é para pessoas com grande poder económico terem as vistas para o rio”, critica Mário, um de apenas dois moradores que ficaram no único bloco do São Vicente de Paulo que não foi demolido. “Os pobres também têm direito a olhar para o rio.”

"Uma tristeza muito grande"

Os restantes foram obrigados a dispersar para bairros como Lagarteiro, Falcão ou São Roque da Lameira, mas nunca encontraram vizinhança como aquela, “uma família”. Em tempos considerado “o bairro [camarário] mais sossegado”, aqui nunca houve problemas sociais relacionados com violência ou toxicodependência, ressalva Mário Couto. Talvez por isso, passados 13 anos do seu efectivo desaparecimento, permaneça latente “uma tristeza muito grande nas pessoas”, agora renovada com o projecto da CMP para o local.

Ilda Figueiredo, vereadora da CDU, marcou presença no protesto e classificou o projecto como “uma afronta aos antigos moradores”. “[A câmara] não só não quer construir casas para renda apoiada, como não quer ser ela a construir, entregando-o a um grupo económico privado”, atirou. A dirigente comunista manifestou, ainda, a sua discórdia face à “afirmação do presidente Rui Moreira [em resposta da autarquia a um artigo do Jornal de Notícias] sobre a possibilidade de os antigos moradores poderem concorrer às rendas acessíveis”. “Ou vive no meio da lua ou vive no meio dos ricos e não percebe nada dos rendimentos da maioria das famílias da cidade”, acusou.

Depois de aprovada pelo executivo municipal, a proposta de lançamento do concurso público para execução da empreitada será deliberada em assembleia municipal na próxima segunda-feira.

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