Uma mulher de coragem

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No interior do Portugal do século XIX viveu uma mulher extraordinária. Dona Antónia foi um exemplo de iniciativa e de espírito de risco num país habituado a viver de rendas. Construiu uma das mais colossais fortunas do seu tempo. Fez frente aos ingleses que dominavam o vinho do Porto, confrontou-se com o poderoso Duque de Saldanha, recusou títulos e prebendas da Corte, enfrentou pragas naturais devastadoras, construiu ou melhorou dezenas de quintas, entregou-se ao dever de ajudar os mais pobres. Casou com um primo playboy, teve filhos esbanjadores que a amarguraram. Mas nunca prevaricou e nunca desistiu. Dona Antónia nasceu faz dia 4 de Julho 200 anos. Memória de uma das personalidades mais complexas e fascinantes do Portugal de oitocentos.

No dia em que Dona Antónia foi a enterrar, centenas, talvez milhares, de pessoas formaram uma parede humana ao longo de quatro quilómetros até ao cemitério da Régua. Os jornais do Porto relatam que, à passagem do féretro, homens e mulheres se ajoelhavam, prestando uma última homenagem à mulher que lhes tinha dado trabalho, esmola, hospitais e, acima tudo, uma crença de que no Douro do século XIX a esperança era possível. Chamavam-lhe "santa" ou "mãe dos pobres", e brevemente a invocação da Ferreirinha estaria associada a uma aura mítica que ainda perdura.

Percebe-se. Dona Antónia Adelaide Ferreira, que nasceu faz amanhã 200 anos, foi uma das personagens mais fascinantes do seu tempo. Bateu o pé aos ingleses que dominavam o vinho do Porto, empurrou as fronteiras do Douro vinhateiro até aos limites do território nacional, esteve sempre ao lado dos mais pobres, fez frente aos mais poderosos políticos da sua época, recusou títulos e honrarias da Corte e do rei, teve uma vida familiar que conheceu a desgraça, ousou, sonhou, arriscou e construiu uma das maiores fortunas do século XIX. A dimensão da vida e da sua obra constata-se ainda hoje numa das mais emblemáticas casas de vinhos do Douro e do Porto, a A.A. Ferreira, nas dezenas de quintas que construiu no Alto Douro, no mais importante prémio anual à iniciativa das mulheres portuguesas (a vencedora da edição deste ano é Leonor Beleza).

Simples e vibrante

Os poucos retratos que dela nos chegaram mostram-nos uma mulher seca, nariz vagamente adunco, testa pronunciada e olhar entre o distante e o melancólico. "Era sem dúvida uma mulher simples, que gostava mais de caminhar nas vinhas do que passar a temporada da ópera em Lisboa, que preferia jogar às cartas nas suas quintas do que mover-se entre a alta sociedade da corte, à qual tinha acesso", diz Natália Fauvrelle, directora do serviço de museologia do Museu do Douro que, com Isabel Cluny, comissaria a exposição que celebra o bicentenário do nascimento de D. Antónia.

Mas, por detrás desta imagem frugal, escondia-se uma mulher com uma energia vibrante, uma coragem extrema e um espírito de iniciativa (de empreendedorismo, como agora se diz) que a levaram a arriscar nos negócios, a construir uma das maiores empresas do seu tempo ou a resistir aos múltiplos infortúnios pessoais que lhe consumiram parte da vida.

No turbulento século XIX português, D. Antónia sobreviveu às pragas que devastaram as suas vinhas, conseguiu poupar-se aos efeitos da difícil conjuntura dos mercados internacionais, passou incólume por guerras civis e revoltas populares. Teve a sorte de herdar o rico património acumulado pelos Ferreira da Régua ao longo de quase 70 anos, mas conseguiu-o à custa do casamento com um primo que morreria cedo vitimado pela sua impenitente vocação de playboy, conhecido nos círculos sociais do Porto, de Paris ou de Londres.

Teve a fortuna de casar pela segunda vez com um homem que lhe compreendeu a paixão pelas vinhas e a seguiu na dedicação ao negócio. Teve a força para desafiar um dos homens mais poderosos da época, o Duque de Saldanha, e de lhe negar com o exílio em Inglaterra o casamento forçado de Maria de Assunção, a sua filha mais velha. Teve a mágoa de ver como os seus herdeiros delapidavam a sua fortuna em talheres de prata, palácios sumptuosos, cortes de criados e festas pomposas. Sobrou-lhe ainda assim arte e método para gerir com critério um império fundiário que reunia 24 quintas no Douro, entre as quais as ainda hoje famosas quintas do Vesúvio, do Valado, de Monte Meão ou do Arnoselo. A sua vida acabou numa lenda para os miseráveis lavradores do Douro, que desde então depositaram no seu sucesso a crença de que o sonho da riqueza é possível com dedicação e suor.

D. Antónia Adelaide Ferreira nasceu na Régua a 4 de Julho de 1811. Descendia de uma família local que aproveitou o surto comercial do vinho do Porto após a demarcação pombalina de 1756 para se instalar no negócio da produção e da angariação de vinhos junto de pequenos agricultores. O seu avô, acredita-se, foi morto por ordens de Loison, o francês que na época das invasões napoleónicas se destacou pela brutalidade (deve-se-lhe a célebre expressão "ir para o maneta"). O seu pai, José Bernardo, dividiu a herança da família com um irmão, António Bernardo, em 1808.

O primeiro, mais prudente, consolidou o património que lhe coube e em associação com o sogro. Mas foi António Bernardo que revelou uma extraordinária intuição empresarial que o tornou rapidamente num protagonista dos negócios do Douro e do Porto. Deve-se-lhe a construção da Quinta do Vesúvio, fora dos limites da região demarcada nessa altura, o que revela o seu espírito visionário.

Em 1815 começa a exportar vinho para Inglaterra e, apesar de entrarem ilegalmente na zona da demarcação, "os vinhos do Vesúvio eram dos mais caros da época", afirma Gaspar Martins Pereira, historiador que, com Maria Luísa Olazabal, escreveu uma biografia de D. Antónia.

Em 1827, António Bernardo Ferreira congratulava-se pelo facto de "todos os ingleses" fazerem "grandes elogios" ao Vesúvio, garantindo que "é sem dúvida a obra mais perfeita e mais acabada que haverá em Portugal". Ainda hoje, na solene solidão do Douro Superior, esta quinta é um dos lugares mais belos de todo o vale.

Amor de primos

Os dois irmãos foram pais de filhos únicos e, seguindo o costume da época, era normal que José Bernardo e António Bernardo vissem na aliança entre eles uma forma de manter unido o seu património da família. O casamento entre Dona Antónia, então com 23 anos, e António Bernardo Ferreira filho, um ano mais novo, acontece a 22 de Outubro de 1834.

É difícil imaginar o matrimónio entre dois personagens tão diferentes. "Dona Antónia era fundamentalmente uma lavradora, uma mulher do campo", nota Gaspar Martins Pereira, enquanto António Bernardo por essa altura era já um dandy, com passagem pelas escolas da elite do Porto e uma estadia de dois anos em Londres onde terá acentuado a sua vocação epidérmica para a vida boémia.

Os biógrafos de Dona Antónia acreditam ainda assim que, apesar de ser um típico casamento por interesse, terá havido amor entre os primos direitos. Pelo menos na sua primeira fase. Com o passar do tempo, a oposição entre a faceta rural e simples de Antónia e os gostos cosmopolitas, frívolos, impenitentes e dispendiosos de António Bernardo acabarão, na prática, por ditar um afastamento formal entre ambos.

Entre a extravagância que o leva a comprar um sumptuoso palácio no Porto e a decorá-lo com mobiliário comprado em Londres, acrescentando-lhe um teatro e uma das maiores bibliotecas da época e a vida devassa que o contamina com sífilis, António Bernardo constrói uma imagem que a História e a família se habituarão a condenar.

Gaspar Martins Pereira, porém, recusa analisar a sua vida apenas a esta luz. Para o historiador, é António Bernardo quem dá "escala e grandeza à fortuna que ambos tinham herdado". Assumindo o espírito burguês da época, investe não apenas nas compras de vinho e de bens de raiz no Douro, mas também em acções de empresas nacionais e adquire títulos de dívida pública em Londres.

A operação da casa Ferreira assume, com ele, uma dimensão internacional, com representações em Londres e negócios em outros países europeus. Apesar da sua vida dissoluta e extravagante (chamavam-lhe o Farrobo do Porto), teve mundo suficiente para saber alargar as fronteiras do negócio da família.

Terror e desgosto

Apesar deste espírito de iniciativa, os últimos anos do casamento viveram-se em separação de facto. Até 1842, quando nasce o terceiro filho do casal (um não sobreviverá), as relações haviam passado de um estado de felicidade para o distanciamento. A partir daqui, a ruptura é inevitável. Uma carta do encarregado de negócios da Régua para o seu homólogo do Porto dá conta de que Dona Antónia se recusava a partir ao encontro do primo e marido e que se encontrava invadida de "ideias de terror e de desgosto".

Gaspar Martins Pereira interpreta a menção ao terror como consequência do agravamento da sífilis (que num dos seus estágios de desenvolvimento provoca lesões na pele e nas mucosas). No Verão de 1844, António Bernardo visita o Douro em companhia do filho e em Agosto faz mais uma das suas viagens a Londres. Morrerá depois em Paris, a 5 de Novembro de 1844. Tinha 32 anos.

Viúva, com dois filhos, e já com uma fortuna colossal para gerir, D. Antónia tem agora de mostrar a sua têmpera. Os tempos não correm de feição. O império dos Ferreira tremia. Num dos seus intermináveis ciclos de altos e baixos, o vinho do Porto conhece nos primeiros anos de 1840 uma forte retracção.

A partir de 1850, uma doença, o oídio, assola as vinhas durienses, provocando reduções drásticas na produção, vinhos de má qualidade e o encarecimento do cultivo através do recurso ao enxofre. Em 1853, o Vesúvio produziu 313 pipas de vinho, em 1856 a produção reduzira-se a 69 por culpa do oídio. Mais grave ainda, a partir de 1870 uma nova praga, a filoxera, ameaça arruinar toda a viticultura nacional e causa no Douro estragos ainda maiores que os do oídio.

Em 30 anos, parte do vale vinhateiro é abandonado (as imagens do abandono ainda persistem nos chamados "mortórios" que se vêm a cada troço da região), milhares de produtores entram na falência e assiste-se à mais importante vaga de transferência de propriedades dos 350 anos da moderna história vitícola da região.

Ameaçada pelo infortúnio pessoal e pela gravidade da conjuntura, Dona Antónia reage. Vende todos os bens supérfluos do marido, desde palácios a caleches, de lustres a talheres de prata, da biblioteca a acções. Como agricultora que se sentia, seria na agricultura que depositaria todas as suas actividades. Não o fez como quem faz um capricho. "Não podemos fazer mitificações sobre ela", nota Natália Fauvrelle: "Ela era uma empresária e agia como uma empresária." Só que, sendo-o, revelou nestes momentos difíceis uma enorme sagacidade. "Foi muito astuta na forma como geriu as crises. Soube esperar pelas melhores oportunidades e conseguiu aumentar a sua fortuna no momento da crise do oídio e da filoxera", acrescenta Gaspar Martins Pereira. Repare-se que, apesar das aflições, não vendeu uma única pipa de vinho da fortuna do marido (deixou-lhe cinco mil, um stock colossal). Quando o oídio e, mais tarde, a filoxera reduziram a capacidade de oferta do Douro, Dona Antónia pôde então realizar enormes mais-valias com os excelentes vinhos que conservava. Depois, com essas mais-valias, compra azenhas, montes, olivais, casas na Régua, no Porto, em Lisboa ou em Vila Real, quintas emblemáticas como a do Porto, dos Aciprestes, do Tua, do Arnoselo, do Mileu, do Pego, do Lourentim, entre muitas outras.

Ao contrário do sucesso dos negócios, a vida familiar continuava a sofrer vicissitudes. Em 1851, o seu filho António Bernardo (o mesmo nome do pai e do avô), então com 16 anos, entra na mesma vida dissoluta do marido e decide casar-se com Antónia Cândido Plácido, filha de um capitalista brasileiro do Porto e irmã de Ana Plácido, a mulher fatal de Camilo Castelo Branco. Dona Antónia opõe-se, mas sem sucesso.

António Bernardo logo reclama a parte da herança paterna e após alguns anos de vida espaventosa começa a acumular dívidas. Dona Antónia acabará por pagar as despesas de educação dos netos e mesadas ao filho, como quem se limita a cumprir uma sina. Mas mais grave foi o episódio que rodeou a história da alegada tentativa de rapto da filha Maria de Assunção a ordens do poderoso Duque de Saldanha, na época, em 1854, primeiro-ministro da monarquia.

A história começa com um pedido de casamento feito por Saldanha em nome do seu filho. Dona Antónia recusa, até porque Maria de Assunção tinha apenas 11 anos. É então que, com a conivência de António Bernardo e da mãe de Dona Antónia, se organiza uma alegada tentativa de rapto.

Após este episódio, Dona Antónia foge primeiro para Lamego, depois para Vila Real, segue até Vigo onde se encontra com José da Silva Torres, o principal administrador das suas empresas, e ruma de barco para Londres. O acontecimento fez as delícias da imprensa da época, dourou a lenda de Dona Antónia e tornou-se acontecimento nacional. Mas, "está mal contado", diz Gaspar Martins Pereira.

Certamente terá havido pressões do duque, até porque a fortuna de Dona Antónia era uma das mais relevantes do Portugal de meados de Oitocentos. Mas não é certo que tenham chegado ao limiar da tentativa de rapto.

"A fuga para Inglaterra poderá ter servido de pretexto para o segundo casamento de Dona Antónia, com Silva Torres, cujas relações com Dona Margarida Rosa, a mãe de Dona Antónia eram impossíveis - ele chamava-lhe "a víbora da Régua"", considera Gaspar Martins Pereira. Numa entrevista a um jornal francês, Le Petit Journal, Dona Antónia diria que a sua fuga não ocorreu "por medo do duque de Saldanha", mas apenas "para evitar a efusão de sangue".

Silva Torres e Dona Antónia casar-se-iam em Inglaterra, a 20 de Setembro de 1856, e de imediato regressam a Portugal. As más-línguas sugeriram que, apesar de ser um homem abastado, Silva Torres fez um casamento de oportunidade. No livro de Gaspar Martins Pereira e de Maria Luísa Olazabal afirma-se, pelo contrário, que o comportamento de Silva Torres "foi irrepreensível".

De resto, é fácil acreditar que Dona Antónia foi feliz com o seu segundo casamento. "Silva Torres fazia-lhe tudo o que ela queria e deixava-lhe fazer tudo o que ela queria. Há uma evidente ternura nas suas cartas", explica o historiador. Francisco Olazabal, trineto de Dona Antónia, e proprietário da Quinta do Vale Meão, concorda. "Na tradição oral da família, lembra-se que ela se referia ao primeiro marido como "aquele que Deus levou" e a Silva Torres como "aquele que eu perdi"", conta Olazabal (nome basco, proveniente de um casamento de uma neta de Dona Antónia com um aristocrata de Irun).

Com a actividade comercial e financeira das empresas nas mãos de Silva Torres, Dona Antónia continua a dedicar-se à sua paixão pelas vinhas e pelo vinho. "Nunca desiste. Era muito combativa. Manda vir enxofre da Inglaterra para tratar do oídio, tenta curas para a filoxera e, mesmo sendo conservadora nos costumes, é uma pessoa aberta à inovação e ao risco", afirma Natália Fauvrelle.

No auge da crise, dedica-se a ajudar os mais pobres, dizendo que "a sorte da lavoura é a minha também, e impossível me é encarar as coisas de outra maneira". Distribui dinheiro pelos mais aflitos e é quem mais contribui para a instalação de um hospital para coléricos na Régua. "Cada um na sua terra deve fazer tudo que seja para bem da humanidade", escreve.

As suas visitas ao Porto são agora regulares e o casal passa temporadas em Lisboa, onde adquire o palácio do Calhariz. O casamento da filha Maria de Assunção com o filho do marquês de Loulé, neto de D. João VI, ligam-nos à casa real. Torres envolve-se na política pelas hostes do Partido Regenerador e torna-se um cacique no círculo de Vila Real. O casal recebe as visitas do rei D. Luís, do primeiro-ministro Fontes Pereira de Melo, de altas figuras da aristocracia e dos negócios. Na sequência de um desses encontros, o Barão de Forrester morre afogado no Douro após o naufrágio de um banco onde Dona Antónia e Silva Torres também viajavam, após terem passado uns dias na Quinta do Vesúvio, em Maio de 1861.

Gosto pelos excessos

Mas é no Douro, sempre no Douro, que Dona Antónia prefere estar. "Todos os dias que podia saía de casa e ia de vinha em vinha", diz Gaspar Martins Pereira. "Mesmo quando estava no Porto mandava vir perdizes, legumes, ovos ou frutas do Douro", nota Natália Fauvrelle. Só os filhos a atormentavam. Primeiro António Bernardo, que não perde o gosto pelos excessos e continua a endividar-se e a colocar sob ameaça a sua fabulosa herança. Depois Maria de Assunção, cujo marido não "tinha intenção nenhuma de trabalhar", como revela Francisco Olazabal.

Além de comprarem propriedades rurais nas imediações de Lisboa, Assunção e marido, Conde da Azambuja, adquirem o palácio de Palhavã, entregam-se a luxos desmesurados e reúnem uma vasta corte de criados. Cedo, começam a sentir dificuldades financeiras que, uma vez mais, Dona Antónia terá de atacar.

Nos seus últimos anos de vida, esta mulher de aparência frágil mantém-se fiel a hábitos de sempre. O comboio tinha chegado ao Douro e as viagens rio acima, ou até ao Porto, são agora mais fáceis. Mas nas quintas continua a ocupar-se dos ciclos de tratamento das vinhas, com novos plantios, com as novidades, com o aperfeiçoamento de métodos capazes de incrementar a qualidade dos vinhos com a sua marca.

Continuava também a jogar à bisca e a deliciar-se com bons jantares - "poucos dias antes de morrer comeu uma lampreia", cita Natália Fauvrelle. Nunca aceitou títulos nobiliárquicos e fez da sua altivez para com os grandes um traço do seu carácter - numa passagem pela Régua de Dom Carlos, Dona Antónia só aceitou receber cumprimentos do monarca nos seus domínios. Irrequieta como sempre, continuou a investir. Com Silva Torres cada vez mais vezes em Lisboa, depois de ter sido nomeado Par do Reino, em 1876, Dona Antónia aprofundou a sua vocação de agricultora. Silva Torres faleceria em 1880 e a segunda viuvez não a abalou. Pelo contrário, nos 16 anos de vida que lhe restavam, foi capaz de revelar uma energia admirável.

É nestes anos que a destruição da filoxera a obriga a replantar extensas áreas de vinha arruinada, mas é também neste período que a inteligente conservação de enormes stocks de vinho lhe permitem lucros fabulosos. Aos 76 anos dedica-se a construir do nada a imponente quinta do Vale Meão, na zona de Vila Nova de Foz Côa. Chegaram a trabalhar lá mais de mil pessoas, que arrotearam extensas áreas de monte e plantaram mais de 400 mil videiras.

"A obra que ela fez no Vale Meão era difícil de fazer hoje", reconhece o seu trineto, Francisco Olazabal, proprietário da quinta na qual faz, com o filho, um dos mais consagrados vinhos tintos do país. "Ela tinha 80 anos e assumiu os encargos da decoração do hotel e do casino das Caldas do Modelo" que entretanto comprara, nota Gaspar Martins Pereira.

De uma forma algo imprevista, Dona Antónia morre a 26 de Março de 1896. O Primeiro de Janeiro noticiava "o último suspiro da mãe dos pobres, como lhe chamavam na sua linguagem simples a gente do povo". A família real e o núncio apostólico mandam condolências por telegrama. O cortejo fúnebre é acompanhado por 95 padres e, relatava o jornal, adquiriu uma "imponência extraordinária", com uma multidão de durienses a "prestar a última homenagem do seu respeito à nobilíssima dama que fora mãe carinhosa de tantos desgraçados aflitos".

Para os agricultores, ela "tornara-se o exemplo de que os durienses podiam bater o pé aos ingleses que dominavam o negócio do vinho do Porto, a prova de que podiam cumprir o sonho de entrar no comércio", explica Gaspar Martins Pereira. Ainda há poucos anos, numa manifestação no Pinhão contra as políticas do Governo se ouviram "vivas à Ferreirinha".

Maior fortuna do Douro

O seu legado material adquiria uma dimensão fabulosa. As suas vinhas produziam 1500 pipas de vinho por ano e nos seus armazéns sobravam mais de 15 mil. No seu testamento estão ainda arroladas 24 quintas no Douro, casas e palácios no Porto e em Lisboa, armazéns gigantescos em Gaia, acções de empresas nacionais e estrangeiras.

O seu património, que seria dividido pelos dois filhos e 18 netos, estava avaliado em 5,9 milhões de mil réis, o que era "seguramente a maior fortuna do Douro e uma das maiores do país", considera Gaspar Martins Pereira.

Os seus herdeiros obrigaram-se a respeitar o testamento deixado e criaram a empresa que é a antecessora da actual A. A. Ferreira para manter a unidade possível do império agrário e comercial de Dona Antónia. "Nós lembramo-la com uma enorme admiração e um grande sentimento de reconhecimento por tudo o que fez", diz Francisco Olazabal.

Durante três gerações, até 1987, a Ferreira seria gerida pelos seus sucessores. Nesse ano, a sua venda tornou-se um assunto de Estado, com o envolvimento do Governo para evitar que o seu controlo passasse para mãos estrangeiras. Seria vendida à Sogrape, a maior empresa nacional do sector do vinho, com operações em Portugal, no Chile, Argentina.

Dois anos depois, o Vesúvio é comprado pelo grupo de vinho do Porto Symington. Cerca de 140 descendentes tiveram de assinar a transacção. "Eram tantos que tivemos de reforçar o catering", lembra Paul Symington. Herdeiros como Francisco Olazabal ou Eugénia Ferreira, proprietária da quinta de Lourentim, mantiveram na sua posse a herança directa de Dona Antónia. Outro ramo dos Ferreira é dono da conhecida Quinta do Valado.

Por estes dias, algumas dezenas dos seus sucessores reúnem-se na Régua, no Museu do Douro, para a memória de uma linhagem e a fortuna que acumulou e que, em alguns casos, ainda hoje é usufruída. Quem aprecia o vinho e a cultura do vinho não consegue furtar-se à sensação de que o património de Dona Antónia mantém uma singular vitalidade. Os vinhos da Ferreira, a começar pelo mítico Barca Velha, estão entre os melhores do país. No Vesúvio criam-se Porto Vintage da mais alta estirpe. No Valado criou-se uma empresa sólida, com vinhos excelentes, entre os quais um topo de gama chamado Adelaide. E, além das quintas e dos vinhos de hoje, a Ferreira tem um arquivo organizado durante anos por Maria Luísa Olazabal que frequentemente recebe a visita de investigadores nacionais e estrangeiros.

Na garrafeira da empresa há um impressionante arquivo enológico, com mais de 12 mil garrafas guardadas, a mais antiga das quais data de 1815. Há dois anos, o enólogo Luís Sottomayor teve a oportunidade de verificar o seu estado numa operação de mudança de rolhas que acontece a cada 20 anos. "Estão óptimos", reconhece.

Numa prova realizada há meses no Salão Árabe do Palácio da Bolsa, no Porto, foi possível provar vinhos de 1834, ano em que D. Antónia se casou, 1847, quando a Ferreirinha começa a governar sozinha o império agrícola e exportador da família, e de 1863, o ano em que a filoxera apareceu no Douro. Estavam todos excelentes, plenos de aromas e de vida. Também aí foi possível constatar o génio e a grandeza de uma das mais fascinantes personalidades do século XIX português.

mcarvalho@publico.pt

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