Campanhã, um território abandonado e sem perspectivas de futuro

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Terrritório da ARU tem várias fábricas abandonadas Paulo Pimenta

A freguesia da zona oriental do Porto está cheia de vastos espaços vazios, entre terrenos, velhas fábricas ou armazéns. Rui Rio reconhece esquecimento desta zona da cidade do Porto.

Ninguém acreditaria que ainda há poucos anos ali morava gente, em blocos altos e amarelados, roídos pela degradação. Não é fácil imaginar o bulício de pessoas, os esgotos que corriam pelas ruas, os toxicodependentes que se aninhavam em abrigos insalubres. Nos terrenos das torres do Bairro São João de Deus, em Campanhã, no Porto, hoje crescem mato e algumas flores. O terreno é um dos mais conhecidos espaços vazios da freguesia, mas não lhe faltam rivais nos sinais de abandono. Há um vasto território à espera de um futuro, o que já levou o presidente da câmara, Rui Rio, a admitir: "Se o Porto pode crescer de forma equilibrada é obviamente em Campanhã, não é nas outras freguesias, já densamente povoadas."

O abandono de Campanhã chegou aos ouvidos do presidente em tom de lamento, pela voz do deputado municipal socialista e ex-presidente da junta daquela freguesia, Rodrigo Oliveira: "Temos um grande grupo de espaços disponíveis naquela zona, a precisar de uma grande intervenção. É um quinto do território e é por ali que a cidade pode crescer de forma organizada."

Na assembleia de 19 de Junho, Rodrigo Oliveira tentou saber (sem sucesso) se havia projectos para os terrenos abandonados dos bairros demolidos pela câmara na freguesia - S. João de Deus e S. Vicente de Paulo. Ao PÚBLICO, dias depois, o deputado municipal quase não tem fôlego para enumerar de uma só vez outros espaços vazios de Campanhã. A antiga "Fábrica da Tripa", na Rua do Monte da Estação. Os chamados "armazéns da Matinha", na Rua de Justino Teixeira. O espaço para o prometido "parque desportivo", junto à Piscina de Campanhã. O complexo em ruínas da Companhia Portuguesa do Cobre. A antiga Fábrica de Mário Navega...

"Está tudo parado. Há uma zona cujo desenvolvimento foi travado por se estar à espera do TGV e do projecto que reabilitaria toda aquela área. Mas há muitos espaços onde isso não foi um factor. Infelizmente, nesta zona, com excepção do [Euro] 2004 [e o PPA - Plano de Pormenor das Antas], ficou tudo ao abandono". A descrição de Fernando Amaral (PS) não difere da do seu antecessor, Rodrigo Oliveira, pelo que talvez Rui Rio, se o ouvisse, lhe respondesse o mesmo que a Oliveira, quando este se queixou de Campanhã ser "esquecida": "É verdade. É a freguesia do concelho mais longe do litoral e acontece no Porto o que acontece à escala do país, com o interior e o litoral."

O geógrafo Rio Fernandes reage com veemência às afirmações do autarca: "E não será ele o responsável por isso? Durante estes anos o que é que fez? Andou a fazer corridas de carrinhos na Boavista. Tudo aconteceu do lado ocidental, que é, aliás, onde ele mora. Se agora tem um momento de mea culpa, que peça desculpa aos portuenses, porque ele não fez nada para diminuir as desigualdades."

Zona estigmatizada

Não foi só o PPA a acontecer em Campanhã, desde a primeira eleição de Rio, em 2001. O Palácio do Freixo foi transformado numa pousada. Abriu a Marina do Freixo. Arrancou o prometido e tantas vezes adiado Parque Oriental. A verdade, diz o arquitecto Nuno Grande, é que Campanhã "fica na zona oriental que, em todas as cidades do hemisfério Norte, é a mais estigmatizada". Foi nessas zonas, explica, "que se concentraram as indústrias mais poluentes, mais pobres, com más acessibilidades". O arquitecto argumenta: "Campanhã não foge à regra e foi a primeira zona da cidade a sofrer os efeitos da pós-industrialização".

Foi assim que a freguesia ganhou os seus gigantescos fantasmas de betão das velhas fábricas, que permanecem em ruínas, à espera de um futuro. Até quando e com que fim, não é consensual.

No final de Maio, numa conferência sobre o centro da cidade, moderada por Rio Fernandes, o presidente da Sociedade de Reabilitação Urbana do Porto, Rui Moreira, defendeu que teria sido uma boa ideia começar a regeneração da cidade por Campanhã, "um espaço muito interessante, com outra elasticidade". Agora, Rui Moreira explica que cidade gostaria de ver nascer ali. "Aquele território é muito atractivo em alguns aspectos. Tem excelentes ligações ferroviárias, a ligação ao metro, está muito próxima do centro, o que é uma grande vantagem, e tem espaços a muito bom preço, que estão abandonados, e em que as características de reabilitação não têm de ser tão cuidadas como no centro histórico, em que se faz quase um trabalho de relojoaria. Ali, podemos ser mais ousados", diz.

Para o empresário, Campanhã deveria especializar-se como alternativa low-cost, a quem quer viver ou instalar uma empresa na cidade, mas não pode assumir os custos que um espaço no centro ou na zona Ocidental representam. "Quando pensamos em criar condições para pessoa com menos recursos poderem voltar a viver na cidade, Campanhã é excelente", defende.

Valorização do território

Rio Fernandes acha que Campanhã merece um destino diferente. "Não partilho nada esse conceito. O fundamental em qualquer cidade é a mistura, porque esta significa tolerância, a capacidade de aprendermos a viver uns com os outros. No Porto, as grandes obras têm sido sempre junto ao mar, onde moram os mais ricos e à custa disso a cidade está cada vez mais desigual. Não tem havido qualquer atenção em tentar atenuar estas desigualdades".

Para o especialista em Geografia Humana, "o que era preciso ali era algo atractivo e inovador, que valorizasse o espaço oriental". E dá exemplos: "Um grande museu, um grande pólo tecnológico, uma faculdade de ponta... Os espaços mais deprimidos precisam de investimentos de maior qualidade, precisamente no sentido de atenuar as diferenças. Esse é que é o grande papel do Estado, porque a tendência do mercado é de aumentar as diferenças".

O presidente da junta também imagina uma outra Campanhã. No território de 8,13 quilómetros quadrados, que é a morada, segundo os Censos de 2011, de 32.652 pessoas (a terceira freguesia mais populosa do concelho, com 14 bairros sociais), Fernando Amaral sonha o futuro assim: "Era bom ter a implantação de algo como um parque tecnológico, espaços de lazer e habitação para a classe média e os jovens que têm procurado casas nos concelhos limítrofes", defende.

As dúvidas do geógrafo urbano e autor da obra O Porto Oriental no final do século XIX, Jorge Ricardo Pinto, sobre o futuro de Campanhã, são muitas. Confrontado com as posições de Rui Moreira e de Rio Fernandes, sorri: "Talvez compreenda melhor o intuito de Rui Moreira, embora a resposta que me apeteça dar é a do Rio Fernandes." Mas o que questiona é se uma nova Campanhã é, sequer, uma perspectiva viável, nos próximos anos. "Campanhã é um território muito complexo. A zona do Pêgo Negro, com moinhos antigos e que a maior parte das pessoas nem imagina que existe, não tem nada a ver com a Campanhã junto à estação [de comboios], nem com a zona junto ao rio, que acredito que possa ter outra dinâmica. É um mosaico muito complexo de mundos diferentes e haverá, para uns destes mundos, mais oportunidades do que para os outros", defende.

Na sua perspectiva, o problema "é grave e de difícil solução", e deve ter em conta, também, a realidade demográfica. "Podemos estar cheios de vontade de fazer cidades novas, mas para quem? O país está a bater recordes de baixa de natalidade. Será que precisamos de construir ou reconstruir cidades?", questiona. O arquitecto Nuno Grande não tem dúvidas que, ao nível da conquista de população, o Porto tem por onde crescer. "Eu sou dos que defendem que o Porto se deve densificar e não expulsar pessoas. A cidade tem muito por onde se pode densificar e Campanhã tem uma disponibilidade muito interessante para concentrar habitantes", diz.

Nuno Grande até concebe que Campanhã se torne uma zona low-cost, se esta estiver associada aos fenómenos crescentes do co-working ou co-housing (a partilha de espaços para trabalhar e viver), mas recusa uma perspectiva de "território-dormitório" ou de um espaço "monofuncional". "Sou pela equidade urbana. Não gostaria de transformar Campanhã no dormitório low-cost do Porto. O desenvolvimento da freguesia deve partir dos princípios da equidade funcional, com empregos, indústrias criativas e habitação", defende. Por enquanto, Campanhã vai continuar à espera.

Investimento anunciado de 100 milhões por concretizar

A promessa surgiu em 2008, pela voz do então vereador do Urbanismo da Câmara do Porto, Lino Ferreira: "Campanhã vai mudar e estamos a vê-la renascer".

Era Julho e o responsável autárquico falava na apresentação do empreendimento Ancoradouro, na zona do Freixo - um dos três que a construtora Mota-Engil prometia para a zona. O investimento, anunciava-se, era de 100 milhões de euros, em quatro anos, e dividia-se pelo Ancoradouro, pelo condomíno fechado da Quinta da China, nas encostas da marginal, e pela reconversão do edifício da antiga Moagem União em apartamentos estilo loft, na mesma zona. Passado o prazo anunciado, apenas o Ancoradouro está no terreno.

Contactada pelo PÚBLICO, fonte oficial da Mota-Engil garante que a empresa "permanece interessada em materializar o plano de investimentos referido", mas escusa-se a avançar prazos para o arranque dos dois projectos que ainda não saíram do papel. "Tendo presente a conjuntura do mercado (...) [esta]sempre ditará o momento de concretização dos projectos".

Abandona-se a marginal de Campanhã, voltada para o Douro, e atravessa-se toda a freguesia até ao seu outro extremo, junto à Circunvalação. É aí que, há anos, a gigantesca Companhia Portuguesa de Cobre vai sendo coberta pelos graffiti e o mato, à espera de comprador. Em 2001, a Câmara do Porto recebia um pedido de licenciamento da Sonae (que detém o PÚBLICO), para ali instalar um Continente. Mas, em 2010, o espaço devoluto com 56,2 mil metros quadrados era posto à venda pela SC Assets, empresa do grupo Sonae Capital. O preço de 12 milhões de euros ainda não foi actualizado e o espaço continua à venda, no site da empresa.

Já este ano, um outro projecto, na zona do Pego Negro, caiu por terra, quando a AREIASUCHA - União de Cooperativas de Habitação devolveu à câmara, por falta de meios financeiros, quatro lotes de terreno que deveriam receber habitação.

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